quarta-feira, 22 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19817: Antropologia (32): "Regressos quase perfeitos, memórias da guerra em Angola", por Maria José Lobo Antunes, Tinta-da-china, 2015 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2018:

Queridos amigos,
Temos um ano da CART 3313 no Leste, depois seguem para o setor de Malanja, a Baixa do Cassanje é, ao tempo, uma zona de descanso, situam-se ali interesses económicos vitais, o colonialismo está vivo, os militares fazem patrulhas, ação psicológica, aborrecem-se, por ali circulam os aliados do colonialismo e a vigilância da PIDE não faz tréguas. Até que um dia, em março de 1973, regressam a casa, vêm todos de avião, na bagagem, muitos trouxeram pedaços de Angola: fotografias, peles curtidas de animais, máscaras, tapetes, recordações exóticas. Têm pela frente o regresso à vida interrompida.
Vai começar a terceira e última parte deste estudo antropológico, a memória é a rainha da festa.

Um abraço do
Mário


Regressos quase perfeitos, uma obra excecional de antropologia (2)

Beja Santos

Regressos quase perfeitos, memórias da guerra em Angola, por Maria José Lobo Antunes, Tinta-da-china Edições, 2015, é um trabalho científico de excecional qualidade. Recapitulando, durante cinco anos, Maria José Lobo Antunes entrevistou dezenas de antigos militares da Companhia de Artilharia 3313, assistiu aos seus almoços anuais, pesquisou arquivos e cruzou estas memórias com o retrato que o seu pai, o escritor António Lobo Antunes, médico do batalhão, deixou nas cartas de guerras que escreveu à mulher e nalguns dos seus livros. Há conivências e silêncios, há relatos interditos, durante décadas, a camaradagem só pode ser compreendida por quem passou pela guerra: “Uma pessoa tem irmãos de sangue, nós somos irmãos de alma”.

António Lobo Antunes e a mulher, Maria José Xavier da Fonseca e Costa, pais de Maria José Lobo Antunes.

A investigação rondou a infância e a juventude destes mancebos, falou-se na ideologia do Estado Novo, agora vão para Angola, passarão doze meses no Leste, é o primeiro ano da sua comissão de serviço, é o confronto com novas paisagens, com etnias angolanas, descobre-se Luanda e naquele Leste há histórias de mergulhos nos rios, batuques nas aldeias, namoros com negras. “A recordação está envolta em saudade e riso, histórias de rapazes jovens à aventura no desconhecido. Por outro lado, o medo e a tensão, os ataques e rebentamentos de minas, a invisibilidade do inimigo sem cara enchem as narrativas de quem viveu o ano de 1971 na planura do Leste angolano”.

A autora procede ao enquadramento deste Leste de Angola, um dos principais focos de subversão e luta armada nos seus quatro distritos (Moxico, Lunda, Bié e Cuando Cubango) e pela parte sul do distrito de Malanje. Leste é sinónimo da Diamang, a Companhia Mineira do Lobito (minas de Cassinga) e o Caminho-de-Ferro de Benguela. Neste Leste há conflitos intensos: a Zâmbia acolheu os movimentos nacionalistas angolanos, Costa Gomes criará em 1971 a Zona Militar Leste que uniu os três ramos da Forças Armadas portuguesas e as autoridades civis da região. Há muitos testemunhos sobre Luanda, deslumbramento, conversas com militares de outras unidades, o contraste entre a zona moderna e os musseques. E abala-se para as terras do fim do mundo, há êxodos populacionais, o MPLA está então muito ativo, descreve-se Gago Coutinho, Sessa e Mussuma, alguém comenta para a autora: “Em Gago Coutinho o ambiente era pesado. Aquilo era uma zona muito intensa de guerra e de vez em quando apareciam helicópteros carregados de pessoal, feridos e o carago, que vinham para ser tratados em Gago Coutinho”.

