quinta-feira, 4 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19648: Historiografia da presença portuguesa em África (157): Um relato histórico guineense do maior interesse: O documento do capitão Caetano Filipe de Sousa, de 1883 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Julho de 2018:

Queridos amigos,

O documento da autoria do antigo administrador de Buba dá-nos a conhecer um modo de ver a decadência da então parcela mais próspera da colónia: as feitorias e o comércio de Buba. Não cabe no documento a notícia do que se estava a passar no Casamansa, onde por esta época o comércio francês já destronara o português, temos agora uma interpretação do que faziam os franceses e os vexames praticados pelas autoridades portuguesas, não só pelos maus tratos aos trabalhadores como pelo manifesto desinteresse no bom relacionamento com os chefes do Forreá. Era esta a situação que se vivia no período que precede a definição de fronteiras e começa a tornar-se claro que não possuíamos na Guiné Portuguesa um verdadeiro conceito nem de Justiça nem uma prática de bom tratamento das autoridades gentílicas.

Um abraço do
Mário


Um relato histórico guineense do maior interesse: 
O documento do capitão Caetano Filipe de Sousa, de 1883

Beja Santos

Nos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa consta um documento datado de Bolama (4 de maio de 1883) e intitula-se “Duas palavras acerca da Guiné Portuguesa”, é seu autor o Capitão Caetano Filipe de Sousa, o documento é manuscrito, vale a pena reproduzi-lo quase na íntegra, tal o seu interesse para ouvir um testemunho ao tempo em que nascia a Província da Guiné e era claro que a França cercava a colónia no Casamansa e no Rio Nunes:

“Queixam-se hoje que a Guiné vai em decadência, e que a causa é esta ou aquela, mas ainda não ouvi dizer aos mais conhecedores daqui a verdadeira razão porque a Guiné Portuguesa chegou ao estado de abatimento em que actualmente está. Eu já em um pequeno relatório que dirigi à Secretaria Geral do Governo, em 1 de Abril de 1882, data em que entregava a administração de Buba ao meu sucessor, expus parte da verdadeira razão (a meu ver) que dá causa a tal abatimento; tive, porém, a infelicidade de ver que, até esta data, medida alguma se tomou no sentido daquele meu relatório, apesar de eu ter sido, por Sua Excelência o Governador, louvado na ocasião da sua apresentação; não deixo, porém, de prosseguir no meu intento, dando conhecimento à Sociedade de Geografia de Lisboa do que penso a tal respeito.

Nos anos de 1875 a 1879 houve uma grande concorrência de negociantes franceses no mercado da Guiné: as casas disputavam entre si qual havia de apresentar melhores e mais variadas fazendas e qual havia de ter o maior número de delegações no interior ou no litoral dos pequenos rios. Ao passo que, por um lado, os negociantes franceses pensavam por esta forma que os trabalhadores Fulas, Mandingas e outras raças saíam dos seus lares e estabeleciam-se nas feitorias do Rio Grande e outras e se entregavam com afinco à cultura da mancarra. Havia feitorias que tinham acima de 400 trabalhadores. Os trabalhadores, logo que se apresentavam ao feitor, este lhes punha por condição, entre outras, a seguinte: a todos a mancarra que se cultiva na minha feitoria deve ser entregue a troco de fazendas, espingardas, pólvora e tabaco, tudo à sua escolha, e qualquer trabalhador que faltar a esta condição e tente levar, seja qual for a quantidade de mancarra para outra feitoria ou casa comercial, perdê-la-á. O trabalhador, convicto de que não teria necessidade de negociar com outro a sua mancarra, pois que seu patrão teria na sua loja a fazenda de que ele carecesse, aceitou. Impunha-se também por condição ao trabalhador: aquele que provocasse desordem, ou cometesse algum crime, na feitoria, ser-lhe-ia retirada uma certa porção de mancarra (Buxulas). Os preços das fazendas eram moderados, não havia especulação por parte do feitor. Os negociantes, quer portugueses, quer estrangeiros, especialmente o comércio francês, parecia prosperar de uma maneira espantosa. 

