segunda-feira, 30 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P36: Na bolanha dá para pensar... (Marques Lopes)

1. Os meus parabéns ao A. Marques Lopes pelo seu belíssimo texto que eu encontrei no sítio do Didinho e que já havia divulgado, neste meu/nosso blogue, através da indicação de um link…

Mal o descobri, logo achei que ele merecia outro destaque, partindo do princípio de que o seu autor iria autorizar-me a sua reprodução. Tinha desafiado o Marques Lopes a, num dia destes, explicar-nos o texto e o seu contexto: as circunstâncias, o dia, a hora, o local, a operação, que o levaram a escrever esta peça, de grande tensão dramática mas também de fino humor...

Ele acabou por desvendar o mistério, descrevendo-nos as circunstâncias (diria que insólitas, quiçá caricatas e até burlescas, se não tivesse sido tão dramáticas) em que se perdeu no mato e descobriu, atónito, a base do IN em Sinchã Jobel, no decurso da Operação Jigajoga, na noite de 24 para 25 de Junho de 1967 (vd. poste anterior).

É um texto de uma grande riqueza humana e de excelente recorte literário... Um texto de cortar a respiração, ao reconstruir o inferno da guerra, o infermo físico e psicólogico daquela guerra, ao mostrar o absurdo daquela guerra e das raus razões de Estado...Fiquei com a ideia de que, mais do que uma simnples página de um diário, poderia ser o excerto de um livro em curso. Um daqueles livros que se vai construindo na cabeça de cada combatente da guerra colonial na Guiné, depois de passar à peluda. Um livro que todos nós, um dia, gostaríamos de escrever e de publicar. Ou de ter escrito e de ter publicado. Um livro que gostaríamos de dar a ler, porventura com secreto prazer mas seguramente com reserva e pudor, à nossa companheira, aos nossos filhos e netos, aos nossos pais, aos nossos irmãos e e aos nossos amigos, e até aos poucos companheiros da nossa geração que não foram à guerra. Talvez um livro, ou talvez apenas um conto, um conto de guerra, em todo o caso a merecer antologia...

Espero que o nosso ex-camarada de armas continue a escrever, sobre a sua experiência militar e humana na Guiné, que foi tão rica e que lhe deixou marcas no corpo e na alma. Tudo indica, pelo que já sei dele, que foi um grande operacional e um grande sortudo, apesar de tudo. Como todos nós, que regressámos do inferno e ainda estamos vivos para contar, aos vivos, o que um homem é capaz de sentir, pensar e fazer numa situação-limite como a guerra, como aquela guerra. Pelo menos no dia 25 de Junho de 167, de manhã, na região de Sinchã Jobel, o Alferes Lopes regressou do mundo dos espíritos da floresta, e disse: "É tão bom estar vivo e saber onde estou e o que quero! Bem, Braima, rapaziada, toca a sair daqui".

Faço votos para que O A. Marques Lopoes continue a escrever, para ele, para nós e para todo o universo dos falantes da língua portuguesa, agora que, terminada a sua carreira militar, ele está, presumo, mais livre ou se sente mais livre para o fazer... Porque talento de escritor e matéria-prima não lhe faltam. L.G.

2. Na bolanha dá para pensar... (A. Marques Lopes, 2005)

(Originalmente publicado, em 13 de Fevereio de 2005, na página pessoal do guineense Fernando Casimiro, o Didinho)

Bonito! Os outros foram-se embora e aqui estamos, meia dúzia de mecos, no meio da bolanha. Tenho cada ideia, ás vezes... esta, então, de escolher a bolanha para descobrir se eles têm aqui uma base é do caraças. Que havia de fazer?... eles não nos deixaram aproximar mais por outro lado... O que vale é que não perdi o quico. Sempre me dá jeito e vou já mergulhá-lo na água, para ficar com as ideias mais frescas... Sabe di más!... Como é que eu não perdi o raio do quico no meio desta baralhada toda?!... Tem estado agarrado à minha cabeça como qualquer coisa que é parte integrante de mim mesmo... mas não é, claro. No entanto, tenho-o enfiado na cabeça de tal modo que mais parece o contrário, parece que faz parte de mim.

