sexta-feira, 25 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9944: Notas de leitura (362): "O Fardo do Homem Negro", de Basil Davidson (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 13 de Abril de 2012:

Queridos amigos,
Basil Davidson dá-nos aqui uma análise duríssima dos insucessos do estado-nacionalismo neocolonialista, em que muitos independentistas acreditaram e quiseram pôr em execução.
É uma leitura dolorosa, em que à custa de uma certa imagem do progresso se procurou vituperar a riqueza da ancestralidade africana, o passado dos novos Estados ficou no limbo como se tratasse de um primitivismo incómodo, como se aquela arte não fosse arte e aquela música não passasse de um exotismo de pechisbeque. Foram noções que deram com os burrinhos na água. É um ensaio por vezes de leitura muito difícil.
Recomendo a todos aqueles que vão até à Guiné que levem uns exemplares para oferecerem aos lideres políticos e quadros militares.

Um abraço do
Mário


Reler um clássico: O fardo do homem negro

Beja Santos

 “O Fardo do Homem Negro – Os efeitos do estado-nação em África”, por Basil Davidson (Campo das Letras, 2000) mereceu ao historiador Eric Hobsbawm o seguinte comentário: “Este é um livro de importância maior. O fardo do homem negro não é só de África que fala, mas também de etnicidade, de nações e dos problemas que levanta a vida em sociedade em qualquer parte do mundo”.

Considerado como o divulgador mais eficaz da história e da arqueologia africanas fora de África e certamente o mais ilustre conhecedor da África negra, as obras de Davidson são de leitura obrigatória nos meios universitários da Grã-Bretanha, de África e dos EUA. Há que confessar que a leitura deste documento exige muita atenção, o leitor é forçado a reapreciações, a ter que parar e regressar ao ponto de partida. Davidson parte da profunda perturbação africana, da sua assustadora degradação ambiental (cidades anárquicas, florestas tropicais engolidas pela ganância exportadora, apodrecimento de infraestruturas…), da quase total indiferença na participação popular e pergunta: onde é que os libertadores erraram, qual a origem da crise das instituições? E remete-nos para os caminhos percorridos pela generalidade destes Estados que emergiram da partilha colonial. Lembra-nos que o que se apregoa como tribalismo não é mais, em grande número de casos, de que um clientelismo que cerca o alto dirigente político, a sua caução à corrupção dentro de redes pessoais e familiares, o suborno das forças militares e paramilitares para os manter como zelosas guardas pretorianas do regime.

Numa tentativa de encontrar analogia na vida difícil que leva os Estado-nação africano pós-colonial com outras situações, Davidson recorda que a Europa Central e Oriental viveu o mesmo tipo ebulição quando nasceu a consciência de Estado-nação e começou a germinar o ideal da separação dos grandes impérios, como o austro-húngaro e o turco. Recorda igualmente que a história de África, no essencial, está circunscrita ao que os investigadores coloniais e pós-coloniais escreveram. Em momentos-chave do século XIX, chegaram escravos emancipados à costa ocidental africana e ocuparam a Libéria e a Serra Leoa. Muitos séculos atrás, os seus ancestrais teriam vindo do que são hoje o Gana, a Costa do Marfim e a Nigéria. O que é importante registar é que estes escravos livres montaram sociedades à luz do que conheciam da vida americana, instituíram um género de melodrama trágico agindo como uma pequena burguesia nacionalista, copiando os tiques, as instituições e até o estilo de vida que se praticava nas colónias britânicas e francesas.

Era tal a preocupação destas elites de homens instruídos e civilizados em criar Estados-nações segundo o modelo europeu que se desvincularam do passado da África negra. Estas elites tinham noção de que os europeus não queriam servir às ordens dos africanos e cientes dessa segregação apostaram numa imagem de civilização baseada num nacionalismo intransigente. Este apontamento é indispensável para entender as promessas que os independentistas traziam para África na época da descolonização (portanto a partir de 1950), como prometiam criar participação popular e sociedades mais igualitárias e como, de um modo geral, falharam rotundamente. Davidson procede ao estudo do Gana, analisa a sua história profunda e deixa claro que o desprezo que a nova classe política manifestou pelas instituições ancestrais cavou a sua própria ruína. Ora a história do tribalismo pré-colonial era uma história de nacionalismo. Davidson esboça a história de África desde aproximadamente 6000 a.C. e evidencia as sociedades governadas de forma autónoma que foram amesquinhadas pelas potências coloniais e escreve: “Para a maioria dos viajantes e observadores ocasionais estrangeiros, África parecia viver numa situação malévola de caos. Após 1850, os viajantes e os observadores da África oriental começaram a entrar em terras assoladas por um comércio de escravos relativamente recente; e descobriram, desde a costa suahili em direção a ocidente, até aos Grandes Lagos, ou desde a parte do Sudão em direção a sul, até Moçambique, provas terríveis da morte e da devastação causadas por este comércio de escravos. Os viajantes em outras partes de África, especialmente na África ocidental, não descobriram uma situação idêntica mas encontraram sociedades que tinham sido devastadas muito antes pela mesma maldição da escravatura”.

