sábado, 20 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19997: Os nossos seres, saberes e lazeres (343): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Fevereiro de 2019:

Queridos amigos,
Se é axioma o que escreveu Saramago que o que se vê no verão não é o mesmo que se vê no inverno, que o que se vê de manhã não é exatamente o mesmo que se vê à tarde, e se, acima de tudo, esta viagem se processava sobre o signo da revisitação de lugares conhecidos há décadas e que, em muitos casos, permaneciam no limbo da memória, aqui se confessa o prazer consumado de ir verificar espaços por onde se andara e onde houve mudanças de tomo, mas os mesmos tesouros que então se conhecera apareciam agora com novo look.
Não sei se é verdade se Bruxelas é a capital europeia, mas mesmo que não seja é um dos locais do mundo onde aparecem exposições inolvidáveis, de génio rebarbativo, atenda-se ao que aqui se diz da exposição do Bozar "Além de Klimt", uma verdadeira delícia.

Um abraço do
Mário


Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (6)

Beja Santos

O dia começa no Parque do Cinquentenário, recorde-se que este faustoso empreendimento arquitetónico teve a ver com a comemoração dos cinquenta anos da independência do reino da Bélgica em 1880. Arco grandioso onde se misturam elementos estilísticos Luís XVI e outros mais clássicos, tudo para glorificar a Bélgica pacifista e heroica. Os edifícios do Parque albergam museus e cá fora temos esculturas de grande valor. O viandante passa rente ao Museu do Automóvel, com modelos provenientes de todo o mundo, ainda não se disse mas este parque também acolheu a Exposição Universal de 1897, do outro lado temos o Museu do Exército e da História Militar, mas aonde exatamente o viandante entra é nos Museus Reais de Arte e de História.


É um museu com coleções incomparáveis, desde as Antiguidades do Próximo Oriente, do Egito, da Grécia, da Etrúria e de Roma, há um importante acervo da arqueologia nacional, da Pré-História às civilizações merovíngias, seguem-se as artes decorativas, joalharia e muitíssimo mais. Não menos impressionantes são as coleções de arte não-europeia que nos falam das civilizações da América, da Polinésia e da Micronésia, há uma espantosa estátua proveniente da Ilha de Páscoa, exemplares de arte muçulmana, são não menos impressionantes as salas temáticas com objetos de prata e cerâmica, até instrumentos de precisão. Assim se passou a manhã toda, com indisfarçável alegria. Caminha-se para o centro da cidade e após amesendar o viandante atira-se para outra empreitada maior no Palácio das Belas-Artes, arquitetura do prodigioso Victor Horta, o museu chama-se Bozar e a exposição tem um título por demais sugestivo “Além de Klimt”.



Foi decisão difícil, pois ali ao lado havia uma não menos tentadora exposição sobre Berlim entre 1912 e 1932. A decisão está tomada, é uma oportunidade única para conhecer a vida cultural de Viena durante a guerra e depois, vai empalidecer a estrela de Gustav Klimt, entram em cena jovens expressionistas como Kokoschka e Egon Schiele. Klimt morre em fevereiro de 1918, está a irromper, vibrátil, o expressionismo.


Gustav Klimt foi o nome maior da Arte-Nova na sua variante vienense que teve a designação de Wiener Secession. Este quadro foi pintado no seu último ano de vida, é uma composição simples e a tela ficou inacabada. O modelo foi Johanna Staude que também pousou para outro génio da pintura, que aqui vai aparecer, Egon Schiele. É difícil imaginar que enquanto os homens morriam aos milhões nas trincheiras e em combates sangrentos, a vida cultural de Viena não esmorecia.



Egon Schiele foi um génio precoce, em março de 1918, durante a 49.ª exposição da Wiener Secession, triunfou completamente. Génio precoce com morte precoce, uma dezena de dias antes do Armistício, morrerá com a gripe espanhola. É conhecido por ser um pintor radicalmente expressivo, gostava de atmosferas contemplativas. Neste quadro temos dois homens agachados num espaço indeterminado. Até parece que se trata de uma figura duplicada e há fortes semelhanças nos rostos com Egon Schiele, são olhares sonhadores no vazio, mais uma tela inacabada.




O visitante vai de surpresa em surpresa, vanguardistas húngaros, peças desconhecidas de Alfons Mucha, o inconformismo berrante de Oskar Kokoschka, inevitavelmente o entusiasmo pela guerra ou a denúncia da carniçaria, obras alegóricas, psicodramas.


Este Ecce Homo de Anton Hanak é arrasador, uma emanação de um mundo despedaçado, sente-se neste bronze a longa e rica tradição do Humanismo Europeu, da Antiguidade Greco-Romana e do Cristianismo. Hanak era um dos escultores austríacos mais conhecidos, legou-nos figuras simbólicas e visionárias sem paralelo neste Império Central.




Para além de Klimt também nos remete para seguidores do construtivismo russo, para essas coisas novas onde se aplicavam os grandes princípios da abstração. Há uma figura espantosa, reabilitada nas últimas décadas, o húngaro László Moholy-Nagy, um dos avatares da escola da Bauhaus, uma instituição de vanguarda que teve que encerrar portas na alvorada do nazismo. László Nagy era um artista dos sete ofícios, uma curiosidade ferverosa pela escultura, fotografia, arquitetura, cinema e teatro. Na sequência cronológica em que se organiza a exposição são exploradas outras dimensões, como a abstração-criação e o surrealismo, as múltiplas variações sobre o figurativo, a adesão aos ideais revolucionários, a apologia declarada aos nacionalismos.






Enfim, uma esplendorosa exposição que permite visualizar os percursos das artes plásticas no final da vida de Klimt, movimentos que estavam em incubação e que degeneraram no expressionismo, em novas manifestações do figurativo, passando pelo surreal e pela modificação do real numa espécie de desintegração do indivíduo. Não será por acaso que Kokoschka aparece como figura transversal e terminal deste vasto caleidoscópio de manifestações artísticas, sempre na vanguarda e acabando por se distanciar explicitamente das correntes abstratas do seu tempo, vendo-se como alguém que “perpetua a grande tradição austríaca do barroco, renovando-a”, alguém que se mostrou sempre sensível aos sinais do tempo. Mais um dia de felicidade para o viandante, anoitece e faz frio, regressa a casa, vai preparar depois do jantar a viagem do dia seguinte, desta feita na Flandres, em Gand.

(continua)
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Notas do editor

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