As minhas memórias de Gabu
Momentos de pausa em Gabu
Numa viagem a memórias consumidas numa Guiné onde os conflitos fluíam
amiudadamente, lá vou vagueando, enquanto a vida o permitir, pelas grutas de um
tempo sem tempo, cortejando fidedignas imagens em papel, algumas a preto e
branco, e recordando camaradas que sempre se dispunham para uma encantadora
brincadeira.
Em Nova Lamego, Gabu, o quarto onde fomos colocados era composto
por cinco camas de cor creme onde a ferrugem reinava e a coloração já mal
identificava a sua originalidade, cinco camaradas, paredes revestidas com fotos
de mulheres que ostentavam as suas magnificas virtualidades femininas, corpos
aliás esbeltos que remetiam os soldados nas trincheiras a noites de sonhos
amorosos, qual estrelinhas do céu caídas piedosamente em leitos famintos,
pilotos de motas e de fórmula 1, de entre outros registos que na altura suscitavam
interesse.
Todavia, a porta que dava acesso à “casa de banho” continha um
dístico que simplesmente dizia “Do not disturb”. No seu interior da WC estava
um modesto chuveiro ligado a um “luxuoso” bidão que dantes fora utilizado para
gasóleo e era agora suportado por uma armação em ferro no exterior da “mansão”.
Claro que a temperatura da água era aquela que o sol, sempre brilhante e
calorento, registava.
O letreiro - “Do not distiurb” - teria, presumivelmente, alguma
razão de existência. Pensávamos nós. Julgava-se que os camaradas que por lá
passaram tenham tido a perceção que aquele recanto, além de abençoado para o
encontro com as necessidades fisiológicas, era também um esconderijo quando um
ataque do IN porventura acontecesse.
Sugere a curiosidade que perguntemos às nossas consciências o
porquê de tal esconderijo e a razão do apelo ao silêncio? Pois é, aquele exímio
espaço era nem mais nem menos um refúgio para o pessoal se abrigar de um
possível ataque noturno uma vez que a cobertura estava sustentada por sacos de
areia.
Sacos de areia? Ah, pois é! A vala, aquela feita de propósito e
que visava um eventual salto para o escuro caso o IN nos presenteasse com mais
um ataque noturno ficava ali por perto, no entanto nem todos tinham a conveniente
agilidade para tentar a sorte, logo aquele esconderijo apresentava-se mais a
jeito e fiel para a possibilidade de uma noite de estridentes sons de
artilharia pesada.
A talho de foice veio-me à ideia que foram muitas as ocasiões que
eu próprio utilizei uma saca de areia debaixo dos pés aquando as saídas para o
mato em ações de “psicó” ocorriam. À “boleia” de um Unimog (cabras de mato) e
sentado no lugar ao lado do condutor, sentia-me quiçá mais seguro, ou menos
sujeito a uma eventual catástrofe .
A princípio a malta, sempre distraída com os perigos da guerra,
divertiam-se com os cuidados do furriel. Porém, no meu curso de Operações
Especiais/Ranger, em Penude (Lamego), ensinaram-me conteúdos válidos que
visavam a precaução a ter no palco do conflito. Assim, precavia-me sabendo,
porém, dos iminentes contratempos que o conflito ditava.
Na verdade a Guiné proporcionava momentos hilariantes. Ou era uma
jogatana de futebol em tempo de lazer, ou instantes inesquecíveis passados no
bar a saciar gargantas onde um Gin tónico caía que nem uma luva em corpos
fatigados pela dureza que a situação impunha, ou em ocasiões onde a malta se
divertia e inventava os mais divertidos disparates.
Em primeiro plano está o Rui Fernandes Álvares, um ranger, tal
como eu, ao seu lado direito esta personagem chamada Zé Saúde,
à esquerda o outro Fernandes, apelidado pela rapaziada de “Charles Bronson”
face às suas parecenças com o ator de cinema americano, ao fundo o Rui, um
rapaz de Coimbra e que assumiu a função de vagomestre.
Claro que o momento era de uma franca brincadeira. Cantava-se com
entusiásticos micros, bailava-se, machos com machos, e a malta
divertia-se.
Estes divertimentos tinham, na teórica conceção que agora
sustentamos, outras nuances. Bastava uma dica de um camarada para que desde
logo se encontrarem fórmulas para paliativos que visavam somente a “cura” de
males maiores.
Estava-se em pleno palco de guerra. A Gabu chegavam e partiam
colunas que cruzavam toda a zona Leste. Esporadicamente reencontrava-mos amigos
de infância que a guerra juntou nos corredores da peleja.
De Pirada vinham, designadamente, os “velhinhos” cujo final de
comissão entretanto se prolongou. Aliás, recordo que o meu BART 6523 foi-lhe
prognosticado a sua ida para Pirada em rendição desses camaradas. Lembro,
também, que antes da minha partida para a Guiné fui informado que o destino era
realmente Pirada, todavia ao chegar informaram-me que a minha via era uma
outra.
Só que a rapaziada fixou-se em Nova Lamego e de lá não saiu. Não
comento como o processo se desenrolou, visto que a minha chegada deu-se
passados creio que cerca de dois meses depois, e não tive a oportunidade para
esmiuçar o fundamente da razão.
O propósito deste tema, essencialmente a foto, passa pela óbvia
procura em reencontrar estes velhos camaradas, sabendo, no entanto, que o Rui
Fernandes Álvares, companheiro do mesmo curso ranger, 1º de
1973, reencontrámos-nos e reatámos a nossa velha amizade. Já me
visitou em Beja e resta-me uma viagem a Norte a sua casa em Carvalhelhos,
Boticas.
Goza da reforma, tal como eu, e contactamos amiúde via
telemóvel.
Um
abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
Mini-guião de colecção particular: ©
Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:
Vd. último
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1 comentário:
Também tenho uma foto na entrada da casa de banho WC, dos 10-12 alferes milicianos que partilhávamos o quarto - ex maternidade de São Domingos, nos anos de 68 e 69.
Casa de banho, com retrete à Caçador, lavatório, e o bidão de gasolina transformado em depósito de chuveiro, só que aqui o chuveiro era uma lata vazia de 'ananás enlatado' vindo da África do Sul.
Depois resolveu-se colocar o depósito de água por cima do WC e com umas mangueiras e um ralo de regar plantas, fizemos um 'chuveiro'.
Só que ao fim do dia, a água estava a ferver, ou quase, e desistimos, continuando com o velho bidão.
No Gabu tinha mesmo um chuveiro, se bem me lembro...
Bons tempos, era novo e não se ligava a isso.
Virgilio Teixeira
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