Tenho que pensar para ver como nos vamos safar daqui. Por agora, é de aguentar. Aqueles gajos continuam a andar por aí, que eu bem os oiço, mas não os vejo, no meio destas cortinas de capim. Se eu não os vejo, eles também não me vêem a mim... mas, é melhor não me armar em avestruz e pôr-me mas é a pau! Há barulho de passos no carreiro e na clareira e oiço cortar ramos e bater no chão. Estão a montar armadilhas, com certeza. Com uma base aqui, era o que eu faria também, para prevenir novas aproximações. Não são parvos, não senhor... e isso não me ajuda nada, pois estou a sentir-me cada vez mais entalado. Mesmo que se vão embora daqui a bocado, não me atrevo a meter-me por esses caminhos. É mais que certo que vou topar com uma armadilha, e não me agrada nada... se não lerpei até agora, não será por minha vontade que isso vai suceder daqui para a frente.

É evidente que eles não podem armadilhar toda a zona... têm de garantir o regresso do grupo que foi até à margem do rio Gambiel. Deve haver, evidentemente, um caminho não armadilhado... mas como vou adivinhar qual é? Não me atrevo a voltar por aqueles que conheço, por onde vim até aqui, pois esses estão-no, com certeza... porque são os mais evidentes. Posso procurar outros... mas quem me garante que não vou pisar uma puta duma bailarina? Não me arrisco. Tenho de pensar noutra maneira de sair daqui. Mas como?... só se me armar em Tarzan de árvore em árvore, agarrado às lianas... Havia de ter piada!... De qualquer modo, nem isso pode ser, pois lianas... cá tem. Não vi lianas em lado nenhum deste matagal. Nos filmes é que elas estão ali, mesmo à mão de semear, no sítio exacto e necessário. Mas aqui, de facto, não há nada no seu lugar devido, para me facilitar a vida.

Já lá vai o tempo em que as coisas para mim eram fáceis. Em termos de garantia de subsistência, em termos de programação de vida. Quando eu estava nos padres. Tinha tudo. Pequeno almoço, almoço e jantar a horas certas, brincadeiras e estudos programados e dirigidos. Havia, apenas, que cumprir o regulamento e ser piedoso. Mas tinha um grande contra para mim: não se podia cometer pecados.

(...) Não vou, agora, pensar nessas coisas, senão ainda me ponho aqui a rezar em vez de puxar pela cabeça e ver se nos safamos... O mapa, o mapinha que trago sempre comigo quando venho para estas coisas! Sou um gajo cumpridor das regras...Goza, goza, mas o facto é que o mapa me vai fazer jeito. Braima, dá-me aí o mapa. Sare Ganá... Sinchã Sutu aqui... a picada para sul e, aqui à direita, o desvio de Sare Madina... mais à frente... aqui está Sucuta, a bolanha e o rio Gambiel... que atravessámos com cuidado, por cima do troco submerso... avançámos por este carreiro... e aqui está Jobel... Sinchã Jobel, como vem aqui no mapa!... Aqui, no extremo da clareira, foi a emboscada... e cá está assinalado o palmeiral e, ao lado, a bolanha onde... por aqui, mais ou menos... estou com o cú de molho!... E estou mesmo todo encharcado, pés, botas, calças... Debaixo deste sol, o melhor seria estar só com a cabeça de fora, como as rãs. Mas não pode ser. Já não é mau ter o material ao fresco.

A nossa posição, pelo que estou a ver no mapa, não é famosa. A bolanha, que deve ter servido para as culturas de arroz de Jobel, vai até ao rio Gambiel, formando no encontro com ele um ângulo recto. Portanto, segue paralelamente ao caminho por onde vim para chegar ao local da tabanca. Esta bolanha é uma espécie de braço do rio na época das chuvas, mas na época seca tem mais capim que água. Está à vista. Assim sendo, e se estou a ver bem, se regressarmos ao longo e por dentro da bolanha, vamos ter a umas centenas de metros mais a norte do sítio onde atravessámos o rio. E tem mesmo de ser assim. Não vejo outra alternativa mais segura. E também me parece que, se o local de atravessar o rio era aquele que me indicou o guia quando viemos para cá, é porque não havia outro mais acima. Não, não estou disposto a correr o risco de atravessar noutro sítio que não seja o que já conheço. Esta bolanha não a conheço e não tenho, portanto, outra alternativa senão ir por ela, com cuidado, só se tiver azar é que vou cair nalgum buraco. Mas, quando chegar ao rio, já sei que há um lugar seguro para passar, Sucuta. Temos de descer até lá. Um rio não é uma bolanha, para se ir assim à aventura.