O comércio de escravos subverteu hierarquias, derrubou culturas, cimentou ódios entre tribos, pois umas negociavam com seres humanos que eram capturados nas razias. Outra leitura importante sobre a inexistência do continente africano na vida cultural europeia passa pelo total desinteresse das classes intelectuais sobre a própria história de África. Ibn khaldun, o grande historiador do norte de África de finais do século XIV fala das dinastias reinantes no Magrebe, como os Almorávidas, Almôadas e Hafsids e como constituíam uma extensa linha entre a Tunísia e o Egipto. Mas a sul havia formações estatais enormes como os Soninke no Gana, os Malinke no Mali, os Songhay no Songhay e os Kanuri em Kanem, e cada um deles era capaz, tais como os normandos ou os germanos de dominar uma vasta área e dispor de impostos e vassalagem. Existiu o imperador do Mali e a história de África acusa convulsões ao longo dos séculos da Idade Média e da Idade Moderna do mesmo tipo que as guerras europeias do mesmo período. Mas deu muito jeito, no período colonial, ter criado a doutrina de civilizar o gentio, dar civilização ao preto, ensinar-lhe a ler e escrever e a ter bons modos.

Davidson confronta o tribalismo e o novo nacionalismo para afirmar que os novos nacionalistas da década de 1950 acabaram por abraçar o nacionalismo como única fuga possível à soberania colonial: “Esforçando-se por transformar os territórios coloniais em territórios nacionais, acabaram por considerar que a riqueza de culturas étnicas africanas era ao mesmo perturbador e difícil de incorporar nos seus esquemas. Vieram a cair novamente na mentalidade colonial que considerava esta riqueza como tribalismo e, como tal, retrógrada”. Mais uma vez estas formações políticas pré-coloniais que eram comunidades com passado venerável foram amesquinhadas. As elites instruídas na África ocidental encaravam a história de África como irrelevante e inútil. As elites independentistas, ansiosas por ser livrar da administração colonial socorreram-se do estado-nacionalismo baseado no modelo europeu e assim prepararam o seu fracasso.

Mais adiante, o escritor repertoria a ascensão do Estado-nação na Europa para fazer compreender como é que os ativistas da década de 1950 mergulharam no nacionalismo, considerando-o como única garantia disponível de um caminho aberto ao progresso. Os anos 1960 são de euforia e já de deceção: as populações não acompanham a argumentação dos líderes políticos. E as estratégias neocoloniais, a caça às matérias-primas, vão suscitar o apadrinhamento de piratas e corruptos que vão tomar conta do poder. Davidson fala de Cabral como personalidade singular que acreditava piamente na ascensão dos camponeses e na sua participação, criticava publicamente a ganância das oligarquias e os apetites pequeno-burgueses de certos dirigentes.

Na conclusão, Davidson assevera que o Estado-nação pós-colonial tornara-se um obstáculo ao progresso, recorda a determinante cultural de Amílcar Cabral, as lutas sanguinárias que assolaram o continente também devido à guerra fria e apela a que África invente um futuro pós-imperialista, com o desmantelamento gradual da herança estado-nacionalista resultante do imperialismo e à introdução de estruturas participativas no seio de uma vasta estrutura regional.

Um clássico que devia ser oferecido a todos os políticos e quadros militares da Guiné-Bissau.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9932: Notas de leitura (361): Marcello Caetano, Silva Cunha e a Guiné (2) (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Antº Rosinha disse...

Não conheço este Davidson mas fala-se muito no que ele diz.

Mas pelo que Beja me diz aqui é que o Davidson acha que foi errado para os africanos coisas como escravatura o colonialismo e como foram feitas as independências.

