1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Outubro de 2018:
Queridos amigos,
O genial holandês é o mais transversal dos pintores europeus, admirado por gente de todas as idades, os seus bosques, troncos de árvore, moinhos, cenas campestres, molhos de feno, cafés iluminados, seres humanos serenamente retratados, naturezas mortas, arvoredo retorcido... E também os autorretratos, os mais novos assombram-se com a vocação tardia, a adesão entusiástica a vários movimentos até atingir a especificidade do génio, aquela textura que nos permite identificar prontamente o atormentado Van Gogh, desde os tons escuros do mundo campestre onde iniciou a sua aventura até aos céus estrelados e aos seus amarelos fulgurantes da Provença, onde ele procurava tranquilidade.
O viandante vibra com Van Gogh e partilha exclusivamente convosco as alegrias que viveu na visita ao Museu Kröller-Müller, onde Van Gogh é o artista mais visitado, o que se compreende.
Um abraço do
Mário
Viagem à Holanda acima das águas (5)
Beja Santos
Permita-se ao viandante abonar um lugar-comum sobre a obra de Van Gogh: toda ela está marcada por uma abordagem emotiva muito especial e por uma enorme carga visionária, fez da realidade reelaborada o testemunho da sua vida e do seu pensamento, parece um mano-a-mano da correspondência que trocou com o seu irmão Theo, de valor excecional para entender o homem e o artista.
Van Gogh foi uma vocação tardia, mas a arte e a religião foram fatores determinantes na sua existência. Começará empolgado pelas atividades campestres, era admirador das gravuras inglesas, observava atentamente a solidão das paisagens, as condições de vida difíceis dos proprietários agrícolas. Na sua correspondência com Theo ele descreve detalhadamente a atmosfera específica destas paisagens, poucos artistas fizeram tantos autorretratos como ele e dedicaram atenção a figuras da vida quotidiana, caso do tecelão ou deste funcionário ferroviário, tudo suavizado por um fundo floral e humanizado numa barba imensa, encaracolada, sobressai o seu génio no contraste entre o azul e o verde, tudo mais é harmonia e tranquilidade.
Foi durante os seus dois anos de estadia em Paris que Van Gogh pintou a maioria dos cerca de 20 autorretratos conhecidos. A representação humana foi o assunto favorito de Van Gogh antes da paisagem. Terá sido por falta de modelos que Van Gogh se autorretratou mas é óbvio que ele procurava uma resposta para a sua permanente preocupação analítica. Na correspondência para Theo ele descreve muitas vezes o seu aspeto físico. Iremos encontrar nestes autorretratos as mudanças fisionómicas. A cor vai-se aclarando, o seu olhar é cada vez mais frontal, de uma franqueza que nos cativa, porque não há ali rodriguinhos nem postiços, é uma pintura implacável: olhar penetrante. Fica-se agarrado a vê-lo, o tempo deixa de ter importância, é o contraste das cores, a sobriedade das pinceladas que lhe dão a indumentária, aquele fundo esverdeado que põe o pintor face a face com o seu interlocutor.
Tudo na Natureza o empolga, os ninhos de pássaros, as folhas mortas, as ervas secas, a cor da terra, as tonalidades do musgo. O interesse do genial pintor pela Natureza vem da juventude, ele vivia em comunhão com a terra, sente-se a sua forte atração pelo poder da germinação, pelo trabalhador que lança a semente à terra, é uma Natureza que vibra. Um dos pontos altos desta exaltação passará pela Provença, aí os seus tons amarelados tornam a Natureza mais vibrátil do que nunca.
Se pinta bosques, o ofício da tecelagem, interiores de restaurantes, prados, perspetivas de povoações com uma fortíssima dimensão campestre, Van Gogh nunca perdeu de vista o património edificado. É célebre o seu quadro “O Moinho de la Galette”. Van Gogh queria estudar na Academia de Antuérpia, entusiasmou-se com os quadros de Rubens, descobriu e entusiasmou-se com as estampas japonesas. Em 1886, ei-lo em Paris, conhece a arte de Delacroix, Millet, Daumier e outros. É a descoberta também dos impressionistas como Cézanne, Seurat e Gauguin, este será mesmo convidado a visitá-lo em Arles. A sua arte vai perdendo peso e ganhando em luminosidade com acentos coloridos. A ponte é só luminosidade, o fio de água é de um azul deslumbrante. Sempre a Natureza em hossana!
O mundo camponês, os eriçados troncos de árvore, as casinhas que parecem andar para as nuvens, a sobriedade de uma refeição com batatas… É o Van Gogh da terra ao céu constelado de estrelas, o que é escuro é para mostrar labor, o trabalho silencioso. Van Gogh conhecerá crises, adensará o seu caráter insociável, mas quando lemos a sua correspondência para Theo sente-se que ele é cada vez mais exigente, apesar do seu estado psíquico instável, das alucinações e do comportamento agressivo. Estes casos, pinta no quarto com a janela aberta, deixou-nos campos de trigo, prados, paisagens com árvores. Os comedores de batata é uma tela de 1885, para muitos críticos um dos expoentes máximos deste génio holandês. O seu modelo foi o pintor Millet, o pintor que partilhava a vida com a população campesina. Van Gogh pinta voluntariamente estes comedores de batata “em estado bruto”, abstém-se de qualquer refinamento técnico, é muito estrito à escolha das cores, não quer esconder o que há de grisalho na vida sombria destes rurais. O tema foi recorrente, este é o seu último estudo para a tela definitiva que está no Museu Van Gogh em Amesterdão. Aquela lâmpada acesa parece iluminar um fim de dia laborioso, come-se aquilo que se tira da terra, graças ao bom Deus.
É com pesar que o viandante se despede de Van Gogh, ainda tem pela frente duas visitas a dois gigantes, Odilon Redon e Barbara Hepworth. Vamos continuar a visita, no interior e exterior do Museu Kröller-Müller.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 22 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19318: Os nossos seres, saberes e lazeres (299): Viagem à Holanda acima das águas (4) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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