quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3520: Bibliografia de uma guerra (38): Tempo Africano, de M. Barão da Cunha. (Beja Santos).

"O livro "Tempo Africano" merece ser lido e meditado"

Mário Beja Santos




Tempo Africano
Manuel Barão da Cunha
il. Neves e Sousa.
Didáctica, 1971
174 p.


Trabalhei de 1983 a 1985 com o Dr. Manuel Barão da Cunha, no Gabinete da Defesa do Consumidor. Ele era Deficiente das Forças Armadas, estava na reforma, iniciara uma nova carreira na Administração Pública. A guerra da Guiné era para mim muito difusa, muito mais distante do que próxima, mesmo com os meus soldados feridos ou vindos para Portugal, após a independência. Nessa altura, escrevi no Jornal de Notícias o "SPM 3778" e prosa solta no Diário de Lisboa e na Liber 25. Ele ofereceu-me dois livros "Radiografia Militar" e "Aquelas longas horas", tudo escrito a quente, em conjunturas distintas.
Recebi o convite para ir no passado sábado, 22 de Novembro, à Galeria Municipal Verney, em Oeiras, assistir ao lançamento de "Tempo Africano", editado pela Câmara Municipal de Oeiras, com prefácio de João Aguiar.
Casa cheia, com muitos Meninos da Luz, camaradas militares do autor, admiradores de Oeiras e arredores, como eu. Ambiente de comoção, até por está patente uma bela exposição de pintura de Neves e Sousa, com motivos alusivos à guerra que travámos em África, algumas ilustrações aparecem no livro.
"Tempo Africano" é uma revisitação ao que Barão da Cunha já redigira entre 1974 e 1975, entre memórias e artigos publicados.
Segue-se a recensão, Manuel Barão da Cunha foi dos primeiros a escrever sobre a Guiné, ele combateu ali de 1964 a 1965.
Um abraço do
Mário Beja Santos



A obra aparece dividida em andamentos, momentos cronológicos estruturados em diálogos entre um veterano da guerra e um jovem sedento de curiosidade, pronto a perceber a experiências vividas pelo primeiro.
Pedro Cid vai ser o alter-ego de Barão da Cunha. Tudo começa em Angola, em Janeiro de 1960, Pedro é um Dragão irá comandar mancebos naturais ou residentes em Angola. Descreve a Francisco a vida em Luanda, recorda todos os outros camaradas, Pedro viveu os acontecimentos de Fevereiro de 1961, com os ataques a Luanda e periferia. Ele foi um observador privilegiado, irá a Nambuangongo com os seus Dragões, cumprirá outras dolorosas missões, vamos ouvi-lo exaltar o comportamento de muitos dos seus soldados. Tem 23 anos, é um jovem alferes que participa no contra-ataque na região dos Dembos. Lutou-se com espingardas Mauser, com poucas viaturas em sem rádios. O jovem alferes vê aqueles naturais, brancos, mestiços e pretos, a combater com denodo, sente a ligação entre os militares e o terrunho.

Regressa a Portugal, trabalha em Lamego nas operações especiais, em 1964 parte para a Guiné na Companhia de Cavalaria 704. Primeiro na intervenção à volta de Bissau, o PAIGC já está muito activo, procura a destabilização na península.
Seguem-se as grandes operações: ias das ao Morés, o dispositivo de dissuasão de um dos maiores santuários do PAIGC já está montado, Barão da Cunha participa numa operação com cerca de 80 horas e temos aqui páginas vigorosas dos combates travados.
Um exemplo:
“Nessa noite seriam eles a atacar. Aproveitaram um violento tornado e, ... os soldados enterrados na lama; a arma apoiada na terra molhada; o camuflado pegado ao corpo a água a cair do capacete e a entrar pelo pescoço, escorrendo, lenta e friamente, costas abaixo; os homens cegos pela chuva, pelo cansaço; surdos pelos tiros, pelas explosões; sem saberem uns dos outros, sem se ouvirem; os rádios sem falarem que não havia mãos de sobra para os gatilhos; e eles a avançarem, na escuridão da noite, através de lençóis de água. Parecia que o céu se tinha aberto que enviava sobre nós toneladas de água, toneladas de metralha, toneladas de inimigos. Onde um caía, apareciam logo 2 ou 3. Nasciam da noite, negros como ela. E balas traçavam a escuridão. Os elementos e os inimigos em fúria abatiam-se sobre nós. Os soldados choravam e praguejavam. Também havia que rezasse. As mãos premiam gatilhos, mudavam carregadores, lançavam granadas.
De repente, um very-light vermelho riscou a noite. E como tinham vindo, desapareceram: o tornado e o inimigo. Um silêncio pesado permaneceu, na mata, nos abrigos e nos cérebros dos soldados”.

Barão da Cunha não esconde a admiração pelos diferentes protagonistas: o apoio incansável da aviação, a presença do capelão, de soldados da sua companhia, de milícias que com ele combateram na região de Bajocunda, quando a sua companhia passar para quadricula, no Leste, onde, entretanto, se começa a dar a desarticulação do território devido à ofensiva do PAIGC.

A personagem “Mamadu” evidencia o espírito de lealdade dos fulas com os portugueses. Depois é o regresso, é a exaltação daqueles jovens que se transformaram em jovens, o sentido do dever cumprido.
Pedro Cid irá voltar a Angola entre 1969 e 1971, será outra experiência que marcará profundamente no seu tempo africano.
A vários títulos, “Tempo Africano” merece ser lido e meditado. É o itinerário de um oficial do quadro permanente que começa como alferes em Angola, vive os acontecimentos de 1961, combate na Guiné e regressa a Angola. Procura ser sincero na captação do heroísmo e tenacidade dos combatentes angolanos, não esconde a pujança do PAIGC em 1964 e o modo como desarticulou a vida económica e social daquela região, “a mais antiga colónia do mundo moderno”.
Toda a sua reflexão irá repercutir-se no que escreveu sobre a génese e a vivência do 25 de Abril. “Tempo Africano” é um primeiro depoimento, agora depurado por muitos acontecimentos datados que amareleceram ou definharam. É uma memória do que aconteceu há quase 50 anos, mantém-se a constância do olhar e a passagem do testemunho para as novas gerações.
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Notas de vb:
1. Artigos da série em
2. E do Mário Beja Santos em

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