Tem que ser. Descemos a bolanha até ao rio e vamos passá-lo no mesmo sítio da vinda. O problema é que, se nos pomos agora a andar pela bolanha abaixo, caçam-nos que nem patos na água. Topam-nos no meio e é só apontar calmamente. Quer dizer que não posso largar daqui em pleno dia. Não tropeço numa mina nem caio num buraco, mas o mais certo é não dar dois passos sem levar uma rajada nas costas. Merda! Será que tenho mesmo de fazer isto à noite, cair num buraco e enfiar-me pelo rio dentro?... Puta de vida! Mas, não, não posso estar condenado, tem de haver uma saída. Deixa pensar mais um bocado. Vou refrescar os miolos outra vez... mais uma chapelada de água... Parece sopa, mas é mesmo boa! A vantagem de ter abancado neste charco é que tenho água para me refrescar, quanta quiser.

(...) A única possibilidade que temos de nos safar daqui é arrancar amanhã muito cedo. Às 5,30 já se começa a ver alguma coisa. Já podemos ir vendo onde pôr os pés e orientar-nos... além de que, segundo dizem os manuais, as sentinelas têm tendência para abrandar a vigilância pela madrugada e deixarem-se adormecer antes de despontar a aurora... Terá de ser nessa altura que vamos desandar daqui p´ra fora. E oxalá os gajos não tenham lido os manuais também!...

(...) Que calor infernal faz aqui no meio do capim! O sol e o ar quente entranham-se por entre os caules e permanecem também eles poisados sobre a água. Não há a mais leve aragem. A estagnação é total, na água e no ar. Afinal, não é nada bom estar aqui de molho... As rãs devem sentir-se melhor, com certeza, mas eu mais pareço uma azeitona em água parada, opaca e gordurosa. Começo a ter sede. Não trouxe o cantil, pois não contava com esta variante no programa das festas. A estas horas já eu devia estar a comer um bom bife de vaca, isto é, um bife dos cornos da vaca... nesta terra parece que não há carne tenra. De qualquer modo, com batatas fritas e empurrado com cerveja, com muita cerveja, não há nada que não entre pelas goelas adentro. E cerveja não falta para a tropa. Valha-nos isso... Afinal, lamento-me com sede, mas estou rodeado de água por todos os lados, como as ilhas. É só enfiar a cabeça no charco e abrir as goelas... Mas há por todo o tipo de bicharada. Eu seja cão se vou beber esta porcaria. Prefiro beber mijo.

Há vozes e barulho. O IN continua por aqui, a rebuscar no mato e a montar armadilhas. O tipo que eu vi com um penso no braço e companhia não vão largar tão cedo. Devem estar bastante confiantes, uma vez que não largam este sítio e não se preocupam com o barulho que fazem. Devem ter montado uma sentinela do lado de cá do rio. Sabendo de qualquer avanço, poderão organizar a defesa ou montar emboscadas com facilidade e segurança. Este local é de acesso muito difícil. Segundo o mapa, só de um lado é que não está cercado de matagal. É o lado da bolanha e do rio. E mesmo este é um bom bico d'obra. Tenho de aguentar e ver, pois eles não estão com vontade de se ir embora.

