As minhas memórias de Gabu
Um olhar sobre uma tabanca onde se arquitetavam sonhos de…
Crianças
Num trajeto ao conteúdo sobre as minhas memórias de Gabu, reconheço que se concentram ainda hoje imagens na minha mente que jamais ousarei enviar para um esconderijo, sabendo de antemão que o seu retorno não teria por certo bilhete de ida e de volta. Reparo para a foto exposta e revejo crianças numa tabanca algures na região de Gabu. As suas representações afiguravam-se decerto modo intemporais num tempo sem tempo.
Naquela tabanca, igual a tantas outras, arquitetavam-se sonhos de jovens, muitos de tenra idade, que tinham nascido sob as “escarpas” de uma guerra que se mantinha ativa e que não vislumbrava um prévio fim pacífico para as tropas em confronto. No horizonte de um firmamento tingido de tons africanos, cimentavam-se gritos de dor e de revolta. A paz era claramente desejada.
Lembro, passados quatro décadas, o conteúdo real que se escondia numa tabanca que subjetivamente tinha nas suas crianças um mundo que suportava apenas… sonhos infantis. A imprevisibilidade do futuro considerava-se como infiel para um interminável número de meninos e meninas que colocavam no futuro uma incalculável imprevisibilidade e de agoirentas incógnitas.
O seu mundo, de criança, levavam-me a refletir: Qual será o seu destino? Eu, a cumprir a minha comissão militar obrigatória na Guiné, sabia que numa situação considerada absolutamente normal, um dia regressaria à minha pátria lusa, deixando para trás aquelas dóceis e ingénuas catraias que lançavam nos seus olhares evidentes querelas de profundas interrogações.
Sentia-me impotente para solucionar um problema de guerra, no qual eu era apenas uma peça simplória dum enigmático puzzle de um polvo cujos tentáculos ultrapassavam as fronteiras físicas e humanas, sendo que a guerrilha se assumia como uma máquina de irreverentes interesses, não se olhando aos inevitáveis males que se abatiam sobre miúdos e miúdas que na sua tabanca, o seu doce lar, idealizavam provavelmente o fim de uma lastimável guerra. A encruzilhada da guerrilha era simplesmente dúbia. Ficava, isso sim, a incerteza do dia seguinte.
Meditava, por outro lado, na estrutura moral do crescimento dessas afáveis criancinhas. Sabia, no entanto, que a mortalidade infantil ditava na Guiné, tal como em quase toda a África, indicies desoladores. Mas independentemente dessa profética verdade sabida, acreditava que aquelas crianças seriam mais tardes homens e mulheres felizes num país que sonhava ser livre.
Num olhar subtil à ilusória opulência de uma “vivenda” de campo observada em pleno mato guineense, constata-se de imediato que os bens caseiros eram diminutos. Todos nós, antigos combatentes, conhecemos essa inequívoca certeza. As crianças tinham sensibilidades diferentes e viviam de acordo com os meios físicos de que disponham. Restava porém a veracidade que os “tugas” eram gente amiga. Os “turras”, por sua vez, seriam, também, rapazes bem-vindos.
Nesta análise feita à dualidade de critérios de uma população que vivia de paredes-meias com as duas frentes da guerra, ficava-me a eloquente convicção que aquelas crianças seriam um dia pessoas adultas com hilariantes histórias de vida para contar aos seus descendentes.
Recordo o pitoresco ambiente que se vivia na tabanca. A atividade de gentes que se predispunham a uma autodeterminação para manter o sustento familiar. O chefe de família, homem hirto na imponente ação do seu agregado, descansava, incumbindo a mulher, melhor, as mulheres da faina do artesanal trabalho. As crianças, sempre ativas, eram uma preciosa ajuda nessas lides.
Desafiando as teias de factos observados nas minhas memórias de Gabu, recordo que na tabanca se criavam galinhas, cabritos, porcos, animais que a população muçulmana não comia e a malta “tuga” agradecia a troco de magros “patacões”, sendo que as crianças acompanhavam as progenitoras nas jeiras da mancarra, do arroz, do milho, entre outros velhos costumes herdados dos seus antepassados.
Hoje, revejo essa azáfama quotidiana dessas humildes crianças que no adensado mato pareciam não temer os alaridos de uma guerra que, em meu entender, lhe era decisivamente adversa.
Relembro, também, os magotes de adolescentes encontrados no mato e que tinham sido submetidos à “festa indígena” do fanado que a sua tribo lhes impusera. Recapitulo, também, os seus olhares fúteis, comprometidos, de jovens que deixavam antever uma embaraçosa explicação para o facto, talvez púdico, feito por mãos de gentes da sua tribo. Sábios vistos à luz dos costumes como homens e mulheres grandes.
Estes temas, literalmente equidistantes de um povo que convivia sob o conflito, eram então alvo de múltiplas ponderações, tendo em conta a flexibilidade que nós, humanos, amiúde presenciávamos numa Guiné que permanece presente na montra de um passado que teima em albergar inolvidáveis imagens.
Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
8 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 – P12263: Memórias de Gabú (José Saúde) (32): “Ao esforço da Pátria”
2 comentários:
Amigo José Saude, mais um texto em que tão bem descreves o ambiente que se vivia nas tabancas e que eu também tive a oportunidade de constatar, mas que não tenho a tua arte, de colocar por escrito as experiencias vividas durante e no pós guerra na Guiné.
Um Abraço Amigo e continua a deliciar-me(nos) com os teus textos.
Caríssimo José Saúde
Deixas-nos aqui um pedaço das tuas reflexões sobre o mundo que te rodeava nos 'idos de setenta'.
Não é muito vulgar aparecerem este tipo de preocupações assim reveladas.
Foi bom ler.
Abraço
Hélder S.
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