sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19313: Notas de leitura (1133): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (65) (Mário Beja Santos)

Depósito de água, em Bolama, recorre a uma tipologia comum noutras regiões da Guiné-Bissau.
Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Abril de 2018:

Queridos amigos,

Permitam-me uma nota pessoal. Aí por novembro de 1968, numa das minhas continuadas idas de Missirá a Mato de Cão, já na estrada de terra batida, que dista cerca de 5 quilómetros do local onde montávamos segurança, em Mato de Cão, o soldado Queta Baldé, natural de Amedalai, observou-me que logo no início da guerra tinha havido um massacre em Finete, toda a região vivia em barafunda, Bambadinca dividia-se entre quem partia para o mato e quem se matinha fiel aos portugueses. Nunca encontrei qualquer documento de valor histórico que asseverasse a observação de Queta. Ela aqui está, numa carta do gerente do BNU, revela que enquanto o Sul entrara imediatamente em ebulição, também o Leste, com Domingos Ramos à frente das operações, era a segunda frente do PAIGC.
Fica posta em causa a mitologia de que tudo começou no Sul e a seguir no Morés.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (65)

Beja Santos

A 13 de fevereiro de 1963, qual repórter de guerra, o gerente traz novas informações:

“Os assaltos a objectivos militares, já revelados a V. Exas, em correspondência anterior, vieram nos últimos dias a intensificarem-se de uma forma que não pode deixar de dar preocupações muito sérias mesmo aos responsáveis pela defesa militar da Província.

Os constantes e sucessivos acontecimentos que chegam ao nosso conhecimento através de fontes oficiais ou por simples notícias particulares não confirmadas, indicam claramente que se não houver uma acção enérgica de repressão estaremos muito próximos dos casos que tiveram lugar em Angola.
Toda a parte Sul da Província encontra-se infestada de grupos armados terroristas que à luz do dia circulam com a maior das liberdades, sem depararem com oposição.

Camiões carregados de arroz chegam a ser interceptados por bandos, para depois voltarem a circular sem que nada lhes suceda.

Até quando esta atitude de passividade para com os sectores económicos se irá manter, não sabemos. Um dia, certamente, ela se modificará, com graves e tremendas consequências para a economia e para a vida das populações.

Diz-se que são insuficientes os efectivos militares que operam no Sul, e deficiente o material que utilizam.

Diz-se que, para grupos numerosos e bem municiados em armas de recente fabrico e material explosivo como bombas, granadas, petardos, etc. etc, se antepõe a tropa com armas de inferior poder de fogo e com bombas que, por vezes, não chegam a deflagrar. Contam que uma patrulha militar, numa operação de limpeza, de cinco granadas de mão que lançou só uma deflagrou.

Só uma entidade comercial da Província, a Sociedade Comercial Ultramarina, tem sido compreendida nos ataques feitos pelos terroristas, que alguns estragos já registaram em haveres e vidas.

Além do incidente de Brandão já referido na nossa carta de 30 de Janeiro, as propriedades exploradas pela Sociedade de Bantael Sila, Chacoal e Unal, foram assaltadas, registando-se a morte de um empregado europeu em Chacoal.

No centro comercial de Salancaur, foi também assaltada a sucursal da Sociedade, e um pequeno pelotão militar que se aquartelava num dos anexos foi atacado, havendo a registar a morte de um furriel e um soldado, e três feridos de certa gravidade.

Às 8,30 horas do dia 11, a povoação de S. João, fronteira de Bolama, foi assaltada, sendo incendiadas algumas palhotas de nativos, sofrendo estragos as instalações da Sociedade.
Digno de nota, o facto de no centro comercial de Salancaur, além da Sociedade estarem representadas, também, a Casa Gouveia e Mário Lima, que nada sofreram com o assalto.

Atribuem-se os assaltos às instalações da Sociedade à circunstância de ser esta empresa aquela que mais estreitamente vem colaborando com as autoridades militares, facultando aquartelamentos para os seus efectivos, e proporcionando-lhes transportes terrestres e fluviais para munições e tropas.
Há, ainda, quem atribua os ataques a meros actos de vingança exercidos sobre os encarregados das sucursais, em consequência da exploração a que esteve sujeito durante longos anos o indígena das referidas propriedades.

Devemos informar que se trata de uma exploração em proveito do próprio encarregado, nunca autorizada nem aproveitada pela Sociedade Comercial Ultramarina.

Espera-se, para breve, a chegada à Província de dois batalhões, em reforço aos já existentes.
Bem necessários são, para que seja impedida, o mais rápido possível, qualquer infiltração às restantes zonas da Província, que felizmente continua alheia aos acontecimentos que se vão sucedendo no Sul".

O ofício de 1 de março de 1963 é de uma grande importância histórica, tenho para mim que é o primeiro documento em que refere que o Leste começa a ser subvertido, como se pode ser:

“Dando continuidade à transmissão a V. Exas. de informes até nós chegados e apelativos aos acontecimentos anormais de que esta Província vem sendo teatro, cumpre-nos informar o seguinte:
No setor Leste (Bafatá) tem havido certa actividade nas nossas tropas contra elementos terroristas radicados na área de Xime, posto de Bambadinca, cujas populações aderiram ao movimento, em quase todas as tabancas.

