sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7306: Estórias avulsas (44): O dia em que o canhão sem recuo me mandou para o hospital militar de Bissau (José Gonçalves, ex-alf mik op esp, CCAÇ 4152/73, Gadamael e Cufar, 1974))

1. Texto de José Gonçalves (ex-Al Mil Op Esp da CCAÇ 4152/73, que vive actualmente no Canadá) [, foto à direita]:

Data: 19 de Novembro de 2010 02:12

Assunto: O dia em que o canhão sem recuo me mandou para o hospital militar de Bissau.

Foi já ao entardecer do dia 27 de Fevereiro 1974 quando recebemos uma mensagem para tomarmos as precauções defensivas necessárias pois havia informação indicando a possibilidade de Gadamael vir a ser atacado por tanques e carros de combate [possível referência às viaturas blindadas, de origem soviética, BRDMque o PAIGC estaria em condições de começar a utilizar em 1973 nos ataques aos nossos aquartelamentos fronteiriços ]. 

Como devem calcular não foi uma notícia que pudesse ser ignorada e assim todo o pessoal do comando reuniu-se para decidir o que fazer em relação à nossa segurança e à da população sob nossa protecção.

Defesa contra tanques e carros de combate era coisa que não tinha ideia nenhuma pois nunca tive este tipo de treinamento. Nem eu nem ninguém da minha companhia, mas não podíamos ficar de braços cruzados e decidimos então ir fazer uma inspecção a todos os postos de defesa e instruir os seus responsáveis do perigo que poderia em breve aparecer para que tomassem as devidas precauções em relação às munições e funcionamento das armas de defesa.

[Imagem à esquerda: Viatura blindada BRDM 2, utilizada pelo PAIGC em meados de 1973 no sul da Guiné: Desenho e especificações... 

Cortesia de Nuno Rubim (2009)




Visitámos os postos de metralhadoras pesadas e depois fomos visitar um posto de canhão sem recuo que ficava mesmo ao lado da enfermaria/messe de sargentos. O cabo responsável por esta arma mostrava-se muito entusiasmado pela atenção que lhe estava a ser prestada e queria mostrar-nos a todos nós como a sua arma funcionava . Entretanto o capitão, alferes e furriéis estavam todos à volta do canhão, dialogando sobre as melhores opções de defesa quando o cabo decidiu trazer uma munição para nos mostrar e introduziu-a na câmara do canhão. 

Fiquei preocupado pois sabia como tal peça funcionava e disse-lhe prontamente que com todo o pessoal à volta isso era perigoso avisando-o para não fechar a culatra. A resposta do mesmo foi que não havia perigo e fechou a culatra e quase instantaneamente se deu a percussão da mesma ferindo o cabo em estado muito grave pois apanhou-o em cheio nas suas partes privadas e a mim que estava ao seu lado queimou-me quase um terço do corpo principalmente perna esquerda, braço esquerdo e peito. Valeram-me os calções que protegeram a mercadoria. O coitado do cabo não teve a mesma sorte.

Com a explosão voei pelo ar e caí em cima do Alferes Lobo (que estava algures ao meu lado ou por trás de mim) que se queixava não enxergar nada. Olhei então para o Lobo e verifiquei que as pálpebras dos olhos dele se tinham chamuscado e colado não o deixando abrir os olhos correctamente. Ao mesmo tempo olhei para o meu braço e vi que estava todo preto e com sangue, tentei limpar o braço passando com a minha mão direita sobre ele e um bocado de pele automaticamente se descolou. Olhei então para a minha perna e também não estava lá muito católica e resolvi então correr para a enfermaria à procura de ajuda.

Quando cheguei ao abrigo onde os enfermeiros estavam alojados disse-lhes que tinha havido um acidente e que havia vários feridos. Com esta informação saíram todos correndo pela enfermaria a fora em direcção ao canhão e deixaram-me lá sozinho, por fim um voltou para trás para tomar conta de mim. Foi então que me disseram que o cabo tinha ficado mesmo muito mal e que felizmente tinha só sido eu e ele a ficarmos feridos e que teríamos de ser evacuados pata Bissau. Por sorte não estava ninguém em frente do canhão senão o resultado teria sido muito pior.

