quarta-feira, 10 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19665: Historiografia da presença portuguesa em África (158): Relatório para o Sr. Governador da Guiné, assinado em Buba, em 6 de dezembro de 1882, pelo Capitão Caetano Filipe de Sousa (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Julho de 2018:

Queridos amigos,
Esta documentação assinada pelo capitão Caetano Filipe de Sousa é historicamente relevante.
Remete-nos para uma matéria que Armando Tavares da Silva detalhadamente tratou na sua obra "A Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar, 1878-1926", trata-se da guerra do Forreá onde, entre muitos outros pontos, são versadas as tropelias de Mamadu Paté.
Caetano Filipe de Sousa regista a decadência da região, a falta de poder negocial para dirimir tensões interétnicas e não esconde as práticas encobertas de certa modalidade de escravatura.

Um abraço do
Mário


Relatório para o Sr. Governador da Guiné, assinado em Buba, em 6 de dezembro de 1882, pelo capitão Caetano Filipe de Sousa (1)

Beja Santos

Os Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa reservam surpresas, é o caso da documentação que saiu do punho do Capitão Caetano Filipe de Sousa. Viu-se anteriormente um texto de grande importância referente à situação de Buba, as razões da sua decadência. Fora seu administrador, deu provas de conhecer a região, as suas gentes, os seus problemas. Vamos vê-lo agora numa missão de Governador, o Forreá está embrenhado em problemas de peso, questiúnculas étnicas, raptos, escravatura, e algo mais.

Convém lê-lo com toda a atenção:
“Transportado a Buba, a fim de dar cumprimento ao determinado por V. Ex.ª, desembarquei nesta praça no dia 6, pelas 11 horas do dia. Confesso a V. Ex.ª que, conhecendo eu Buba, não gostei de ver o seu aspecto. Era mais um campo de guerrilhas armado do que uma praça de guerra, ainda que se achava hasteada a Bandeira Portuguesa; e se esta não estivesse tremulando no respectivo mastro, eu não teria dúvida em acreditar que a praça estava entregue ao gentio. Dentro da praça achavam-se os chefes do Forreá, Bacari Quidali e Mamadu Paté, com sua gente de guerra, mas desarmados, ao passo que nas ruas, e mesmo à porta da Secretaria do Comando Militar, estavam dispersos os Fulas-Pretos e Mandingas armados de espingarda e espada; coroando esta festa gentílica, um grupo de soldados armados junto à porta do Comando Militar, e que mais pareciam uns maltrapilhos do que soldados portugueses.

Pelo aspeto que a praça apresentou, e que é o que deixo descrito, cheguei a acreditar que os chefes Fulas-Forros Bacari Quidali e Mamadu Paté, com sua gente, eram nossos prisioneiros e não nossos hóspedes. Foram bastante mal recebidos os homens a quem o Comandante Militar da Praça convidou, servindo-se do nome do Governo para virem fazer a paz com o mesmo Governo.
Eu confesso a V. Ex.ª que este modo de proceder, por parte do comandante da praça, e na questão presente, me repugna bastante. Tomei conta do Comando Militar e Administração do Concelho no dia 7, às 6 horas da tarde, e em 8 fiz desarmar todos os Fulas-Pretos e Mandingas que transitam pela praça; bem assim, fiz recolher a quartéis a força que o meu antecessor havia feito colocar junto à porta da sua residência e Comando Militar, a qual constava da terça parte da guarnição da praça, ficando apenas as guardas ordinárias. Neste mesmo dia, fiz afixar editais anunciando estar aberta para o descobrimento de qual o motivo que tiveram as famílias Fulas-Forros aprisionadas em Bolola no dia 28 de Setembro findo, dando começo ao respectivo auto no dia 9. O auto é feito em forma de corpo de delito para os processos militares por me parecer assim mais fácil e conforme às instruções que V. Ex.ª se dignou dar-me verbalmente.

