sábado, 10 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20048: Os nossos seres, saberes e lazeres (347): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Esta visita a Bruxelas tinha um elevado pendor sentimental. Um amigo de décadas resolvera fechar a casa e recolher-se a um lar, pedira-lhe para o visitar nesta morada onde habitara cerca de meio século. E foi. E guardará para todo o sempre a escadaria em cimento, uma porta que se abre para um vestíbulo e para uma cozinha, aqui ajudou a preparar refeições e combinaram-se almoços e jantares para receber outros amigos, sempre com vista para o jardim, umas vezes no sono do inverno outras vezes com árvores em flor ou carregados de camélias. E escadas íngremes para o primeiro e segundo andares. Fica a recordação daquele lugar onde se conheceu a plenitude. Completou-se a homenagem retornando aos mesmos lugares aonde aquele amigo o acompanhou, décadas a fio. Digamos que foi uma viagem circular. E cresce a vontade de regressar, a despeito destas alterações em lugares eleitos.
A viagem nunca acaba, só os viajantes é que acabam, José Saramago dixit.

Um abraço do
Mário


Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (9)

Beja Santos

Na hora da despedida de Gand, o viandante sente-se retido pelos cuidados florais e por um monumento dedicado aos irmãos Van Eyck, os mundialmente conhecidos artistas a quem devemos o tríptico da Adoração do Cordeiro Místico, agora sobe-se para um tram em direção à estação ferroviária de S. Pedro, assim se regressa a Bruxelas.



Volta-se a amesendar em casa de amigos, no bairro de Anderlecht, no dia seguinte aqui se retornará para rever a casa de Erasmo e a beguina que bordeja a Igreja de S. Pedro e Guidon. O que se retém para comprazimento do viandante é que na hora em que duas crianças esperam pelo João Pestana, um querido amigo, de nome André Cornerrote, lê e treslê, é o aspeto mais adorável que nós os velhotes temos, onde está feiticeira pomos duendes, onde estão florestas sombrias pomos espelhos de água onde se refletem as estrelas, as crianças emudecidas pelo fulgor das estrelas, pelas danças de Órion, pelos anéis de Saturno, pelos bâmbis que jamais crescerão para que não se tenha que contar que os caçadores matarão suas mães. Dê o mundo as voltas que der que os contos de fadas são eternos, é uma lei da inocência confiar em mouras de encantar e príncipes de coração fiel.



O novo dia começa com uma visita ao Museu Magritte. Há cerca de quarenta anos, quando o viandante aqui arribou, não havia Museu Magritte, havia a coleção Magritte inserida nos Museus Reais das Belas-Artes, edifício opulento com fachada vistosa e escultura monumental a preceito. Entra-se num átrio gigantesco de onde se avista um primeiro andar com arcaria clássica e teto pleno de luminosidade. É o mais rico museu da Bélgica, deve ser visitado em pequenas porções, a pintura antiga é um deleite, estão lá os grandes mestres, e depois chega-se ao corrupio dos génios flamengos como Hans Memling, Bruegel O Velho ou Bosch, antes o visitante teve oportunidade de ver telas soberbas de Rogier van der Weyden ou Quentin Metsys. Para não cansar quem nos lê, estão ali expostos os inevitáveis Rubens e Rembrandt, indo por aí fora chega-se à modernidade, depois de muito impressionismo e expressionismo, uma tela monumental de Francis Bacon dedicada ao Papa Inocêncio X, tal o ângulo de exposição, tem o dom de cortar o fôlego a quem por ali passa. Nesse tempo antigo o Museu Magritte era uma impressionante doação da mulher deste genial surrealista que se visitava em duas salas. Terão seguramente os conservadores reconhecido que Magritte merecia autonomia fora do Museu de Arte Moderna e existe hoje um museu dedicado ao maior entre os maiores dos surrealistas da Valónia.

Museu Magritte, na Praça Real, Bruxelas, encerra a maior coleção mundial deste génio do surrealismo pictórico.

Le sorcier, René Magritte.

Le chef d’oeuvre ou les mystères de l’horizon, René Magritte.

L’empire des lumières, René Magritte.

O que leva as multidões a afluírem diariamente a este edifício de estilo neoclássico onde por três andares se espalham 150 obras doadas ou adquiridas, esquissos, partituras, obra gráfica, filmes, toneladas de fotografias, imagens de variados tipos e depois os guaches e os óleos onde os visitantes sentem o esplendor desta figura de proa do surrealismo mundial, com os seus falsos desconcertos harmónicos, os contrastes que batem certo, a irrealidade feita possibilidade, caso do quadro O Império das Luzes, aquele céu parece incompatível com a noite escura, estrelada por um candeeiro, que se reflete num espelho de água, e afinal está tudo certo, o insólito ganha espessura e o contraste faz-se entendimento, o espectador encontra outra lógica. Isto para advertir quem nos lê que visitar Bruxelas sem bater à porta deste lugar sacrossanto do surrealismo é pura negação da viagem. Tenho dito.




E chegámos ao termo da viagem, de novo o viandante aqui arriba, era obrigatório retornar, a primeira estadia em Bruxelas, há mais de 40 anos, propiciou este encontro. Nesse tempo, havia um comissariado do turismo belga em Portugal, na Rua do Alecrim, ali trabalhava uma belíssima escritora hoje muito esquecida, Fernanda Botelho, que quando o visitante ali veio pedir documentação lhe sugeriu a visita à Casa de Erasmo. O que tem esta mansão de especial? É uma das casas mais antigas de Bruxelas. De maio a outubro de 1521, o cónego de Anderlecht aqui acolheu Erasmo. O museu evoca a vida do humanista holandês e o universo intelectual da Reforma através de obras antigas (gravuras ou pinturas de Holbein, Bosch ou Dürer), impossível não ficar impressionado com aquela coleção de móveis góticos e renascentistas. E da Casa de Erasmo partimos para o jardim, uma outra beleza, é um jardim de prazeres e saberes, tem plantas medicinais, tem uma zona chamada o jardim dentro do jardim, conhecido como o Jardim Filosófico e que se inspira na obra de Erasmo O banquete religioso. Aqui se recria o que Erasmo observou sobre a amizade: “Onde haja amigos, ali está a riqueza”.
Assim acaba a viagem, por ora. A riqueza do viandante tem este pilar sólido da amizade, veio visitar um amigo em transe e colheu estes frutos, estas lembranças, algumas delas tão difusas, dentro da cidade que hoje também é um pouco de si. E espera voltar, pois então. Para uns, Bruxelas é a capital da Europa, para o viandante constituiu-se como um local de afetos e de convivência aberta, ande por ali sozinho ou acompanhado. E sempre que lá regressar, passará por uma livraria onde, numa estante, encontra autores portugueses, são testemunhos mudos de compatriotas que ali viveram e deixaram para outros o doce encanto da língua pátria.
Até à próxima!
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20032: Os nossos seres, saberes e lazeres (346): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (8) (Mário Beja Santos)

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