Eu pessoalmente ainda fui a tempo de lutar contra as independências nacionalistas dos africanos dos anos 50/60.

Será motivo para me sentir "orgulhoso"?

Já vi africanos formados na europa, em Cuba e na Rússia, que têm vergonha dos hábitos tribais dos seus pais, e que dizem que é preciso acabar com aqueles hábitos.

Também há africanos "europeizados" que acham normal a violência e golpes de estado em África, porque também foi assim que a europa se fez.

E, pelos vistos acham esses africanos que a europa é um exemplo muito bonito para África copiar.

Ora nem Beja Santos nem eu nem Davidson somos africanos, e somos nós que andamos a falar do Homem Negro, e este continua sem escrever.

Talvez o "Homem branco" esteja a ver as coisas erradamente, e só saberá alguma coisa quando estes escreverem.

No caso da Guiné, penso que não sabemos grande coisa nem eu, nem Beja Santos,nem esse Davidson nem mesmo Amílcar Cabral chegou a entender nada daqueles povos.

Mais um livro a que Beja Santos me poupou.

Cumprimentos

Anónimo disse...

Caro Rosinha
Estimado "colon"

Também eu queria entender o homem africano.Ando a tentar,mas acho que ainda não consegui saber nada.
Esse tal Davidson, na minha modesta opinião, também não entendeu nada.
É verdade que os actuais Países Africanos, foram herdados das antigas potências coloniais, e traçados quase a régua e esquadro, mas mesmo assim como explicar o total desvario de quase todos,tendo como exemplo mais flagrante o actual Zimbawe,antiga Rodésia, que passou de um dos mais desenvolvidos de África para um dos mais atrasados...não, não foi só por causa de um psicopata chamado Robert Mugab, este não conseguia fazer nada se não tivesse muitos apoiantes.
Ah..o Amílcar Cabral era europeu, apesar de ter nascido na Guiné,refiro-me à sua cultura, obviamente.
Julgo que também entendeu muito pouco ou nada, apesar da sua craveira intelectual.

Um abraço

C.Martins

antonio graça de abreu disse...

Para entender melhor o pensamento de Basil Davidson (1914-2019), existe um livro fundamental do ingl
ês ex-espião, ex-amigo de Tito (esse mesmo o da Jugoslávia, cujas utopias marxistas, ou pseudo,
provocaram centenas de milhares de mortos, Bósnia, Sérvia,Kososvo, Croácia, lembram-se, foi há poucos anos?!...), aventureiro e escritor.
Chama-se, o livro de Basil Davidson,
The Liberation of Guiné, Aspects of an African Revolution, Penguin Books, 1969. O prefácio, escrito no Boé (?) em Outubro de 1968, é de Amilcar Cabral.
Curiosíssima esta obra datada que relata a experiência pessoal de Basil Davidson com os homens do PAIGC, vivida no interior da Guiné-Conacry, a fingir que está no interior da Guiné Bissau.
É o entendimento de então do autor.

É um dos meus livros fetiche, está à disposição de qualquer camarada e amigo, inclusive do Mário Beja Santos.


Abraço,

António Graça de Abreu

antonio graça de abreu disse...

Peço desculpa pelo erro.
Basil Davidson (1914-2010), a data de nascimento é 1914, a de morte 2010. Basil Davidson viveu durante 96 anos. Nós, a viver nos nossos 65 a 70 anos, somos ainda uns jovens rapazinhos, comparados com o inglês que tinha sete fôlegos e uma muito temporal ingenuidade revolucionária.

Abraço,

António Graça de Abreu

Hélder Valério disse...

Caros camarigos

Basil Davidson existiu e deixou obra.
Pelo que sabemos procurou 'estar lá', nos diversos sítios sobre que escreveu.
Nalgumas circunstâncias esse imperioso argumento ('eu estive lá') mesmo que esse 'lá' não pudesse, obviamente, ser em toda a parte e em todo o momento, aparenta ter uma força demolidora contra 'o outro', mas, em função do 'vento' ou doutra qualquer forte 'argumentação', esse 'estar lá' pode já não ser atendível, enfim, feitios...

Como em outras 'apresentações' de livros com os comentários do Beja Santos a minha atitude é de agradecimento ao trabalho que ele teve e que as opiniões que terei do livro, do conteúdo e do autor serão aquelas que eu próprio conseguir formular.

Hélder S.