Ouvi, sucessivamente, dezasseis testemunhas e pelos seus depoimentos se vê claramente: primeiro, que as famílias Fulas-Forros aprisionadas no combate dado às tabancas do chefe Mamadu Paté, em 28 de Setembro último, foram conduzidas pelos indivíduos que as haviam apanhado para esta praça; segundo, que as mesmas famílias foram apresentadas ao comandante militar junto à sua secretaria, passados dois ou três dias, estando também presente o comandante da coluna; terceiro, que o tráfico de escravatura, conquanto em pequena escala, não deixou de existir, sendo suas vítimas as próprias prisioneiras, como se depreende dos depoimentos de várias testemunhas; e se considerarmos como escravatura o presente feito pelos Fulas-Pretos aos oficiais, claro está que o próprio comandante militar foi nisso conivente – como se vê da cópia de um termo de contratos que vai junto ao auto, e se fez nesta Administração de Concelho mas que nem a lei a autoriza nesta Província nem ele foi feito como determina a lei de 21 de Novembro de 1878.

O segundo depoimento, de Felizardo Fortes de Santiago, é bem curioso e merece a atenção de V. Ex.ª. Os depoimentos do Furriel Coelho, do Padre Luiz Correia Dias também merecem ser lidos com atenção. Para o completo deste auto é indispensável ser ouvido o Alferes Pessoa, o Fula-Forro que se diz tio de uma mulher que ele recebeu de tença por 21 vacas e que mora na feitoria de Romualdo Pinto, assim como um grumete que estava, ao tempo do combate, ao serviço de Caetano Macedo ou de Ricardo Barbosa de Andrade. Pelo depoimento do Padre se vê que o açoite também não deixou de figurar na tragédia e, segundo ele o declara, ouviu isto ao Alferes Pessoa.

Deus guarde a V. Ex.ª, segue-se a assinatura do capitão”.

Junto a este documento segue uma declaração que ganha pertinência no conjunto do processo:
“Declaração
Finda a minha comissão em Buba, continuei o processo de sindicância nas feitorias do Rio Grande. Este trabalho tem o título de: Continuação do auto de sindicância feito em Buba a 9 de Novembro de 1882 para descobrimento de qual o destino que tiveram as famílias Fulas-Forros aprisionadas em Bolola no passado dia 28 de Setembro.
Nesta continuação do auto, ouvi oito testemunhas e pelos seus depoimentos se vê que algumas pessoas foram vendidas, aqui ou ali, a troco de gado, arroz, milho, etc.
Duas das mulheres vendidas conseguiram fugir e foram procurar agasalho numa feitoria, cujo empregado as recebeu. Esta fuga teve lugar dias antes da minha ida àquela feitoria, e o empregado, aconselhado por mim, foi no dia imediato entregá-las ao comandante militar de Buba, o qual as entregou ao respectivo chefe.

Na feitoria de Romualdo Pinto, algumas famílias Fulas pediram transporte para Bolama, a fim de irem procurar seus filhos que, segundo lhes constava, estavam entregues a brancos. Dei a passagem às famílias que ma pediram e algumas delas depois de encontrarem os filhos, foram-me as apresentar, dizendo-me as casas que as haviam recebido. A satisfação que os que haviam encontrado seus filhos revelavam, é fácil de compreender, assim como aos que não haviam encontrado se lhes desenhava no rosto o símbolo da tristeza.
Não cito aqui os nomes dos donos das casas em que foram encontradas as crianças, visto que o meu fim não é acusar mas sim relatar à Sociedade de Geografia de Lisboa o que sei a tal respeito.

Segue-se a assinatura do capitão.”

Há outro documento importante apenso a este processo que é também de destacar, como se fará.

(Continua)

Palácio do Governador, pormenor de vão de porta e arcada.
Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.

Um fabuloso desenho de Stuart Carvalhais, inserido no “Anuário da Guiné Portuguesa”, de 1948.

Imagem inserida no “Anuário da Guiné Portuguesa”, de 1948.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19648: Historiografia da presença portuguesa em África (156): Um relato histórico guineense do maior interesse: O documento do capitão Caetano Filipe de Sousa, de 1883 (Mário Beja Santos)

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