Em Buba, por exemplo, havia tal abundância de negociantes e tão florido estava o comércio dali, que levou o Governador de Cabo Verde, em 1878, a querer que ali é que devia ser a capital do distrito. Mas quem fazia todo este barulho eram duas ou três casas francesas, que eram as que forneciam os pequenos negociantes portugueses. Estes, coitados, nem sequer conheciam que tudo o que se estava praticando para com eles era mais uma especulação que outra coisa. Os franceses procuravam entregar aos portugueses, proprietários de terrenos, a maior quantidade possível de fazendas, de modo que estes, fracos administradores como são, comprometeram as suas propriedades, em resultado do que já não são poucas as que estão entregues aos franceses, lembra-me o procedimento do BNU em Angola com relação a certas fazendas.

O que deixo dito era o que se fazia em quase toda a Guiné Portuguesa até 1879. Hoje, as coisas mudaram.

Os negociantes franceses, vendo que se davam mal com os grandes fornecimentos de 1875 a 1879 limitaram-se ao comércio de Bolama, dispensando apenas algumas fazendas e outros enfeites porém de péssima qualidade e aquelas de patrões antigos que mandam para as casas estabelecidas na feitoria, obrigando assim os trabalhadores a receber fazendas de que não gostam.

Os vexames que se praticam para com os trabalhadores são de tal ordem que bastante repugna aos estranhos que deles têm conhecimento e o trabalhador descontente fica em casa e diz: “Ganho mais caçando do que cultivando mancarra para vender.”

O documento prossegue com uma longa exposição sobre as arbitrariedades conhecidas, e o autor continua nos seguintes termos:

“As desordens que em qualquer feitoria há entre feitores ou empregados e trabalhadores e depois daqueles apresentarem à autoridade respectiva a sua queixa, acabam sempre pela prisão do trabalhador, mas sem forma alguma de processo. O modo de proceder de uma parte das nossas autoridades para com aquelas vítimas do trabalho é muito irregular e, no nosso ver, a maior base da decadência do comércio da Guiné, visto que ele consta quase exclusivamente da maior ou menor quantidade da colheita da mancarra, em cujos serviços são empregados os homens desconsiderados pelas autoridades portuguesas.

Eu penso que a principal causa da decadência é a falta de Justiça para com os trabalhadores.

Buba, o coração da Guiné, hoje para nada presta – mas porquê? As queixas constantes entre o gentio Fula Preto e Fula Forro, a falta de presença ao gentio, o receio constante que estes têm de que nós lhes tiremos os seus escravos e finalmente o mau acolhimento que hoje se dá em Buba ao chefe de uma ou outra tribo, tudo concorre para a completa decadência de Buba. Uma outra razão também concorre, e não pouco, para o actual estado de Buba, e foi a prisão impensada do primeiro-ministro do chefe do Futa.

Veio para Bolama e a nossa gente, descuidada sempre, deixou que ele fosse visitado pelos franceses e destas constantes visitas resultou a sua fuga. Continua a ser encaminhado o comércio para as feitorias francesas estabelecidas no rio Nunes. Os chefes do Forreá, quando hoje vêm a Buba nem sequer têm quem lhes dê um copo de água! Eles também têm a seu modo de se julgarem ofendidos. Em 1879, dava-se-lhes além de 8 mil pesos anuais, um fardo de fazendo e bugigangas de fantasia nas suas visitas extraordinárias. As duas ou três casas francesas ali estabelecidas tinham entre si uma espécie de escala e, por essa forma, recebiam os chefes, hoje, porém, todos os põem fora de casa!!! O Governo, por sua parte, tem consignado um presente de 100 mil reis anuais para os chefes do Forreá e Futa! Agora veja-se: os 8 mil pesos e presentes extraordinários, acompanhados de melhor acolhimento aos chefes ou os 100 mil reis e o desprezo a esses mesmos chefes. A fartura de fazenda que então havia ou a consideração dispensada aos trabalhadores ou a miséria atual e os repetidíssimos vexames que hoje se praticam para com esses mesmos trabalhadores.

Como remate, o desprestígio por parte das nossas autoridades aos indivíduos que mais podem concorrer para o engrandecimento comercial da Guiné Portuguesa.”