Há a barreira linguística, o choque de mentalidades, a vida quotidiana do quartel feita de rotinas, a curiosidade com os batuques, os curandeiros e feiticeiros, o choque com as condições laborais dos negros, a curiosidade com a relação dos africanos face ao corpo e à sexualidade. Enfim, anuncia-se a guerra, o BART 3835 sofreu 52 baixas ao longo de 12 meses: 32 feridos ligeiros, 14 feridos graves e 6 mortos. Todos recordam o batismo de fogo, Lobo Antunes logo escreve à mulher quando começou a guerra séria. Há a picagem das estradas, as minas anticarro irão fazer os seus estragos, a picagem a passo de caracol é por vezes monótona, desenvolve tensões. E surge uma experiência nova: os estranhíssimos aliados, Os Fiéis, nome de código de antigos apoiantes de Moisés Tchombé, eram gendarmes da província do ex-Congo Belga, a colaboração de forças sul-africana, sobretudo ao nível de helicópteros, estava já em vigor o Alcora, nome de código da aliança secreta político-militar que uniu Portugal, a África do Sul e a Rodésia entre 1970 e 1974, os Grupos Especiais iam aos locais mais remotos, eram implacáveis. Patrulhamentos infindáveis, descobre-se a tortura da sede. Em Sessa, procura-se recuperar civis que vivessem nas matas e oferecer-lhes proteção, saúde e educação nos aldeamentos construídos junto dos quarteis, os pelotões rodam de destacamento em destacamento. A PIDE trabalha à luz do dia.

Maria José Lobo Antunes lança um largo comentário sobre memória, esquecimento e silêncio:  
“Todas as histórias contadas nas páginas anteriores resultam da reconstrução de acontecimentos passados através da utilização de um mesmo léxico: o da guerra. É este idioma que preside à formulação da história do BART 3835, relato oficial de uma comissão de serviço onde o inimigo é repelido pela ‘pronta reação das NT’ e de onde estão ausentes os aliados secretos, as armas proibidas, mas também os pequenos deslizes de uma guerra feita por homens de carne e osso. É também este idioma que dá forma às memórias dos homens que viveram a guerra colonial no Leste angolana em 1971. É através dos seus valores (a camaradagem, a coragem, o heroísmo), dos seus resultados (vitórias, derrotas, fugas), dos seus acasos de sorte ou azar e das suas fraquezas (medo, cobardia) que cada um dos indivíduos reconstitui no presente os episódios vividos décadas antes”.
São descontinuidades, como seguramente se podem encontrar na Guiné ou em Moçambique, e daí este trabalho de elaborar uma tessitura entre os excessos e pecados da memória, entre o que cada um lembra e esqueceu, solta-se o lugar-comum para observar que o que resta do passado no presente é uma pequena parte do que aconteceu.

Depois da tempestade vem a bonança, ao fim de um ano na imensidão do Leste angolano, o BART 3835 seguirá para Malanje, pouca ou nenhuma guerra, era uma zona de descanso. Observa a autora, falando da atividade de guerrilha, que os mais ativos eram o MPLA e a UPA/FNLA, a UNITA tinha a sua ação limitada ao sul do setor de Malanje. “A missão das unidades resumia-se à vigilância da fronteira com o Congo, por onde poderiam infiltrar-se grupos inimigos, à manutenção de segurança nas áreas urbanas e rurais, e à acção psicológica junto das populações brancas e negras. O ano de 1972 surge nas narrativas dos homens da CART 3313 como uma imensa planície feita de rotinas e de espera pelo regresso a Portugal. Sem minas, ataques ou acções de combate, estes 14 meses tornaram-se indistintos, dominados pela monotonia dos dias quase sempre iguais. Compreende-se, por isso, que vários entrevistados se refiram ao segundo ano de comissão como umas férias”.

O distrito de Malanje em nada se assemelhava à aridez económica do Leste e a autora descreve minuciosamente a Baixa do Cassange. Agora privilegia-se a ação psicológica, em Marimba, Mangando e Marimbanguengo. “Foi entre estas três povoações que os homens da CART 3313 passaram a segunda parte da comissão de serviço em Angola”. Fazem-se patrulhas, os testemunhos referem o trabalho da PIDE, mas são meses de tédio em que os jogos de futebol desandam em pancadaria, fazem-se caçadas, os militares são confrontados com explorações agrícolas vastíssimas, ali o colonialismo está bem vincado, o preto obedece, é de uma docilidade resignada.

Temos agora a terceira e última parte deste extraordinário documento antropológico: Os anos depois da guerra.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19789: Antropologia (31): "Regressos quase perfeitos, memórias da guerra em Angola", por Maria José Lobo Antunes, Tinta-da-china, 2015 (1) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Antº Rosinha disse...

