sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12298: Notas de leitura (534): Escravos e Traficantes no Império Português, por Arlindo Manuel Caldeira (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Junho de 2013:

Queridos amigos,
Esta obra de leitura compulsiva poderá contribuir para dissipar muita dúvida que possamos ter à volta do comércio negreiro. O historiador desmantela certos preconceitos, insere o fenómeno na história das mentalidades, a ponto de ficarmos a saber que deste tráfico beneficiavam a família real, os membros do Governo, a aristocracia, os grandes comerciantes e o clero.
Tudo começou nos “rios da Guiné” e a obscura história da Guiné portuguesa tornar-se-ia mais incompreensível se não se atendesse ao papel de feitorias como as que se situaram na Goreia (no Senegal), em Cacheu, no Rio Grande de Buba. E vale a pena conhecer os grandes negreiros, alguns deles filantropos importantíssimos como o Conde de Ferreira.

Um abraço do
Mário


Escravos e traficantes no Império Português, o caso da Guiné-Bissau (2)

Beja Santos

Como se referiu no primeiro texto dedicado ao livro “Escravos e Traficantes no Império Português, O comércio negreiro português no Atlântico durante os séculos XV a XIX”, por Arlindo Manuel Caldeira, A Esfera dos Livros, 2013, estamos perante uma obra de indiscutível importância para se conhecer sem preconceitos ou falsas moralidades a extensão da participação portuguesa no chamado “infame comércio”.

O historiador Arlindo Caldeira estruturou cuidadosamente a investigação laboriosa que levou a cabo, fez bem ter começado por clarificar a natureza da escravatura e como esta já existia antes do tráfico atlântico, conduzido inicialmente por portugueses e espanhóis. Deixou esclarecido que nem portugueses nem espanhóis estavam em condições de interferir nas contendas regionais, estabeleceram acordos com alguns chefes, comercializaram os bens que nestas paragens eram mais apetecidos, como cavalos, manilhas de cobre, quinquilharia, armas de fogo e cavalos. E igualmente se esclareceu que o comércio da Senegâmbia foi muitíssimo inferior àquele que se exerceu no golfo da Guiné.

Quanto ao perfil dos mercadores, armadores e contratadores, o historiador refere que “Em Cabo Verde, em S. Tome e Príncipe ou em Angola, durante o Antigo Regime, todos os homens livres, independentemente do estatuto social ou da cor da pele, desde que dispusessem de um mínimo capital, estavam ligados, direta ou indiretamente ao tráfico de escravos”. Nada como exemplificar com o negociante da Guiné que veio a enriquecer no Perú. Tratava-se de um cristão-novo, Manuel Batista Peres. Nasceu em 1591, em Ançã, distrito de Coimbra. Seguiu para Sevilha aos 11 anos e na maioridade regressou a Lisboa. Embarcou para a Guiné e fixou-se no Cacheu. Dedicou-se a comprar escravos e exportá-las para as Índias de Castela. Em 1618 abandonou a costa de África em direção a Cartagena das Índias. Não foi de mãos vazias. No navio que partiu de Cacheu (a nau Nossa Senhora do Vencimento), de que era dono e capitão transportava 509 escravos e durante a travessia morreram 90.

A cidade de Cartagena, neste tempo, era um dos mais animados centros económicos das américas. O afluxo de metais preciosos, de pérolas e de esmeraldas, bem como os negócios de tabaco e plantas tintureiras, ajudaram Cartagena a tornar-se uma cidade dinâmica e cosmopolita. O tráfico de escravos era uma atividade muito importante e exercida preponderantemente por grandes comerciantes portugueses, a mercadoria humana era reexportada para o Caribe e o interior do continente. Será nestes circuitos cercados que o comerciante de Cacheu irá inserir-se. É seu sócio e mais tarde seu cunhado Sebastião Duarte, vindo dos rios da Guiné, outro cristão-novo. Batista Peres soube diversificar os seus investimentos que abarcavam a exploração de minas de prata. Fez crescer a fortuna, era culto e tudo indicava ser um católico fervoroso. Em 1635, porém, aquele mundo de prosperidade desabou para Batista Peres, o Santo Ofício acusou os cristãos-novos portugueses de práticas judaizantes e de estarem mancomunados numa tenebrosa conspiração para dominarem a América Espanhola. Batista Peres foi detido, e não lhe valeram as testemunhas que vieram em sua defesa. Durante quatro anos, sofreu todo o tipo de interrogatórios e humilhações, manteve-se firme até ao fim. Foi queimado vivo em 1639, muitos dos incriminados foram expulsos da América Espanhola. Como refere o historiador, a fama dos portugueses monopolizarem no vice-reinado do Perú o tráfico de escravos fora-lhes fatal.