Relax e esquece o IN... O IN! Toda a gente usa isto. É mais fácil dizer IN do que "inimigo". Acho que é por isso que usamos estas abreviaturas... No entanto, tornando mais fácil a referência àqueles ou àquele de quem falamos, o "in" e o "turra" são, de facto, expressões meramente referenciais e sem o significado profundo contido nas palavras "inimigo" e "terrorista". Se não abreviasse, é claro que eu acabava por me cansar a pronunciar as palavras por inteiro. Passaria, enfim, a tratá-los com demasiada familiaridade, teria que me arrimar aos inevitáveis "os gajos", ou "os tipos" ou mesmo "os filhos da puta". Era tratá-los como trato, às vezes, os que me são indiferentes, os que me pisam ou dão um empurrão... Isto seria, seguramente, o abandalhamento da guerra. Em vez de balas a malta começava a amandar-lhes com nomes feios, a gritar-lhes que fossem levar no olho, que não chateassem, que nos deixassem em paz... Era complicado. Não havia guerra que durasse. Poderia ser uma das consequências, resultante do cansaço pelas palavras difíceis e compridas demais para inserir na linguagem corrente da soldadesca. E poderia dar noutra coisa, se o maralhal não usasse profusamente estas abreviaturas: ao pronunciar por inteiro as palavras "inimigo" e "terrorista" é natural que começássemos a interrogar-nos sobre a correspondência entre o significado e o significante... Ai estas aulas de Linguística!... O que é isso de "inimigo"? Aqui, na terra deles, são eles meu inimigo?... Atacam-me para me roubar, para ficar com o que é meu?... Têm interesses opostos aos meus e atacam-me, por isso?... Para eles, sou eu o inimigo? Venho roubar o que é deles? Tenho interesses opostos aos deles?... Claro, cinco séculos de história, civilização, blá, blá, blá..., como diz o Salazar. O facto é que isso se traduz nos libaneses a dominar o comércio, no nazi Landorf, fugido da Alemanha depois da guerra, a vender quinquilharias aos pretos de Geba. Eu, aqui, só estou a perder uma coisa: o curso de Filologia Românica que estes filhos da puta não me deixaram continuar. ... Não me parece que o "in" seja meu "inimigo". Eu sou, com certeza, o "inimigo" deles. Linguística à parte, isto é mesmo uma situação aberrante.

(...) Há pouco, quando os vi ali todos juntos, ainda pensei em disparar. Acabei por não o fazer e acho que fiz bem. É claro que eles devem ser muitos mais do que os que andam por aqui... E, sei lá, disparar, assim à queima-roupa sem que eles esperassem, sem mais, ainda era capaz de ficar com algum peso na consciência... Os meus anseios nunca foram matar. Só por medo o faria, por necessidade, pela situação. Tenho encarado isto como uma aventura. A verdade é que nunca desejei vir para a guerra. Se me tivessem dado o adiamento da incorporação, estaria, agora, a terminar o segundo ano de Românicas. Eu até gostava daquilo. Mas aos senhores da guerra não interessam os doutores em Letras. Se eu estivesse em Engenharia ou Medicina, isso sim... há sempre pernas e braços para cortar, certidões de óbito para passar, há que fazer quartéis, arame farpado para erguer e picadas para abrir. Para os doutores ou candidatos de Letras há que pôr-lhes mas é uma canhota nas mãos. Na guerra não servem para mais nada...

(...) Se eu tivesse continuado nos padres, o mais certo era não ter vindo à guerra ou, então, vinha como capelão, um ofício que, aliás, também faz muito jeito na guerra. Há preconceitos a alimentar, consciências a adormecer e angústias para apaziguar. Sou vítima da vingança concertada dos senhores da guerra e dos senhores da consciência: já que não quiseste reconhecer os imensos benefícios da religião, sentir a honra de pertencer ao número dos eleitos, vais sentir as agruras da guerra... que é um inferno na terra.

(...) Dentro em breve será noite. Já se estendeu sobre a bolanha um manto enorme de sombras, sinal de que o sol se começou a esconder por detrás da grande floresta de poilões que rodeiam a clareira de Jobel.

Já não estou tão calmo e seguro. A previsão do perigo eminente, a expectativa da emboscada ou do ataque repentinos não são nada comparados com um perigo que nos rodeia mas que não sabemos qual é, nada em comparação com este manto de escuridão que se abate sobre nós, que se entranha na minha farda, que me cobre as mãos, as pernas, o local onde estou. As trevas, meu Deus, é o pior que me pode acontecer. Mil vezes a emboscada que desaba sobre o grupo, mas que eu vejo, que acabo por limitar em todas as suas proporções, do que o perigo que só se imagina mas que nunca se vê, nem mesmo quando está em cima de nós.

Nesta terra de ténues ondulações a noite surge depressa. Começo a não distinguir as minhas próprias mãos. Não percebo como os outros ao longe as poderão ver. Mas vou fazer o que mandam as regras, barrá-las, e à cara também, com esta lama onde me assento. Mas, antes, vou beber desta água que me tem de molho há várias horas. Os outros já estão também com falta de água...Que remédio, tenho sede. Nunca a fome me atacou durante todo este tempo, mas a sede é um tormento e eu quero que se lixe a limpeza. Vou mesmo beber esta água, agora que já não consigo ver o seu grau de sujidade e inquinação.

