segunda-feira, 20 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19807: Notas de leitura (1179): “Colóquio sobre Educação e Ciências Humanas na África de Língua Portuguesa”, Fundação Calouste Gulbenkian (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,
Foi uma reunião ímpar, pela qualidade dos intervenientes, pela substância dos depoimentos. Enquanto crescia a crispação política que abria caminho ao PREC, os cientistas permutavam ideias sobre o papel da língua, os manuais escolares, o uso do português fundamental, a reformulação das instituições científicas, o modelo colonial caducara. Fizeram-se sugestões pertinentes, e a Fundação Calouste Gulbenkian deu forma de livro ao encontro, hoje uma longínqua memória, agora é possível aquilatar do que se perdeu por não ter tido em conta diferentes sugestões sobre a lusofonia e investigação científica africana.

Um abraço do
Mário


O papel da lusofonia na aurora da descolonização (1)

Beja Santos

Entre 20 e 22 de Janeiro de 1975, enquanto a classe política entrava ao rubro com a questão da unicidade sindical, na Fundação Calouste Gulbenkian reuniam-se pesos pesados da investigação africana para debater o futuro da lusofonia no ensino, o que se iria passar no sistema educativo nos novos países de língua portuguesa, quais as contribuições portuguesas para as ciências humanas em África, quais as perspetivas que se rasgavam para cooperar no campo do ensino com a África lusófona. A Fundação Gulbenkian convocara um grupo seleto para o debate. Por parte da Fundação estavam Victor de Sá Machado, José Blanco, Luís de Matos, Mário António, Fernandes de Oliveira, o Embaixador Fernando Reino representava o Ministério da Coordenação Interterritorial. Os participantes eram, entre outros, Orlando Ribeiro, Ilídio do Amaral, Teixeira da Mota, René Pélissier, Douglas Wheeler, Albert Tévoédjrè e Gerard Bender. Daí resultou um livro editado em 1979 “Colóquio sobre Educação e Ciências Humanas na África de Língua Portuguesa”.

Nos cumprimentos de boas vindas, Sá Machado justificou um encontro pelo facto da Fundação pretender trazer ao processo de descolonização um debate no quadro da construção das novas nações africanas. “Pretendemos que este encontro fosse o mais restrito possível para lhe conferir o máximo de eficácia”. Orlando Ribeiro lançou o repto aos investigadores dos territórios ultramarinos: “Nós só desejamos uma coisa: poder continuar; mais do que continuar poder intensificar esses estudos e fazê-los em proveito da ciência em primeiro lugar”. Referiu as dificuldades da investigação em Portugal e a necessidade de saber criar uma boa articulação com as universidades existentes em Angola e Moçambique e outras que possam vir a surgir. A discussão passou imediatamente para a problemática de que português se iria ensinar, como os Estados africanos iriam viver ou não o bilinguismo e a multiculturalidade, aí alguns participantes referiam casos concretos de experiências em curso.

Teixeira da Mota interrogou-se sobre o crioulo, tanto de Cabo Verde como da Guiné-Bissau: “Durante muito tempo, na esteira do que lia e ouvia dizer, considerei o crioulo como um dialecto do português. É o que está escrito, por exemplo, num estudo que fez sobre o crioulo de Cabo Verde o Professor Baltazar Lopes. Há uns anos, tive oportunidade de ler dois trabalhos, independentes um do outro, feitos quase na mesma altura por dois autores, Chataigner e Wilson. Ambos estudam o crioulo da Guiné, e mostram que ele não é uma língua europeia, antes uma língua africana, na medida em que a sua estrutura gramatical é predominantemente africana, ainda que pelo léxico seja sobretudo uma língua românica. Portanto o crioulo, pelo menos o crioulo da Guiné é uma língua africana, na sua estrutura gramatical. O crioulo apareceu na zona da Guiné, de Cabo Verde, porque havia aí uma grande pulverização linguística. As populações, no período da escravatura, em que houve grandes deslocações de indivíduos e consequentemente múltiplos contactos novos, tinham necessidade de se entender e criar uma língua franca, utilizando estruturas gramaticais africanas com um vocabulário em que há muito do português”.

Mais adiante, Teixeira da Mota falou do Instituto de Línguas Africanas e Orientais, instalado no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, que antigamente era a Escola Superior Colonial, a atravessar uma crise gravíssima. Mário António Fernandes de Oliveira referiu que tinha havido alterações depois do 25 de Abril, tinham sido eliminadas todas as matérias que diziam respeito às colónias. Nesse instituto, continuou o interveniente, nunca houve qualquer pesquisa que se pudesse considerar científica. A pessoa mais qualificada era o Professor Sá Nogueira que preparou um dicionário de ronga, uma gramática de ronga e uma sintaxe de ronga. Impunha-se, em seu entender alterar o conhecimento das línguas ali ensinadas. Deslocou-se o debate para a questão do bilinguismo e da necessidade de ter em conta os idiomas falados nos Estados fronteiriços, havendo ainda que ter em consideração se é pertinente pôr enfâse numa segunda língua europeia no ensino africano.

A questão dos manuais escolares à luz das novas realidades dos países independentes entrou no debate. O PAIGC, o MPLA e a FRELIMO dispunham de manuais impregnados de uma ideologia libertadora, havia que refletir a realidade profunda desses países num contexto em que já e ultrapassar o colonialismo e saber qual a colaboração concreta e ajuda técnica desinteressada que deve ser concedida à produção desses livros. Nesta altura havia na Faculdade de Letras de Lisboa uma equipa liderada pelo professor Lindley Cintra para definir o português fundamental, assim encarado como um instrumento utilíssimo para a alfabetização das massas.

Os participantes deram novo rumo à conversa, o que fazer da investigação científica. Teixeira da Mota tinha distribuído um documento sobre algumas atividades de organismos de investigação existentes em Portugal no domínio das ciências humanas e sociais de âmbito africano, com destaque para os organismos da Junta de Investigações do Ultramar. Esta Junta nascera em 1936, resultara do alargamento e da transformação de uma Comissão de Cartografia, tinha a ver com a delimitação das fronteiras políticas em África. Não se pode esquecer a Sociedade de Geografia de Lisboa que conseguiu nas primeiras dezenas de anos da sua vida fazer bastantes trabalhos de interesse no âmbito dos estudos africanos. A Junta apareceu pois em 1936 com um pequeno número de setores: zoologia, botânica, geologia e antropologia e depois alargou-se o campo de atividade. É crucial a reestruturação deste organismo, convinha não o fragmentar espalhar os seus vários organismos por outros departamentos do Estado é contribuir para a delapidação de recursos. No seu depoimento, Teixeira da Mota foi fazendo propostas de reestruturação e referiu que existia mesmo um documento que já estava entregue ao governo. Nesta fase da discussão, Ilídio do Amaral sugeriu um debate sobre as realizações e as experiências de outros países quando, pela independência de territórios que detinham, enveredaram pelos caminhos da cooperação e do apoio científico.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19797: Notas de leitura (1178): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (6) (Mário Beja Santos)

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