sexta-feira, 13 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18841: Notas de leitura (1083): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (43) (Mário Beja Santos)

Monumento aos heróis da pacificação de Canhabaque, imagem retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, fotografia de Francisco Nogueira, Edições Tinta-de-China, 2016, com a devida vénia


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Janeiro de 2018:

Queridos amigos,
Finda a pesquisa no acervo dos relatórios de Bolama e Bissau, entre 1917 e 1972, era obrigatório um mergulho num número infindável de pastas catalogadas com uma enorme variedade de assuntos, desde execuções hipotecárias até à compra de mobiliário.
Esta introdução socorre-se da fórmula de tratamento em que da sede de Lisboa se trata a gerência por V. Senhorias e Bolama e Bissau dirigem-se ao governo do BNU por V. Exas.
Documentação aliciante, diga-se de passagem, figuras gradas do antigo regime como Francisco Vieira Machado, Teófilo Duarte, Castro Fernandes ou Marcelo Caetano despacham sobre esta impressionante variedade de assuntos que lhes chegam às mãos.
Por nada existir entre 1903 e 1917, começamos no auge da guerra com histórias de politiquice, intriga e a magna questão da exportação das sementes oleaginosas.
É longo o caminho que temos pela frente.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (43)

Beja Santos

Introdução 
De V. Senhorias para V. Exas.

O acervo documental de peças dispersas referentes a correspondência trocada fundamentalmente pelas filiais de Bolama e Bissau com o governo do BNU em Lisboa é muito mais de que a história de uma instituição de que se desconhece uma boa parte da sua história. Talvez valha a pena começar pelas lacunas da multivariada documentação.

A primeira agência terá começado a funcionar em Bolama em 1903. Bolama era capital, ali funcionavam os serviços do governo enquanto em Bissau cresciam os negócios. Não dispomos de qualquer espólio útil entre esta data e 1917, momento em que surge a filial de Bissau. Gradualmente, irá crescendo a tensão entre estes dois polos bancários, e pelo que nos é possível ler nos relatórios de execução Bolama e as suas gentes lutaram denodadamente para que não houvesse mudança de capital, o que veio ocorrer em 1941, nessa altura Bolama já vivia em ambiente fantasmático, era uma sombra do passado, e passado houvera como ainda hoje se pode ver dos vestígios do seu património arquitetónico.

Da documentação pública sobre esta matéria, da responsabilidade da Caixa Geral de Depósitos (que acolheu todo o arquivo do BNU) consta que foi em 1902 que entrou em funções a agência em Bolama, com apenas dois empregados e o gerente. Não encontrei documentação comprovativa, mas é facto que por portaria de 24 de Janeiro de 1903, Júdice Biker, Governador da Guiné, determinou que fossem recebidas com moeda as notas do Banco na Província. A função emissora do BNU procurava pôr fim ao caos existente pelas diversas espécies de moedas em circulação.

Só encontrei dois documentos referentes a 1911, com datas de Setembro e Outubro, e que se prendem com contas e valores do tesouro e encargos do banco com o Estado, por natureza inconclusivos para qualquer análise. A partir de 1917 há com frequente regularidade relatórios de execução, falta o de 1932, extinguem-se em 1941. Os relatórios de Bissau também têm lacunas: não existem entre 1928 e 1930, falta o de 1938, casos há em que há mapas anexos aos relatórios mas faltam relatórios, isso acontece logo no pós-guerra; e temos falta de relatórios respeitantes a 1973, 1974 e 1975, pelo menos, encontra-se documentação avulsa sobre este período e aquando do período da independência.

Vejamos a importância atribuível a esta documentação partir de 1917, já que, com o detalhe possível, em capítulo próprio, se procura uma interpretação para os sucessivos olhares dos gerentes de Bolama e Bissau entre o período da I Guerra Mundial e a independência.

Logo em 1917 o gerente dá-se ao cuidado de prestar informações de caráter sociopolítico e económico que não têm tratamento ou que claramente se distinguem ao que vem mencionado nos relatórios de execução.

Em Agosto, a propósito da guerra nos Bijagós, informa-se Lisboa do que o governador limitara o estado de guerra às ilhas de Canhabaque e João Vieira, em virtude dos seus habitantes se encontrarem em estado de rebelião armada. Houvera igualmente uma carta reservada da agência de Bissau em que era explicitamente referido Isaac Thomas Hawkins que pedia indemnização pelo facto da coluna de operações estacionada em Bubaque lhe estar a prejudicar os negócios, tendo o cônsul geral de Inglaterra em Bathurst (Gâmbia) informado o cidadão britânico que devia sujeitar-se às leis portuguesas e que não era tolerável que ele pretendesse imiscuir-se nas decisões do governador. Era em Bubaque que estava estabelecida a Companhia Agrícola e Fabril da Guiné, o senhor Hawkins era um conhecido exportador de coconote.

O leitor deverá estar preparado para encontrar nesta correspondência minudências, atos insólitos, agravos e desagravos políticos de toda a ordem, o papel do gerente era estar a toda a hora a transmitir em Lisboa chegadas e partidas de personalidades, analisar a praça e seguramente que dispunha de relações que lhe permitiam uma linguagem franca e desassombrada. Minudências como a de informar a gerência do BNU em que o antigo Governador Coronel Agostinho Coelho decidira que o gerente de Bolama, bem como o guarda-livros deveriam ser professores numa escola central a funcionar em Bolama, sugeria-se a revogação de uma cláusula do contrato entre o BNU e o governo português.