Na referida área actua um tal Domingos Gomes Ramos, estagiou numa escola militar de Pequim, na especialidade de guerra subversiva, que a despeito de intensas diligências levadas a cabo não foi ainda capturado, não obstante por diversas vezes ter sido localizado, pois o serviço de alerta de que dispõe facilita-lhe a fuga à aproximação dos nossos soldados.

No sector Sul (Catió e Fulacunda) tem-se verificado intensa actividade dos elementos terroristas nas regiões de Quínara e Tombali, onde estão presentemente em curso várias acções militares em grande escala, com a participação de fuzileiros navais e das forças aéreas e navais, com vista à eliminação de numerosos focos infecciosos conhecidos pelas nossas autoridades.

No sector Oeste (Fronteira Norte) tem havido por vezes pequenas incursões de elementos fixados ao longo da nossa fronteira e em território senegalês, têm sido reprimidas.

Consta-nos que as autoridades do Senegal, nomeadamente as do distrito de Casamansa, têm agido contra os chamados nacionalistas, não permitindo que o seu território sirva de base para ataques a esta Província.”

A 18 de março, o gerente de Bissau relata as operações militares no setor Sul, diz que são notícias que lhe chegaram através de fonte de origem oficial:

“A situação na referida situação da Província não é, de certo modo, tranquilizadora.
Os comerciantes estabelecidos no mato, de todas as raças, estão a abandonar as suas actividades procurando refúgio nas localidades onde se encontram sediadas as tropas que fazem a cobertura militar das suas áreas. De noite, dado que os nossos soldados recolhem aos aquartelamentos para organizarem a sua defesa, os terroristas têm campo livre para o desenvolvimento das suas nefastas actividades.

Ajudados pela configuração do terreno, conhecimento dos cursos de água e ocultos em densas, diríamos até impenetráveis florestas, de arriscado acesso e propícias a emboscadas, são inimigos invisíveis que só muito dificilmente e a troco de elevadas perdas, poderão ser desalojados dos seus esconderijos, mesmo, como ultimamente tem sucedido, com emprego de aviação militar em apoio das forças de terra, uma vez que sistematicamente se exime ao combate em campo aberto, onde certamente seriam desbaratados pelos elementos do nosso exército, inferiores em número ao que se diz.

Todavia, sempre que se lhes depara oportunidade, os nossos soldados dão-lhe caça e, como tal, em pequenos recontros têm infligido severas baixas.

Assim, damos nota de algumas acções do nosso exército:

28/2 – Abatidos 72 terroristas na região de Bambadinca – Bafatá, por tentativa de fuga à aproximação das nossas tropas;

3/3 – Um ataque conjunto das 3 armas encurralou um numeroso grupo de terroristas nas tabancas Gantongo e Ganfodé Mussa, tendo sido liquidados 160 nessa operação de limpeza;

9/3 – Em Finete – Bambadinca foram mortos 20 terroristas.

Infelizmente, noutras operações realizadas, houve perdas, ainda que ligeiras, do nosso lado.
Com efeito, em 1 de Março uma patrulha nossa da guarnição de Cabedu foi atacada entre Cafine e Cafal Balanta, resultando 1 morto e 1 ferido.

Também em 14 do corrente um grupo de terroristas atacou a camioneta da carreira Ziguinchor – S. Domingos, acerca de 1 km da nossa fronteira Norte. As nossas forças aquarteladas naquela localidade atacaram os assaltantes que atingiram mortalmente o Capitão António Lopo Machado Carmo, comandante da coluna, e ferindo 4 soldados sem gravidade.

A terminar, informamos que em 10 de Março, um pelotão sofreu uma emboscada perto de Empada. Não houve baixas da nossa parte, tendo infligido bastantes aos nossos adversários. Foi apreendida uma pistola-metralhadora russa.”

No acervo do Arquivo Histórico do BNU aparece um documento confidencial correspondente à deslocação do adjunto da administração da Sociedade Comercial Ultramarina à Guiné, entre 1 e 13 de abril de 1963, é uma preciosidade, como iremos ver.

(Continua)

Obras do Palácio do Governo, ainda numa fase inicial.
Imagem inserida no livro “Guiné, Início de um Governo”, 1954, obra hagiográfica dedicada ao Governador Mello e Alvim.

Máscara LUMBE.
Inserida no livro “Esculturas e Objetos Decorados da Guiné Portuguesa”, por Fernando Galhano, Junta de Investigações do Ultramar, 1971.
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Notas do editor

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Último poste da série de 17 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19300: Notas de leitura (1132): “O Homem do Cinema, A la Manel Djoquim i na bim”, por Lucinda Aranha Antunes; edição da Alfarroba, 2018 (1) (Mário Beja Santos)

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