Extrato do Planisfério de Alberto Cantino, datado de 1502, e enviado ao Duque de Ferrara, é uma das mais importantes cartas náuticas e um documento histórico de valor incalculável. O extrato fala da Costa de África que tem a ver com a região que irá ser conhecida por Senegâmbia Portuguesa. Reproduzido do exemplar da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, com a devida vénia.
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Nota do edior

Último poste da série de 27 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19625: Historiografia da presença portuguesa em África (155): Missão de Estudo dos Movimentos Associativos em África, Relatório da Campanha de 1958, por J. M. da Silva Cunha (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Meu caro Mário: obrigado pro mais esta "pepita de ouro" para a historiografia da presença portuguesa na Guiné... Ao ler o excerto do doucmento que "descobriste" na Sociedade de Geografia, passo a perceber melhor o sentido da expressão, que ouvi aos fulas do regulado de Corubal, "Mancarra, semente do diabo"... S e o Cherno Baldé me ler, que me corrija... DE qualquer há aqui um grande sabedoria africana, alicerçada na experiência (amarga) da imposição a África, pelo colonialismo europeu, no séc. XIX, da cultura das oleaginosas...

Vd. aqui um poste que publiquei há 12 (!) anos, como o tempo passa!

14 DE AGOSTO DE 2007
Guiné 63/74 - P2048: Cusa di nos terra (4): Mancarra, semente do diabo (iblissa, em fula) (Luís Graça)


(...) É interessante notar que na mitologia fula a mancarra (amendoím) esteja associada ao Diabo em pessoa (Iblissa).

O cherno Umaru que dirige uma pequena escola nesta tabanca de Sansancuta, do regulado do Corubal, e que se prepara, como bom muçulmano devoto (tijanianké), para fazer no próximo ano a sua peregrinação a Meca (Iado Hadjo, em fula) e assim juntar ao seu nome o título venerando de al-hadj, contou-me, por intermédio do Suleimane (o meu braço direito, guarda-costa, intérprete, cozinheiro, secretário – é um dos nossos poucos soldados que sabe ler e escrever português, daí ser soldado arvorado e em breve 1º cabo (...) - contou- me ele a seguinte estória:

- Um dia Iblissa (o Diabo) quis desafiar a autoridade divina de Mohamadu (o Profeta Maomé). Tinha chovido muito e o Profeta dissera que então nasceriam todas as sementes que fossem lançadas à terra. O Diabo, em vez de uma semente de milho ou de arroz, deitou leite numa cova que ele próprio tinha feito no chão. Mohamadu, intrigado e inquieto com a provocação de Iblissa, foi falar com Alá, que lhe mandou guardar uma semente. E ao fim desse tempo, não é que do leite nasceu mesmo a mancarra ? (...)

Cherno AB disse...

Caro amigo Luis,

Já conhecia a mitologia fula sobre a origem da mancarra, todavia, vivendo no meio social fula desde a nascença, não me suscitou especial curiosidade porque não há uma nem dez, são centenas de mitologias a volta dos mais diversos assuntos que, a partida não faziam parte da vida social, economica e cultural dos fulas.

No caso particular da mancarra que os fulas descobriram primeiro no Senegal e depois na região do rio grande de Buba (Guinala) é, antes do mais, um produto associado ao homem branco e logo ao Diabo em pessoa. Se a este facto acrescentarmos o factor trabalho intensivo que a produção deste produto exige, não é de estranhar que os indigenas tivessem uma clara aversão a sua pratica o que justificaria a sua diabolização.

Já a partir dos anos 50 a sua produção estava tão vulgarizada e dispersa no território, devido a imposição dos impostos de capitação em parte, mas também pelo forte incremento e dinámica que se assistia no vizinho Senegal, que este velho mito estava morto e enterrado. Antes do inicio da guerra, a principal actividade, na zona leste, estava associada ao seu cultivobe comercialização e pelo meio um salto até ao Senegal (durante a campanha sazonal da colheita da mancarra) para os jovens, para angariação de um pé de meia antes do primeiro casamento.

Com o inicio da guerra, a ida a tropa/milicia substituiu em parte esta prática iniciada desde o sêc. XIX e diminuiu a produção deste produto, antes de desaparecer com a independência.

Certamente, o "Iblissa" (o diabo) dos fulas dos sêc. XVIII/XIX e XX, está intimamente ligado ao desenvolvimento do capitalismo internacional na sua frenética voracidade de acumulação do capital e neste sentido emergimos da arcaica mitologia indigena para a realidade do mundo em rápida globalização a que nenhum povo do planeta escapou.

Um abraço amigo,

Cherno Baldé

Tabanca Grande Luís Graça disse...


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