"O distrito de Malanje em nada se assemelhava à aridez económica do Leste ... fazem-se caçadas, os militares são confrontados com explorações agrícolas vastíssimas, ali o colonialismo está bem vincado, o preto obedece, é de uma docilidade resignada".

A Autora ouviu os companheiros de luta do pai, que foram para a região de Malange, para "o repouso habitual" após a permanência nos tais lugares dos cus de judas, mas se ouvisse soldados que foram para Benguela, ou Moçâmedes ou Lubango, ou Huambo, ou Cunene ou Quanza Sul ou Quanza Norte, por exemplo, então aí é que era a resignação total do branco, do preto do mestiço, sem falar daqueles que iam para Luanda, aí então é que era a "desbunda" total.

Em Luanda era a resignação total, até parece que se adivinhavam os trinta anos de guerra total e arrasadora que veio passados tres anos.

E o preto "obediente", sabia que se essa guerra viesse, não sobrava nenhum deles para contar.

Fernando Ribeiro disse...

Eu abstenho-me de comentar o livro, não só porque ainda não o li (e agradeço ao Beja Santos o ter-me chamado a atenção para ele), mas porque estive no Norte de Angola e não no Leste. Não houve só uma guerra em Angola, mas duas, separadas muitas centenas de quilómetros uma da outra, cada qual com características que muito as diferenciavam. Pôr-me eu aqui a comentar a guerra no Leste de Angola, tendo estado no Norte, seria equivalente a pôr-me a comentar a guerra na Guiné ou em Moçambique. Para se fazer uma ideia de como era a guerra no Leste de Angola, basta lembrar que o distrito do Cuando-Cubango, por si só, era tão grande como a Metrópole inteira e que o vizinho distrito do Moxico era ainda maior!!!

Eu tenho o maior respeito pelo camarada Antº Rosinha e, embora discorde de muitas das suas opiniões, não posso deixar de acatá-las e tentar compreendê-las. Tanto antes, como depois da independência, Angola foi um palco de conflito entre os grandes blocos políticos que então se digladiavam na chamada "guerra fria". Os americanos apoiaram a UPA/FNLA, os soviéticos apoiaram o MPLA e os chineses apoiaram a UNITA. Isto para não falar na potência regional que era a África do Sul, cujo regime do "apartheid" era dono e senhor da Namíbia, vizinha de Angola, e que apoiou o regime colonial português, antes do 25 de Abril, e a UNITA, depois. O resultado disto tudo foi do mais trágico que se possa imaginar. Angola mergulhou num inferno que atingiu toda a gente, brancos, negros e mestiços. O Antº Rosinha foi uma das muitas vítimas do que se passou então. Mesmo que fosse só por isto, o Antº Rosinha merece o meu maior respeito.

A propósito do que o Antº Rosinha escreveu no comentário acima, venho lembrar que nenhum soldado da Metrópole foi para Benguela, ou Moçâmedes ou Lubango, ou Huambo, ou Quanza Sul. Os militares que embarcavam em Lisboa, num barco ou num avião, a caminho de Angola, não tinham como destino umas férias na Praia Morena ou no Mussulo, mas sim a guerra. Uns tinham mais sorte e acabavam por não ter guerra quase nenhuma, outros tinham menos sorte e acabavam por ter mais guerra, razão pela qual mudavam a meio da comissão para uma zona mais tranquila, onde a guerra fosse apenas uma ameaça ou pouco mais. Neste caso, houve batalhões e companhias que mudaram de Zala ou de Quitexe para a Fazenda Tentativa ou o Ambriz, ou mudaram do Cuito Cuanavale ou de Lucusse para Malanje ou Maquela do Zombo.

As zonas de Angola onde a guerra nem sequer era uma ameaça eram guarnecidas, apenas e só, por tropas locais, isto é, por tropas da incorporação da província. Não havia tropas metropolitanas no Lobito, nem em Nova Lisboa, nem em Novo Redondo, por exemplo. Mas já as havia em Henrique de Carvalho, em Serpa Pinto ou em Silva Porto (tropas a cavalo, chamadas "Dragões", neste caso concreto). Tirando algumas exceções (e o meu próprio batalhão foi, até certo ponto, uma delas, pois incluiu militares angolanos mesclados com militares metropolitanos), a regra em Angola era esta: as tropas metropolitanas faziam a guerra e as tropas locais guarneciam a retaguarda.