Os sons nocturnos assumem proporções descomunais em relação aos diurnos. Aquilo que durante o dia me parece uma grande algaraviada, uma sinfonia de cacofonias, aparece-me agora como uma execução em estereofonia. Consigo distinguir todos os sons e vozes de pássaros. Aquilo que me parecia uniforme na promiscuidade de vozes aparece-me agora como o conjunto de várias espécies de pássaros e mamíferos. Não sei identificá-los pelo nome, a não ser o dos macacos, mas sou capaz de os contar através das diferenças de vozes. Na margem da bolanha, entre as árvores, são os macacos e os periquitos que dominam. Aqui, por aqui mais perto, são as moscas e mosquitos que não cessam de zumbir aos meus ouvidos. De vez em quando há um ruído na água. Pode ser um peixe a saltar, mas também pode não ser... Ao longe, um pássaro, penso eu que é um pássaro, lança um pipilar modulado que mais me parece um uivo de lobo. Mas, segundo sei, aqui na Guiné não há desses bichos...

Quem me dera a mim que se ouvissem só os macacos, os periquitos, as moscas e os mosquitos! O que me enerva e causa medo são os mil sons que eu desconheço. Este borbulhar na água pode ser uma cobra e aquele chapinhar mais além pode ser um javali, o resfolegar que vem das palmeiras pode ser uma onça...

Lá mais para a frente, do outro lado da clareira, precisamente daquele sítio onde os guerrilheiros montaram a emboscada, vêm ruídos que parecem provocados por pessoas. Ia jurar que há uma tabanca para estes lados... Como é que eu não me apercebi destes ruídos durante o dia? Seria mais lógico que os ouvisse melhor , uma vez que as pessoas fazem mais barulho durante o dia do que à noite. As marteladas, ou outras pancadas em madeira, deveriam ser mais audíveis durante o dia, quando não há tanta preocupação em manter o silêncio, em não incomodar. A explicação tem de ser esta: a tal enorme cacofonia diurna, que não deixa qualquer hipótese de identificação dos sons a que nos habituámos no nosso dia-a-dia. Porque a noite não deve ter sons, qualquer um que surja é identificável e sobressai no meio do silêncio, como milhares de pirilampos que, apesar de minúsculos, sobressaem na escuridão sem, no entanto, se conseguirem juntar num sol que torne a noite em dia.

Distingo perfeitamente os toques na madeira. Pilão ou martelo, é bater de gente. E surgem agora sons que só podem ser vozes de gente também. Então, contrariamente ao que me garantiram, esta zona não é desabitada! Isto explica a emboscada. Entrei no terreno deles, com tanto à vontade... e estupidez! Tenho de falar com o palerma do major de operações... se conseguir sair daqui.

(...) De olhar no escuro, tentando fazer luz com os olhos e com a mente, ver mais além do que esta escuridão me permite, na expectativa. Esta noite faz-me lembrar outras noites que passei à janela, de olhar perdido no escuro ou na barreira de ciprestes que cercavam aquele pequeno mundo do seminário. Mas bem pior estava então, apesar de tudo. Neste momento, estou esperando, pacientemente; nervoso, mas não desesperado; receoso, mas não em pânico; sozinho, mas não perdido. Não estou triste, não choro e não desejo a morte. Pelo contrário. Impaciente, desesperado, perdido, em pânico e desejando a morte... assim era eu, não há muito tempo. Passaram-se apenas três anos. Tinha vinte anos e não tinha outros horizontes senão uma vida de torturas e recalcamentos, ou o inferno como alternativa.

Mais do que as obrigatórias meditações em conjunto no seminário, no meio dos maus cheiros dos "irmãos em Cristo", de olhos fechados em atitude piedosa, este é o ambiente ideal para meditar, ligado pela escuridão à natureza. Naquelas mais de mil noites nunca consegui estar sozinho, apesar de me lamentar de uma solidão terrífica. Os outros e a organização estavam sempre presentes em mim, quando lutava sozinho para me ver livre deles. Por isso mesmo. Enquanto tive dúvidas nunca me largaram. Só me deixaram quando eu passei a ter a certeza do que queria e do que não queria.