Começaram então os preparativos para nos evacuar e foi-nos prontamente dito que a evacuação teria que ser feita de Cacine porque os helis não vinham a Gadamael. O sol já estava posto quando nos meteram em dois sintexes do exército e lá fomos rumo a Cacine. Tive então o conhecimento real que a maresia em queimaduras dá dores horríveis e como não me tinham dado e não me deram nada para as dores, tive que aguentar até ser evacuado o que só aconteceu no outro dia de manhã. O cabo estava cheio de morfina mas apesar do meu pedido para me darem também morfina para as dores, foi-me recusado dizendo que os efeitos secundários da morfina não eram justificados no meu caso.

No sintex no meio do rio Cacine sentia um alívio enorme e um sentimento de sorte, apesar dos ferimentos que tinha, pois ia deixar o inferno de Gadamael para trás, os bombardeamentos diários e o suposto ataque   [de BRDM-2] que felizmente nunca chegou a acontecer. As minhas preocupações eram com os meus soldados e camaradas caso o ataque previsto se realizasse: será que tudo estaria bem com eles, será que o treinamento que lhes tinha dada e com o comando dos furriéis poderiam ser dignos militares e não porem a sua vida em risco ? 

Tudo isto me ia na cabeça e também uma grande preocupação de ficar muito cicatrizado (um pouco de vaidade que é normal de quem é novo) . Tinha que escrever aos meus pais e contar-lhes o sucedido mas como fazê-lo sem preocupar mais a minha mãe pois sabia que esta (já vivendo no Canadá com o resto da família), sofria de muitas emoções por me encontrar na Guiné a combater. 

Passei uma noite horrível na enfermaria de Cacine ao lado do meu companheiro,  1º cabo apontador de canhão s/r, pois este estava totalmente sedado com morfina mas com conhecimento do que lhe tinha acontecido. Passou a noite a chamar pela namorada e pela mãe. A uma certa altura pediu aos enfermeiros para urinar e estes diziam um para o outro que não encontravam nada com que ele o pudesse fazer. Foi uma noite horrível escutando aquele homem gemer e chamar pelos seus entes queridos e pedi aos enfermeiros para me mudarem para outro lado pois já não suportava mais a agonia do meu camarada que me causava mais transtorno que as minhas próprias dores. Também me foi dito que não podiam pois que eu tinha que ser monitorizado e que tinha que ficar perto deles. 

De madrugada lá apareceu um heli com uma enfermeira pára-quedista que nos evacuou para o hospital militar de Bissau onde passei os próximos dois meses só regressando a Gadamael no dia 21 ou 22 de April de 1974 (já não me recordo bem da data).

Quando cheguei a Bissau um dos enfermeiros na sala de recepção levantou o lençol que me tapava o corpo totalmente nu e disse : "pensei que era pior" o médico que se encontrava a seu lado olhou para mim e respondeu : "ainda querias pior?". Nunca mais me esqueci destas duas frases. Medicaram-me e puseram-me em soro todavia passadas umas boas horas comecei a ter convulsões que era o começo de envenenamento do corpo devido a quantidade de pele queimada. 

Tudo passou, e um dia apareceu na sala de cuidados intensivos o governador (general Bettencourt Rodrigues) que me perguntou como me estava a sentir e de imediato me ameaçou com um auto por andar a brincar com canhões. Respondi-lhe que agradecia ele mandar averiguar a situação pois eu também estava interessado em saber o que se tinha passado mas que tal acto não foi devido a nenhuma brincadeira com canhões. Não me deu resposta e lá se foi para a sua vida e eu fiquei mais mês e meio em Bissau a recuperar.

Lembro-me de várias vezes ouvir passar tropas cantando, (presumindo ser tropas especiais e talvez africanas) em camiões em direcção a Bissalanca , e logo pela manhã do dia seguinte começavam os helis a chegar com os feridos. Foi um tempo preocupante e interessante pois estive cerca de 3 semanas com alta do hospital (indo às consultas externas ao hospital 1 vez por semana ) nas instalações dos oficiais onde se comia e bebia bem, com piscina e até cinema ao ar livre tinha. 


Comparado com Gadamael,  era um paraíso mas tive alta no dia 21 de Abril e voltei de novo para o "inferno de Gadamael" pensando sempre que talvez fosse o meu último destino, o que não veio a acontecer devido ao 25 de Abril. 

Foi também em Bissau que comecei a conviver com outros oficiais mais experientes que ali se encontravam de baixa ou de passagem e que contavam as suas histórias e preocupações e o seu sentimento de revolta com tudo o que se estava a passar. Em Gadamael, no COP 5 falava-se pouco da situação em que estávamos talvez pelo choque e o pouco tempo que lá estive. Do tempo de Gadamael lembro-me das noites de Poker, dos uísques e dos gins tónicos e do fugir para os abrigos que podia ser várias vezes por dia. 