Documento hilariante, uma velha guerra entre um contundente gerente de Bissau e um médico avençado, acusado de bebedolas

Respondendo a uma carta de Lisboa, acerca de uma queixa apresentada quanto a um comportamento do gerente de Bissau, este responde:

“É infundada a queixa recebida por V. Exas., pois não é verdade que tivéssemos assinado telegrama algum pedindo a conservação do Coronel Coelho como o governador da Província, e depois de recebida a carta de V. Exas. averiguámos que o promotor desse telegrama foi o senhor Carlos Costa Carvalho, gerente da casa Salomão Pereira Neves & Companhia. Apenas assinámos com todo o comércio nacional e estrangeiro um telegrama para o ministro das colónias pedindo que o produto da venda dos terrenos de Bissau fosse aplicado em benefícios de Bissau e fizemo-lo por tal pedido não ter o carácter político.
Sobre a transferência de sede da Província para Bissau, como o Coronel Coelho era dessa opinião e ele fosse nosso amigo, dispensando-nos atenções que não dispensava a outros, visitando-nos várias vezes em casa e escolhendo-nos de preferência para sua companhia nos passeios de tarde, desse também lugar a que viessem a supor que nós patrocinávamos ou defendíamos a opinião do governador. Em Bolama rebentou esta semana um grande escândalo entre o inspector e subinspector da Fazenda que diariamente se visitavam, por o primeiro ter enviado à esposa do segundo uma carta obscena, dando motivo a um conflito em que ambos ficaram de cabeças partidas. Em Bissau não quisemos relações e vivemos isolados”.

Imagem retirada da revista “Mundo Português”, da Agência Geral das Colónias

O gerente de Bolama esforça-se por aclarar as competências de cada uma das agências, e não esconde azedume e a eletricidade que vai no ar:

“Devemos dizer a V. Exas que existem em Bissau várias casas comerciais tendo em Bolama sucursais que fazem importantes negócios, principalmente de mancarra que aqui armazenam, visto o mercado deste produto ser mais importante nesta cidade do que em Bissau; a pretexto da gerências dessas casas estar em Bissau nada aproveitará a agência de Bolama com as suas operações.
A gerência da agência de Bissau, não recuando diante de nenhum expediente na mira de açambarcar as operações da Província, tem recorrido a um sistema pouco correcto tendente a conseguir o seu fim e em vez de se considerar uma dependência do nosso banco procede de forma a só poder ser considerada um concorrente da agência de Bolama.
Não temos a intenção de vir fazer acusações e muito menos de perturbar a harmonia que deve existir entre as dependências.
A inimizade pessoal da gerência da agência de Bissau contra o gerente da firma Visconde de Thiène, George Teston, forçou esta a não querer fazer transacções com aquela agência; como este cliente nos dá bons lucros, a agência de Bissau tem usado expedientes impróprios para que as operações daquela casa não se façam em Bolama. O senhor Teston seguiu para Paris a fim de se entender com o senhor de Thiène e tenciona passar por Lisboa a fim de expor o assunto a V. Exas., para o que nos pediu uma carta de apresentação que lhe demos”.

O relatório da agência em Bissau, neste ano de 1917 dá-nos notícias curiosas, a moeda de prata desaparecera praticamente da situação em Bissau, era referido que os indígenas tinham muita prata enterrada, e devido à falta de prata aumentara a circulação das notas emitidas pelo BNU, havendo indígenas que já recebiam e guardavam notas de pequeno tipo, principalmente de um escudo, o que até então não sucedia e comenta:
“Se o indígena pudesse pelas cores distinguir o valor das notas maior ainda seria a circulação. O pior de tudo é que nem notas pequenas temos em cofre e pedia-as à agência de Bolama, mas ela também não as tem".
Começava então a ganhar forma a estrutura dos relatórios, com itens reservados à situação da agricultura e aos valores da produção, ao estado das indústrias locais, às vias de comunicação com o interior, ao estado da telegrafa sem fios, aos serviços públicos, o movimento dos portos, importações e exportações e admitia-se a eventualidade de vir para a Guiné o banco colonial.

Assunto de peso, no auge da guerra, eram as sementes oleaginosas, o gerente de Bissau reagia desta maneira:
“Tem-se ressentido muito a Província com a proibição da saída das oleaginosas para o estrangeiro.
Já por várias vezes e sem resultado tem o comércio da Guiné tentando obter do governo a suspensão dessa iníqua proibição, pois que se a razão dela é a necessidade de oleaginosas na metrópole o certo é que nem o governo facilita meios de transporte nem os industriais da metrópole diligenciam obtê-los.
Enfim, o que se vê é que nem o governo nem os industriais têm procurado resolver a questão e quem sofre é a província em geral, é o seu comércio exportador, o de importação que está subordinado à exportação, e é o indígena, que não tem quem lhe compre os produtos e deixa de intensificar as respectivas culturas.
Fomos procurados pelos principais comerciantes nacionais e estrangeiros de Bissau que solicitaram o nosso concurso junto do governo para boa e rápida solução do problema”.

E ainda nesse mês de Outubro o gerente de Bissau insistia com a sede, nos seguintes termos:
“Por telegrama expedido daí sabemos que o governo pensa em proibir novamente a exportação destas sementes oleaginosas, das colónias para o estrangeiro.
Tal medida será a morte desta Província porque o mercado de Lisboa, não comportando a produção que regula por 8 mil toneladas de coconote e 14 mil toneladas de mancarra, fará baixar as cotações por falta de concorrência, sofrendo com isso as receitas da alfândega.
Rogamos a V. Exas. a fineza de nos telegrafarem se o governo vier a proibir a exportação para o estrangeiro, a fim de podermos a tempo tomar as medidas que em tal caso é conveniente. Se o governo respeitar na lei contratos já feitos, é favor igualmente avisarem-nos”.

(Continua)
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Nota do editor

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