Vejamos agora o comércio negreiro ao tempo do Marquês de Pombal. Em 1755 foi criada a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, companhia privilegiada que ficava com o exclusivo do fornecimento de escravos às capitanias do Pará e Maranhão. Entre muitos privilégios que lhe foram concedidos, contava-se o direito a dispor de navios da armada real. A Companhia procurou instalar uma poderosa rede comercial que abraçava a Europa, a África e a América do Sul. Aqui entra a Guiné. Para o resgate de escravos nas costas de África recebeu o comércio exclusivo das ilhas de Cabo Verde e da Costa da Guiné, desde o cabo Branco até ao cabo das Palmas. Estabeleceu as suas bases estratégicas em quase todas as ilhas de Cabo Verde, na Serra Leoa, em Cacheu, em Bissau, em Luanda e em Benguela. Entre 1756 e 1788, a Companhia transportou para o Brasil cerca de 30 mil escravos. Desses escravos, mais de dois terços eram provenientes dos “rios da Guiné” (entre o rio Casamansa e a Serra Leoa). No fim dos anos 1750, foi criada a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, que em pouco tempo ficou com o campo livre para operar quase exclusivamente em Angola. Entre os acionistas das duas companhias estava a nata da sociedade portuguesa. No topo, a família real. D. José I subscreveu 50 ações da Companhia de Pernambuco e Paraíba e sua mulher, D. Marina Vitória de Bourbon, filha do rei Filipe V de Espanha, possuía o mesmo número de ações da Companhia do Grão-Pará e Maranhão. Por sua vez, Sebastião José de Carvalho e Melo e a mulher, D. Leonor Ernestina Eva Josefa Wolfgang, condessa de Daun, tinham ambos ações da Companhia do Grão-Pará. Eram acionistas membros do Governo, da nobreza e até bispos. Entre os acionistas da Companhia do Grão-Pará e Maranhão surgem as abadessas e religiosas dos conventos da Nossa Senhora da Nazaré (Setúbal) e de Santa Apolónia (Lisboa), a congregação do Oratório da cidade do Porto ou o recolhimento de Nossa Senhora da Conceição (Penafiel).

Arlindo Caldeira com este admirável livro prestou um grande serviço à cultura portuguesa, escalpeliza as mentalidades, os interesses e mostra a miríade de tensões que trouxe o abolicionismo da escravatura, tanto em Portugal como no Brasil, mostra estatísticas e como tudo se passou até à ilegalização do tráfico. Nesta última fase, o transporte dos escravos cresceu em desumanidade, a clandestinidade levava a esconder escravizados nos lugares mais inimagináveis; para alijar culpas no momento da captura, as tripulações eram capazes de recorrer a qualquer expediente, incluindo a eliminação física dos escravos embarcados. É uma leitura palpitante e desconcertante, até ficamos a saber que o famoso filantropo Conde de Ferreira foi um importante traficante de escravos, acionista de várias companhias de seguros marítimos e com uma apreciável diversificação de investimentos. Não tendo herdeiros diretos deixou da sua imensa fortuna uma grossa fatia para solidariedade social, contemplando hospitais, asilos e misericórdias em Portugal e no Brasil, um fundo para a criação de 120 escolas primárias e a construção e manutenção de um hospital psiquiátrico ainda hoje em funcionamento na cidade do Porto. É uma leitura assombrosa que a todos se recomenda.
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Nota do editor

Vd. poste anterior de 11 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12276: Notas de leitura (533): Escravos e Traficantes no Império Português, por Arlindo Manuel Caldeira (1) (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Tony Borie disse...

