domingo, 31 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19637: Memórias de Gabú (José Saúde) (80): Momentos de pausa em Gabu. Vagueando pelo tempo sem tempo. (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 

As minhas memórias de Gabu

Momentos de pausa em Gabu
 Vagueando pelo tempo sem tempo

Numa viagem a memórias consumidas numa Guiné onde os conflitos fluíam amiudadamente, lá vou vagueando, enquanto a vida o permitir, pelas grutas de um tempo sem tempo, cortejando fidedignas imagens em papel, algumas a preto e branco, e recordando camaradas que sempre se dispunham para uma encantadora brincadeira.

Em Nova Lamego, Gabu, o quarto onde fomos colocados era composto por cinco camas de cor creme onde a ferrugem reinava e a coloração já mal identificava a sua originalidade, cinco camaradas, paredes revestidas com fotos de mulheres que ostentavam as suas magnificas virtualidades femininas, corpos aliás esbeltos que remetiam os soldados nas trincheiras a noites de sonhos amorosos, qual estrelinhas do céu caídas piedosamente em leitos famintos, pilotos de motas e de fórmula 1, de entre outros registos que na altura suscitavam interesse.

Todavia, a porta que dava acesso à “casa de banho” continha um dístico que simplesmente dizia “Do not disturb”. No seu interior da WC estava um modesto chuveiro ligado a um “luxuoso” bidão que dantes fora utilizado para gasóleo e era agora suportado por uma armação em ferro no exterior da “mansão”. Claro que a temperatura da água era aquela que o sol, sempre brilhante e calorento, registava.

O letreiro - “Do not distiurb” - teria, presumivelmente, alguma razão de existência. Pensávamos nós. Julgava-se que os camaradas que por lá passaram tenham tido a perceção que aquele recanto, além de abençoado para o encontro com as necessidades fisiológicas, era também um esconderijo quando um ataque do IN porventura acontecesse.

Sugere a curiosidade que perguntemos às nossas consciências o porquê de tal esconderijo e a razão do apelo ao silêncio? Pois é, aquele exímio espaço era nem mais nem menos um refúgio para o pessoal se abrigar de um possível ataque noturno uma vez que a cobertura estava sustentada por sacos de areia.

Sacos de areia? Ah, pois é! A vala, aquela feita de propósito e que visava um eventual salto para o escuro caso o IN nos presenteasse com mais um ataque noturno ficava ali por perto, no entanto nem todos tinham a conveniente agilidade para tentar a sorte, logo aquele esconderijo apresentava-se mais a jeito e fiel para a possibilidade de uma noite de estridentes sons de artilharia pesada.

A talho de foice veio-me à ideia que foram muitas as ocasiões que eu próprio utilizei uma saca de areia debaixo dos pés aquando as saídas para o mato em ações de “psicó” ocorriam. À “boleia” de um Unimog (cabras de mato) e sentado no lugar ao lado do condutor, sentia-me quiçá mais seguro, ou menos sujeito a uma eventual catástrofe .

A princípio a malta, sempre distraída com os perigos da guerra, divertiam-se com os cuidados do furriel. Porém, no meu curso de Operações Especiais/Ranger, em Penude (Lamego), ensinaram-me conteúdos válidos que visavam a precaução a ter no palco do conflito. Assim, precavia-me sabendo, porém, dos iminentes contratempos que o conflito ditava.  

Na verdade a Guiné proporcionava momentos hilariantes. Ou era uma jogatana de futebol em tempo de lazer, ou instantes inesquecíveis passados no bar a saciar gargantas onde um Gin tónico caía que nem uma luva em corpos fatigados pela dureza que a situação impunha, ou em ocasiões onde a malta se divertia e inventava os mais divertidos disparates.

Em primeiro plano está o Rui Fernandes Álvares, um ranger, tal como eu, ao seu lado direito esta personagem chamada Zé Saúde, à esquerda o outro Fernandes, apelidado pela rapaziada de “Charles Bronson” face às suas parecenças com o ator de cinema americano, ao fundo o Rui, um rapaz de Coimbra e que assumiu a função de vagomestre.

Claro que o momento era de uma franca brincadeira. Cantava-se com entusiásticos micros, bailava-se, machos com machos, e a malta divertia-se. 

Estes divertimentos tinham, na teórica conceção que agora sustentamos, outras nuances. Bastava uma dica de um camarada para que desde logo se encontrarem fórmulas para paliativos que visavam somente a “cura” de males maiores.

Estava-se em pleno palco de guerra. A Gabu chegavam e partiam colunas que cruzavam toda a zona Leste. Esporadicamente reencontrava-mos amigos de infância que a guerra juntou nos corredores da peleja.

De Pirada vinham, designadamente, os “velhinhos” cujo final de comissão entretanto se prolongou. Aliás, recordo que o meu BART 6523 foi-lhe prognosticado a sua ida para Pirada em rendição desses camaradas. Lembro, também, que antes da minha partida para a Guiné fui informado que o destino era realmente Pirada, todavia ao chegar informaram-me que a minha via era uma outra.

Só que a rapaziada fixou-se em Nova Lamego e de lá não saiu. Não comento como o processo se desenrolou, visto que a minha chegada deu-se passados creio que cerca de dois meses depois, e não tive a oportunidade para esmiuçar o fundamente da razão.

O propósito deste tema, essencialmente a foto, passa pela óbvia procura em reencontrar estes velhos camaradas, sabendo, no entanto, que o Rui Fernandes Álvares, companheiro do mesmo curso ranger, 1º de 1973, reencontrámos-nos e reatámos a nossa velha amizade. Já me visitou em Beja e resta-me uma viagem a Norte a sua casa em Carvalhelhos, Boticas.

Goza da reforma, tal como eu, e contactamos amiúde via telemóvel. 



Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:

1 comentário:

Anónimo disse...

Também tenho uma foto na entrada da casa de banho WC, dos 10-12 alferes milicianos que partilhávamos o quarto - ex maternidade de São Domingos, nos anos de 68 e 69.
Casa de banho, com retrete à Caçador, lavatório, e o bidão de gasolina transformado em depósito de chuveiro, só que aqui o chuveiro era uma lata vazia de 'ananás enlatado' vindo da África do Sul.
Depois resolveu-se colocar o depósito de água por cima do WC e com umas mangueiras e um ralo de regar plantas, fizemos um 'chuveiro'.
Só que ao fim do dia, a água estava a ferver, ou quase, e desistimos, continuando com o velho bidão.

No Gabu tinha mesmo um chuveiro, se bem me lembro...

Bons tempos, era novo e não se ligava a isso.

Virgilio Teixeira