Aqui, na guerra, não há outra coisa que me ligue aos outros a não ser o desejo de sobrevivência, e este desejo liga-me efectivamente, mas não o sinto como prisão. Pelo contrário, liberta-me para este tipo de meditações, para aceitar e tirar partido desta noite, para estar com todos no desejo de regressar, de não morrer, de viver. Lá, não. Os laços que me prendiam aos outros só me arrastavam para desejos de morrer e de os odiar. Aqui, na guerra, não há perigo de ter dúvidas, a certeza surge-nos dos factos do dia-a-dia. É tudo muito real, muito directo, entra-nos pelos olhos dentro, por todos os sentidos. Quando se nos revela assim, e surge sempre, mais tarde ou mais cedo, é um facto que faz parte de nós e é, portanto, uma certeza. Quando vim para cá não sabia nada o que era esta guerra. Mas já estou a saber o que é.

Tenho-me interrogado variadas vezes sobre as razões por que entrei para o seminário. Mais para carpir uma mágoa por um passo mal dado do que para tentar esclarecer aquilo que já sei. Foi a minha condição de menino pobre que me pôs perante essa necessidade. Mas nem por isso, naturalmente, fui responsável por essa decisão. A necessidade foi dos meus pais, que aproveitaram o desejo de um padre que se arvorou em meu protector. As pressões daí decorrentes, o meio em que passei a ter de me mover, fizeram o resto. À distância, sinto em mim uma grande mágoa por não ter conseguido libertar-me mais cedo dessa catástrofe que sucedeu na minha vida. Mas, nem sei se poderia ter sido diferente. Para quem tinha fome, para quem passava o dia com uma fatia de pão com margarina ou, mais do que uma vez, com uma côdea seca, era impossível recusar a possibilidade de ter refeições a tempo e horas. Como não aceitar a perspectiva do café com leite e pão com marmelada, da sopa, da carne e do peixe, se cheguei, quando era puto, a ter que andar aos caixotes?... Já tenho desejado muitas vezes não acreditar em Deus. Mas não consigo. Numa guerra, nesta guerra em que me encontro como interveniente activo, a fuga, os desejos, a esperança, a ideia de quem morre são os outros e não eu, tudo está depositado em Deus, que me há-de proteger e guardar... Mas porquê a mim e não aos outros?... aos que morreram, aos que ficaram sem braços e sem pernas, aos que ficaram cegos e aos que ficaram loucos? É uma dúvida e, ao mesmo tempo, uma incompreensão muito funda que se afoga e perde naquilo que a minha formação religiosa chama "os insondáveis desígnios de Deus"... Quer dizer que, se eu morrer ou ficar estropeado, foi desígnio de Deus, se eu sair bem disto tudo, será também vontade de Deus. E posso, desta maneira, encontrar em Deus a "explicação" de todas as coisas, poderei continuar tranquilamente a fazer a guerra. Posso matar, porque nos desígnios de Deus tanto pode estar o castigo como o prémio. O desígnio que eu mate, o desígnio que o outro morra. O prémio para mim que matei e não morri e o castigo para o outro que não me matou e morreu? Ou serei eu castigado porque matei e o outro terá um prémio na outra vida porque não me matou? Se eu comparecer perante Deus, durante ou após esta guerra, serei condenado às penas eternas ou entrarei no rol dos bem-aventurados? Serei condenado ou premiado se tiver obedecido aos meus "legítimos superiores", àqueles que " têm sobre si a pesada responsabilidade de governar e mandar"? Serei condenado ou premiado se lhes desobedecer e não matar?

"A Deus o que é de Deus e a César o que é de César". A citação fatal do director do instituto filosófico onde andei, quando seminarista, o qual, desta forma, tentava calar as minhas dúvidas. Que confusão, se o que interessa a César vai contra o mandamento "não matarás"! É uma resposta hipócrita. Procura justificar a passividade da Igreja perante a guerra... Ou consentimento? Como admitir que a Igreja abençoe a guerra? Antes de vir para a Guiné, o meu batalhão foi obrigado - é o termo - a assistir a uma missa na parada do quartel. Tal como no tempo das cruzadas, quando se partia para combater os infiéis e libertar os lugares santos. O padre capelão, o senhor major-capelão, fez uma eloquente exortação ao cumprimento do dever para com a pátria, da necessidade de defender os valores da civilização ocidental e o património legado pelos nossos antepassados... enfim, a mesma conversa dos senhores da política, abstracta, situada em algo que não me toca, em valores que não compreendo, em património que não possuo. E, ainda por cima, era um dos padres do seminário onde andei, um que eu bem conhecia.