Companheiros.
Este mundo é assombroso!
Eu leio sempre, ou quase sempre o Mário, pois sei que vou aprender algo.
Desta vez, fiquei com a impressão, é só uma pequena impressão, que hoje sei ler e escrever mais ou menos em Português, e em parte devo esse privilégio, ao avô ou bisavô, ou pai do bisavô, do meu "irmão", pois era assim que ele me chamava, Iafane, que era o tal meu amigo, barqueiro do rio Mansoa, que fumava os tais cigarros feitos à mão comigo, na sua cabana, que naquele tempo existia ao lado da ponte do rio Mansoa!.
Pois aprendi a ler e a escrever numa escola que devia de ter sido "patrocinada", "ajudada", talvez "construída", com dinheiro desse tal senhor "benfeitor", de que o companheiro Mário fala, e talvez não tenha sido só eu, muitos de nós, sabemos hoje comunicarmos graças a esse "malvado benfeitor"!
Olhem, uma vez, lá no norte, quando era jovem e disse que era "from Portugal", uns sujeitos, que até eram professores, disseram-me qualquer coisa parecida com este texto, e eu com cara obediente, disse-lhes "sorry"!.
Obrigado, companheiro Mário, por mais este documento, que afinal, a ser verdade, clarifica muitas coisas.
Tony Borie.

Antº Rosinha disse...

Mais uma de Beja Santos para ajudar a compreender o que nos aconteceu.

Só queria dizer que esta dos cristãos novos, cristãos velhos, e ateus, continuamos a ser sempre cristãos e a cristianizar.

Ainda estes dias cristinazámos uns tantos apanhadores de "azeitona de Elvas", parecia-me pelas imagens da televisão.

Mas parece que não era muito difícil arranjar escravos, ainda hoje pelo que assistimos na apanha de azeitona e em "lampedusa".

Quantos em Cacheu não teriam embarcado porque simplesmente os manjacos aprenderam a dizer "misti b´leia"?

O mundo dá voltas!

Luís Graça disse...

Toni:

O Conde Ferreira, esse mesmo, foi de facto o maior benemérito português do Séc. XIX: (i) não só mandou construir de raíz o primeiro hospital psiquiátrico do país (que tem sede no Porto, e que ostenta o seu nome), como (ii) deixou uma parte considerável da sua imensa fortuna para se construir mais de uma centena de escolas, por todo o país, de Alenquer a Vila de Foz Coa, as famosas escolas Conde Ferreira... Uma delas foi a tua, em Águeda, e outra a minha, na Lourinhã, justamente aquela onde eu fiz a escola primária...

José Ferreira enriqueceu em África e no Brasil... O que o levou a ser nobilitado ? Apoiou, política e financeiramente, a causa da futura D. Maria II, filha de D. Pedro IV... Como “o amor com amor se paga”, a raínha Dona Maria fez do José Ferreira, filho de médios camponeses de Gondomar, cavaleiro, depois barão, depois visconde e finalmente Conde...

Claro que a nobilitação, muito desejada e procurada pela burguesia rica, tinha a ver a benemerência, um conceito muito valorizado no Séc. XIX, e que é um sucedânia da caridade senhorial... Era socialmente desejado que os ricos e os poderosos não fossem apenas ricos e poderosos, mas, sim, que fossem também beneméritos, substituindo-se supletivamente ao Estado, em domínios como a saúde, a protecção social, a educação, a cultura, as artes...

O Estado liberal, no Séc. XIX, não tinha preocupações sociais, limitava-se a ser o polícia de cassetete na mão e apito na boca para fazer cumprir a lei e a proteger a propriedade... Foram as preversões da industrialização e da urbanização que leveram á criação do chamado Estado-Providência...