José Gonçalves | alf mil op esp | CCAÇ 4152/73,
Gadamael e Cufar, 1974)
______________


Nota de L.G.: 

Último poste da série > 16 de Novembro de 2010> Guiné 63/74 - P7291: Estórias avulsas (100): A mina, que seriam duas (António Branquinho)

8 comentários:

Anónimo disse...

Caro José Gonçalves
Fui testemunha deste facto lamentável.O cabo foi evacuado para Lisboa e constou que se tinha suícidado.Oxalá não seja verdade.Pior sorte teve o 1.º sargento( não recordo o nome ) que ficou completamente queimado no abdomen e tórax ao incendiar-se a camisa n.º2 quando tentava acender a arca frigorífica a petróleo.Ainda hoje recordo os "urros" de dor na enfermaria abrigo durante toda a noite.De manhã foi evacuado para cacine e como a maré estava vazante, foi o "fuzo" "Pedras" que arrastou o sintex no tarrafo até à água.Constou que faleceu em Lisboa.Melhor sorte teve o 1.º sargento da ccaç20 que sobreviveu as graves ferimentos provocados pela explosão de uma granada de mão enviada por mão "amiga" para dentro do abrigo.Nunca se soube quem foi.
um abraço
o "gadamaelista"
c. martins

Anónimo disse...

Para não contar só desgraças aqui vai uma humoristica.
Estando eu fazer uma necessidade fisiológica(que ninguém fazia por mim") em frente ao espaldão do mesmo canhão s/r,ouvi uma voz de "gago";oooo meeee alll nãnnn saaabbe leeer.Respondi-lhe com maus modos porque estava com cólicas devido à diarreia, e ao olhar de soslaio vi um cartaz de papelão que dizia:É PROIBIDO CAGAR EM FRENTE AO CANHÃO.Para que conste não fui multado,mas não repeti a cena porque aqueles desgraçados não tinham a obrigação de cheirar os odores das minhas tripas durante dias inteiros.
o "gadamaelista"
c. martins

Anónimo disse...

Amigos
Gadamael no meu tempo, apesar das flagelações, era uma inveja para nós que tínhamos de gramar os quilómetros de Medjo, por Guiledje para podermos almoçar quase todos os dias e beber as cervejolas.
Contudo, que me lembre, nesse tempo (68) também houve lá uma granada atirada para o bar ou outro local qualquer de ajuntamento e também nunca se terá sabido de quem foi a mão.
Desculpem lá esta imprecisão de relato mas creio que estou certo disso e não sonhei.
Abraços
José Brás

Anónimo disse...

Olá Camaradas,ando à procura de um ex-fuzo natural das Pedras Salgadas, chamado Emidio Alves Ribeiro será este que é referido pelo C. Martins?
Ob.e cumprimentos.
Luis de Sousa

Anónimo disse...

Caro Luis de Sousa
Não é este "fuzo".Este não tem nada a ver com "pedras salgadas", é beirão e gostava pouco de água mas adorava "gin" de preferência simples.
um abraço
c. martins

Anónimo disse...

Boas. C. Martins, não ´terás sido furriel do 3º pelotão da CCAÇ 4152? é que eu era o Alf. Milheirão que comandou esse mesmo pelotão. Subscrevo em quase tudo o que diz o camarada Gonçalves ( José Marcelino de Brito Gonçalves) Só que na parte em que ele se refere ao "acidente com o canhão s/r, era eu e não o Lobo quem ficou com os olhos "chamuscados". Isso valeu-me três dias de internamento na enfermariaa/abrigo.

Anónimo disse...

Já agora, para complementar o meu post, a história do canhão não foi um simples acidente. O soldado que estava mais perto do gatilho não sabia que o canhão tinha sido municiado e, após a explicação do dito cabo (acompanhada da respectiva execução de abrir janela de ejecção, introdução de munição e fecho da dita janela/culatra, o soldado disse: "e para disparar carrega-se aqui". E foi o "buuum". Felizente, como refere o Gonçalves, não estava ninguém à frente. Teria sido catastrófico. Abraço a todos.
Milheirão

Anónimo disse...

O sargento a que o C. Martins se refere, aquele que morreu queimado pela explosão do depósito da arca frigorífica,se não me falha a memória, chamava-se Barreira, O outro a quem puseram uma granada debaixo da cama chamava-se Barradas. Encontrei-o no H.M. em Bissau.