Pode a Igreja justificar a sua atitude perante a guerra pela necessidade que há de acompanhar, assistir os soldados que passam dias e meses, anos até, de profunda angústia e desespero? Que o objectivo não é apoiar a guerra, mas sim servir de consolo religioso a quem necessita da religião? Para mim, não serve. Tentando diluir as contradições que naturalmente emergem da mente de quem é religioso, está-se a colaborar na manutenção de uma situação que o soldado não deseja instintivamente, está-se a diluir as dificuldades para que essa situação indesejável se mantenha o máximo possível. E, o que é mais grave para mim, não se responde às angústias e interrogações de quem se vê confrontado com uma realidade que é pura negação de tudo o que lhe incutiram de bom, de justiça, de amor, de fraternidade. Utilizando uma única frase dos Evangelhos - dar a César o que é de César - subverte-se todo o restante texto dos livros sagrados. Por oportunismo, pela mais rematada hipocrisia. São muitas as críticas que tenho a fazer àqueles que dizem representar-te cá na terra, ó Deus. Mas confio que me hás-de ajudar a sair deste aperto.

Tenho os membros anquilosados de tanta imobilidade. A pele das mãos está toda encarquilhada pelo permanente e prolongado contacto com a água. O mesmo deve suceder com os pés e com o material, devo ter tudo mirrado e encolhido.... Sinto nas mãos, nos braços e pelo corpo todo uma imensa comichão que, curiosamente, nunca tive vontade de coçar. Estou cheio de bolhas e ampolas, que só vejo nos braços e nas mãos mas que devem estar por todo o corpo, até na cara. À minha volta há milhares, talvez milhões de mosquitos e moscas tzé-tzé. A minha esperança é que só tenha sido picado por novecentas e noventa e nove moscas do sono... segundo dizem as estatísticas, só uma em mil é portadora da doença do sono, não é?... De qualquer modo, não sei se me fariam efeito: estou tão cheio de vacinas contra tudo que essa tal milésima, se me picou, deve ter morrido entoxicada, com certeza...

Devo ser um nojo completo. Uma merda da cintura para baixo.

(...) Começa a surgir uma luminosidade por detrás das palmeiras, uma luz branca muito mortiça. Por aqui, começo a vislumbrar uma neblina leitosa a empastar a bolanha. Há outro silêncio neste despertar da mata e dos seres que a povoam. Imagino-os dolentes, agora conscientemente enrolados sobre si mesmos, sem se mexerem, como fazem inconscientemente durante o sono. Procuram forçar o prolongamento desse sono. Por isso, este, agitado ou tranquilo, deu lugar a modorra prolongada e estática, intencionalmente silenciosa, para não acordar. No entanto, porque não é só o ouvido que está desperto e atento, como sucede na mais completa escuridão, toda esta imensa calma que precede a agitação e luta de mais um dia na vida da natureza é apenas perceptível ao nível dos sentimentos mais íntimos do meu ser, pois a luz que penetra nos meus olhos desperta nestes uma segunda dimensão que faz sentir as coisas de uma forma avassaladora e total. Tudo aquilo que povoou a minha mente, os ruídos que se apossaram de mim através do ouvido, tudo isso passou a estar submerso pela impressão visual do que me é exterior. Durante estas horas de vigília nocturna estive dominado e cercado por mim mesmo, por toda a minha vida, pelo passado.

Agora não. Sinto que tudo se vai diluindo, que a realidade externa se apossa de mim, que a posse da totalidade dos meus sentidos me introduz novamente no seio do meu destino, composto também de exterior. É uma visão "ruidosa", na medida em que este contacto com a realidade da manhã consegue abafar o domínio exclusivista do ouvido e do raciocínio. O conjunto harmonioso da vida não deixará que prevaleçam as sensações parcelares e limitadas. A total percepção da realidade não deixará que me deixe dominar por um único dos seus aspectos. A prefeita e clara percepção em todos os sentidos, agora, não deixará que me domine o medo do desconhecido ou do indefinido. É tão bom estar vivo e saber onde estou e o que quero!

Bem, Braima, rapaziada, toca a sair daqui.


A. Marques Lopes

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