Era a época em que os ricos fundavam hospitais e outras obras assistenciais e punha-se, as eguir, uma placa na parede a dizer: “Ao grande benemito fulano tal, que antes de fundar o hospital, criou os pobres e os doentes”…

Claro que depois eram nobilitados pela coroa, e o povo rosnava para o cão: "Foge cão que te fazem barão” e o cão responde: “Para onde, se me fazem visconde ?”…

Esta célebre frase irónica (ou melhor, sarcástica!) é atribuída ao Almeida Garrett... O conhecido escritor e político liberal invectivava assim o alegado uso e abuso que, no tempo da monarquia constitucional, se fazia das "nobilitações"...

Por razões nem sempre "nobres" (leia-se: desinteressadas…), os nossos reis "nobilitaram" muito burguês... O próprio Garrett não escapou à "sorte" de ser "visconde"...

Tony Borie disse...

Olá Luis.
Aqui ainda é de dia, e estou por aqui, pois lá fora está "um calor de rachar", obrigado pela tua simpática mensagem, elucidou-me de algumas "virtudes", que na época havia no nosso Portugal, "dos reis e rainhas"!.
É a nossa história, e devemos respeitá-la, para que no futuro, os nossos vindouros, nos respeitem a nós.
Olha, na parte final do meu comentário, explico "que havia uns sujeitos que até eram professores", e isto passou-se num congresso, em Nova Iorque, tratando de assuntos relativos à minha profissão, onde era discutido a poluição industrial nas cidades, onde tive a honra de assistir, era a única pessoa de descendência portuguesa na sala, e quando se falou, no bairro de Queens, que é o segundo distrito mais populoso, da cidade de Nova Iorque, quase habitado na sua totalidade por afro-americanos, e que na altura havia um movimento que queria erguer uma estátua em honra de Catarina de Bragança, que há umas centenas de anos atrás "casou por encomenda" com o rei Carlos II, de Inglaterra, e cujo nome de Queens foi dado ao distrito em homenagem à nossa princesa de Portugal, que depois de se casar com Carlos II, ficou no "papel", a ser rainha de Inglaterra, Escócia e Irlanda, se não estou em erro. Pois esse movimento, foi única e simplesmente parado, por várias manifestações, onde era voz corrente que era uma princesa "negreira", com ligações a tráfico de escravos, (coitada da pobre, o Carlos II, sempre a ignorou, era tudo, mais isso) e eu, expliquei, que se isso era verdade, pedia desculpas, em nome do país de onde era oriundo.
Na verdade, creio que o movimento parou, e não sei mais nada, do destino que foi dado à estátua, que já estava em construção.
Pronto, já vou longe demais, e não vos quero roubar mais tempo.
Abraços a todos.
Tony Borie.

Anónimo disse...

Eu fiz a minha 4ª.classe na Escola Conde Ferreira em Cascais.
O comentário do Luís é bem supletivo ao texto do Mário, e permitem desde já extrair alguma conclusão: a dignidade humana era mais espartilhada do que hoje, e os escravos de então eram mera mercadoria.
Aquele senhor tinha valores (ou quiz redimir-se dos pecados terrenos), deixou uma fortuna para causas sociais. Também a igreja se juntava aos nobres e burgueses no capital de empresas coloniais em que o trádico era actividade que não levantava pruridos.
Mas a sociedade evoluíu muito com a Revolução Industrial, alargou-se o conhecimento, o ensino expandiu-se, os valores/direitos do homem receberam consagração. Mas não estou certo de que tenha acabado a escravatura, apesar de hoje as pessoas terem a possibilidade de fazer algumas escolhas. Veja-se o momento corrente e as fórmulas mais ou menos encapotadas para restringir direitos, com as leis laborais influenciadas de um liberalismo redutor para a mão-de-obra.
E o mais sofisticado, é que pelo recurso a assessores científicos, conseguem massificar maneiras de pensar e de decidir, que chegam ao ponto de induzir a população a votar nos seus carrascos.
Acabo com dois pensamentos de Chomsky, um americano na berra, que afirma "capitalismo e democracia são incompatíveis", e que à "fábrica da Opinião Pública" deve opor-se a "auto-defesa intelectual".
Abraços fraternos
JD