Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 1 de abril de 2019
Guiné 61/74 - P19639: Notas de leitura (1165): “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017 (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Março de 2019:
Queridos amigos,
Este cartapácio é uma obra de paixão. Não há memória, em toda a literatura da guerra colonial, de uma devoção tão sentida por um coletivo ao seu capitão, são-lhe tecidos todos os encómios, é temerário e visionário, sábio e previdente, líder de tal envergadura jamais abandonou ao longo de mais de meio século, a consideração dos seus subordinados. É tocante ver-se a agenda dos encontros, a entreajuda, a presença nos eventos dos filhos de quem já morreu, divulgação de notícias de quem está a merecer cuidados e precisa de ser acompanhado.
E lendo de fio a pavio o cartapácio assimila-se o que foram os horrores do início daquela guerra, os casos de jogo duplo, um deles será contado no episódio seguinte, como se procurou arredar a guerrilha, ela recuou mas não desesperou, e a comissão da CCAÇ 675 decorreu ainda numa fase em que o Senegal não se comprometera a fundo em deixar passar homens e armamento, e este era cada vez mais sofisticado.
Um abraço do
Mário
Binta, Guiné, A Companhia do Capitão do Quadrado, novas memórias (2)
Beja Santos
O livro intitula-se “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017. A capa é surpreendente, como se escreve: “Uma bonita abatis na estrada de Farim. Esta não cumprira a sua missão: impedir a passagem; as viaturas passavam por baixo!”. No blogue, já tive oportunidade de me debruçar sobre três livros referentes ao historial da CCaç 675: primeiro, o galvanizante “Diário de JERO”, um relato feito pelo Enfermeiro da Companhia de tudo quanto se vai passando, e tudo quanto se vai passando gravita à volta de um oficial bem-amado, Alípio Tomé Pinto, que irá ficar conhecido pelo nome de “Capitão do Quadrado”, um documento publicado à sorrelfa em 1965, podia ter custado a carreira deste oficial que chegou a General; seguiu-se outra obra “Golpes de Mão’s”, se apresentava como o segundo volume do diário, leitura estimulante, mas não chegava ao sopro anímico do primeiro; terceiro, a biografia do General Tomé Pinto, da responsabilidade da jornalista e investigadora Sarah Adamoupoulos. O impulsionador deste quarto documento é um homem sentimental que ainda hoje nos impressiona tanto pela memória dos acontecimentos vividos, como pela sua arte de contar, não é a primeira vez que o oiço de voz embargada e lágrimas a bailar nos olhos, Binta e arredores não lhe saem do coração.
A CCaç 675, se atendermos à vertigem da atividade operacional dos primeiros meses, impôs-se pelo espírito ofensivo, pondo os guerrilheiros a respeito, limpou os caminhos, encetou obra em Binta, todo e qualquer local pertencente ao setor foi vasculhado. Área delicada, no entanto: muita população fugira para o Senegal, estava sujeita às ameaças do PAIGC, vinha cultivar, digamos que em terra de ninguém, aí se encontravam com as patrulhas de Binta, angústia como esta era possível nos primeiros anos de guerra, e em muitos pontos da Guiné. O primeiro ano da comissão espelhou essa capacidade ofensiva que foi sendo creditada nos guineenses que tinham fugido para o Senegal. No segundo ano da comissão, são frequentes os relatos de guineenses que se apresentam em Guidage intencionados para refazer as suas vidas na Guiné, confiam na Companhia do Capitão do Quadrado.
Com uma mão na espada, a outra no arado, combatia-se e procurava-se pôr Binta num brinquinho, a par das aulas regimentais, atendimento sanitário de populações da Guiné e do Senegal, e muito mais. Andam num virote, nesse primeiro ano, irão várias vezes à península de Sambuiá, percorrem Sanjalo, Ufudé, Fodé-Siráia, Genicó Mancanho, muitos cuidados entre a bolanha de Cufeu e Guidage, limpa-se a estrada de Farim a Binta, percorre-se Cansenha, Caurbá, os autores são incansáveis a dar-nos pormenores: golpe de mão a Canicó, os ferimentos do temerário Capitão de Binta, que andava sempre em movimento, vai-se a Lenquetó e Temanto, percorre-se a estrada até Bigene, emboscadas, patrulhas, nomadizações, destroem-se acampamentos precários, ruma-se a Banhima, faz-se ação psicossocial na fronteira, narram-se dramas de toda aquela população entalada entre dois fogos. Mesmo desalojado, o PAIGC não deixa de atribular a vida da CCAÇ 675, com abatises, queimando pontões, flagelando à distância.
