Alberto Branquinho
ex-alf mil CArt 1689
1967/69
O cabo Abel nunca tinha estado em Bissau. O Batalhão a que pertencia chegou a Bissau, a bordo do paquete que os transportara de Lisboa, mas a sua Companhia saiu do paquete, sem pisar terra e passou, directamente, para batelões rebocados e, assim foram rio acima, deixando ainda a bordo o restante pessoal do Batalhão.
O cabo Abel só teve consciência do que se estava a passar quando ouviu o capitão perguntar ao alferes que estava a dirigir a "trasfega":
"- Então que merda é esta, nosso alferes? Nem pedras nos dão para atirar aos gajos?"
Renderam outros que os aguardavam ansiosamente no cais de destino. Reparou no rosto esverdeado da maior parte dos "velhinhos" que os esperavam e que lhes berravam em tom agressivo:
Renderam outros que os aguardavam ansiosamente no cais de destino. Reparou no rosto esverdeado da maior parte dos "velhinhos" que os esperavam e que lhes berravam em tom agressivo:
"- Salta, periquito! Salta, periquito, que vais lerpar!"
Ficou muito impressionado com aquela recepção, mas no dia seguinte já estava acostumado à caserna e ao quartel. Ao menos, estava com os pés em terra firme e livre do porão no fundo do paquete, abaixo da linha de água, onde só cheirava a vomitado.
Nunca tinha saído de ao pé da Companhia, nos vários aquartelamentos por onde ela tinha peregrinado. Nem uns dias de férias em Bissau. Tinha-se afeiçoado ao periquito que tinha preso à barra da cama. Nas horas vagas passeava com ele, pelos quartéis e pelas tabancas, poisado no ombro, ora no direito, ora no esquerdo, O periquito era a sua família. Não queria deixá-lo a qualquer um e mesmo o Ribeiro “básico”, quando o tempo era muito, tratava mal o bicho. Assim aconteceu, lá mais para o fim, quando chegou de uma operação de cinco dias, foi dar com o pássaro pendurado pela pata, de asas caídas e o bico aberto. Parecia gritar por socorro.
Agora, passados vinte e três meses e à espera de embarcar para a "Metrópole", já com aquela cara amarelo-verde azeitona, passeava o seu espanto pelo espaço urbano de Bissau. Pela primeira vez.
Agora, passados vinte e três meses e à espera de embarcar para a "Metrópole", já com aquela cara amarelo-verde azeitona, passeava o seu espanto pelo espaço urbano de Bissau. Pela primeira vez.
Era um rio de vida que corria pelas ruas - tropa bem fardada dos vários ramos, polícia militar, polícia naval, civis, muitos civis e, principalmente, mulheres, muitas mulheres. Todas bonitas. E, até, mulheres brancas.
Juntamente com os camaradas, comprava lembranças para levar à família. Coisas exóticas que nada tinham a ver com a Guiné - tapetes, quadros, loiças - vendidas em lojas de comerciantes libaneses. Começavam a existir naquelas cabeças projectos para o futuro, embora ainda nebulosos.
Perdiam-se pela cidade que, embora não fosse uma das grandes capitais do Império, era maior que a aldeia natal.
Por vezes, a Companhia recebia ordem para fazer cerco aos bairros negros, periféricos de Bissau. Cada bairro era cercado cerca das quatro horas da manhã, com ordem para não deixarem sair ninguém. Completado o cerco, grupos de militares inspeccionavam casa a casa, pedindo os documentos aos residentes.
Perdiam-se pela cidade que, embora não fosse uma das grandes capitais do Império, era maior que a aldeia natal.
Por vezes, a Companhia recebia ordem para fazer cerco aos bairros negros, periféricos de Bissau. Cada bairro era cercado cerca das quatro horas da manhã, com ordem para não deixarem sair ninguém. Completado o cerco, grupos de militares inspeccionavam casa a casa, pedindo os documentos aos residentes.
Entretanto, ia amanhecendo.
Era já manhã. O pessoal que fazia o cerco estava sentado no chão, com as G-3 entaladas entre os joelhos ou em cima das coxas, em atitude descontraída, que, em nada, se assemelhava às situações vividas no interior da Guiné.
De entre as casas, caminhando por uma vereda que passava junto de um grupo de militares em que estava o cabo Abel, surgiu uma moça negra, vestindo uma bata impecavelmente branca, trazendo consigo os livros escolares agarrados contra o peito. O cabo Abel levantou-se, colocou a G-3 a tiracolo, segurou o cigarro com a mão esquerda e com a direita barrou-lhe o caminho:
-"Bajuda, bô cá pude passa!"
A moça, que teria uns catorze ou quinze anos, estacou momentaneamente, encarou o cabo Abel nos olhos e perguntou:
- Porque é que você não fala comigo Português direito?
E, contornando-o, continuou o seu caminho para Bissau.
O cabo, apalermado, ficou com o braço levantado a vê-la passar.
O cabo, apalermado, ficou com o braço levantado a vê-la passar.
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Nota de vb:
1. Artigo da série em
2 comentários:
Alberto, belo texto !
Parabéns !
Um abraço,
António Matos
Perdeu-se o 1º comentário.Repito parte, dizendo ao homem que não fala dele nem do seu umbigo: Parece que um dia fiz um comentário um pouco agreste. Mas gosto muito deste e de outros escritos. Gosto e sinto-os Camarada. Dupla desculpa pelo, hipotético e epidérmico comentário e pelo tratamento. Quando li o texto vieram-me á mente recordações de homens que nunca tiveram férias. Era duro. Recordei um do meu Grupo que, depois de muitas horas debaixo de fogo, com vinte e um meses de comissão veio até Bissau. Estava "rebentado". Era um dos bazokeiros. Faleceu, pouco depois em acidente de viação. Nâo conheceu a filha..."visitei-o", talvez em Maio numa aldeia próximo de Beja.Faço-o se por lá passo. Não tenho coragem de ver a filha. Que diabo de homens somos nós ou alguns de nós??? AB do Torcato
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