Há um jornal de parede, nele em 8 de dezembro de 1964, alguém homenageia a sua mãe, aqui fica um fragmento:
“Nas circunstâncias actuais da minha vida, que por ser dura e difícil, mais maturidade me vai dando, em que melhor aprecio a formação que me deu, grato me é registar o amor, a personalidade, a pureza da minha querida Mãe que, diariamente, com as suas orações e as suas notícias, com as suas palavras amigas, me vai dando coragem para encarar com resignação cristã, esperança e optimismo, a separação, as dificuldades de uma guerra em terreno primitivo e selvagem.
É principalmente numa numerosa família como a constituída pelos 160 elementos de uma Companhia, que vivem em comum, que damos conta do que significa para cada um de nós a sua Mãe. Nos momentos mais difíceis, no perigo, na dor, na doença, um apelo mudo, a que nos agarramos com força, parte dirigido a quem nos deu a vida.
Num dia como este, em que todas as Mães sentem à sua volta todo o carinho dos filhos, eu, cá de longe, rendo-lhe o preito da minha estimada, da minha admiração.
Deus permita que continue assim, por muitos anos, a tornar felizes todos os que vivem perto de si. Transmita à minha querida Avó os parabéns, por ter dado ao mundo tal filha.”
Este quinhão de memórias também destaca aspetos facetos, brejeirices, comicidades. Havia o 1.º Cabo Enfermeiro António Martins a quem os habitantes das aldeias senegalesas chamavam Dr. Martins.
Fazia-se acompanhar pelo Soldado Machado que sentia ganas de ser enfermeiro. O Martins dava-lhe a bolsa para carregar, um grande saco de lona, o Machado seguia-o docilmente.
Eis o episódio:
“Com o andar do tempo, o Machado começou a fazer curativos e até dava injecções aos nativos. Um dia, acabadas as consultas, o Martins conferiu o material de serviço, verificou que faltava uma agulha de seringa e fez o reparo ao Machado: ‘Falta aqui uma agulha!’.
O Machado esbugalhou os olhos, concentrou-se, deu uma palmada na testa, e saiu, correndo, em direcção à bolanha que marcava a separação entre a Guiné e o Senegal, abeirou-se de uma das últimas mulheres que haviam sido tratadas, levantou-lhe a saia e sacou-lhe do traseiro a agulha que ela levava ali espetada. Sempre a correr, voltou ao quartel e eufórico informou o Dr. Martins: Está aqui a agulha que faltava.”
Este outro episódio ocorreu no dia 18 de julho de 1964, houve patrulhamento ofensivo em Sanjalo, a tropa estafada seguiu-se para Quenejara, novo combate, esfalfados, pediram ao telefonista para que insistisse com as viaturas a chegarem rapidamente, o telefonista avisa que o informaram que estão prestes a sair, o capitão manifesta o seu descontentamento:
“- Diz-lhes que eu mando tudo bardamerda! O telefonista, um alentejano castiço que carregava nos ‘rr’ teve vergonha de usar aquela zombaria em frente do seu capitão, fazendo uso do seu sotaque, transmitiu via rádio:
- Charly Óscar Mike Delta Tango deste está muito chateado!
- Não estou chateado! Mando tudo bardamerda!
O telefonista repetiu aquela mensagem um tanto envergonhado:
- Charly Óscar Mike Delta Tango deste manda tudo borrdamerrrda!”
Um primeiro ano de arromba, passou-se meio século e estes cronistas passeiam-se permanentemente por esta região de Binta e não vacilam em dizer que a Companhia do Capitão do Quadrado não tinha rival. Esfalfaram-se, surgiram mortos e feridos e muitos doentes, o Capitão do Quadrado irá partir para fazer um curso do Estado-Maior, o BCAV 490 parte, surgirão problemas com a unidade que os vem render, as relações Farim-Binta vão ser muito tensas.
(continua)
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Notas do editor:
Poste anterior de 25 de Março de 2019 > Guiné 61/74 - P19621: Notas de leitura (1162): “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017 (1) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 29 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19630: Notas de leitura (1164): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (79) (Mário Beja Santos)
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