"A guerra nunca acaba, fica connosco"
Arturo Pérez-Reverte
Era eu um jovem, feito homem, quando fui convocado para prestar o serviço militar. Passado um ano, fui forçado a partir para a Guiné (hoje, República da Guiné-Bissau) para, como diziam os mandantes da Pátria, defender o solo pátrio do ultramar, por outras palavras; defender a soberania portuguesa, e porque não; os interesses dos senhores do grande capital.
Tinha duas hipóteses: aceitar, a contragosto, e pegar em armas, ou despedir-me da família, dos amigos, da Pátria que me viu nascer, e fugir para o estrangeiro, até ao fim da vida, sob o risco, de no caso de ser preso, partir de imediato para os locais onde a guerra era mais impetuosa.
Empada - José Teixeira escrevendo
Apenas dois anos dados à Pátria, os quais rapidamente recuperávamos, graças à nossa juventude, diziam os mandantes.
Mas não foi bem assim. Andei dois anos perdido, é um facto. Vivi situações de difícil descrição. Vi morrer, sem poder valer. Salvei vidas de militares e civis vítimas da guerra que ninguém queria. Salvei vidas de crianças (bebés) com crises de paludismo, que atingiam 42ºC de temperatura corporal. Consegui fazer daqueles dois anos um tempo de vitórias e algumas derrotas, de algumas alegrias no meio de muito sofrimento. Vivi momentos em que senti a morte a meu lado, nos estilhaços cravados na terra a centímetros da minha cabeça, nas balas que passavam a assobiar e se cravavam na árvore, onde me protegia, da mina anticarro que destruiu a viatura da qual tinha saltado segundos antes…
Passados dois anos regressei à “mãe pátria” e tentei esquecer aquele amargurado tempo que nunca mais passava, mas a guerra ficou cá dentro, e nunca mais acabou.
Regressei com uma sensação de vazio dentro de mim, e encontrei vazios muitos dos espaços, onde antes de partir, centrava a minha vida. Até a família, apesar do intenso calor humano e amor, com que fui recebido, estava diferente. Tinham feito caminhos que eu não palmilhei. Sentia-me estranhamente só. Os amigos e amigas tinham partido para outras aventuras onde não eu estive. Perdi-os. Já não tinha lugar junto deles. Estava com um atraso de dois anos. Tive de conquistar de novo, a pulso, o meu lugar, onde me foi possível.
Do emprego recebi um não. Não havia lugar para mim. Tive de aceitar a parca indemnização que me ofereceram e partir para outra aventura. Na valorização académica, foi um começar de novo, com muito esforço. A mente parece que tinha adormecido e recusava-se a retomar o caminho da aprendizagem que precisava de fazer para construir o futuro.
Tantas outras barreiras que tive de ultrapassar para me encontrar!
Será que me consegui encontrar? Não!
Fui caminhando ao meu encontro. Reconstruir a vida era o desafio mais cativante e absorvente. Encontrar caminhos novos, caminhos diferentes, seguir novas pistas e sorrir para a esperança. Uma vida longa, com muitos momentos gratificantes, faz-me sentir um homem realizado, diferente do jovem que partiu para a Guiné.
Dentro de mim, tentava apagar os resíduos da guerra, mas quando pensava que tinha enterrado uns, apareciam outros. E, assim tem sido pela vida fora.
Recordo que quinze dias depois de regressar apareci debaixo da cama, sem saber como fui lá parar. Apenas uma porta tinha batido com um pouco de violência, provocada pelo vento.
Nos primeiros tempos tentava recusar-me a pensar na Guiné. Nem sequer falar ou ouvir falar de guerra. Qualquer cena de guerra na TV me angustiava. Os meus filhos dizem (muito mais tarde) que me viam chorar frente à TV a preto e branco, quando passava filmes de guerra, ou reportagens sobre conflitos armados, que infelizmente continuaram a surgir em várias partes do mundo).
Com a Revolução de Abril, surgiu como que um abafado silêncio, talvez medo, perante as correntes que denunciavam a guerra colonial e os seus efeitos, enquanto defendiam, e muito bem, a autodeterminação e independência para as colónias. Nós, os veteranos que tínhamos sido forçados a viver essa guerra, sentíamos uns olhares acusativos, como fossemos nós os culpados.
Depois, surgiu uma necessidade tremenda de falar, de contar o que me tinha acontecido, mas logo notei que não era compreendido. As pessoas não conseguiam entender. Ouviam. Ouviam… como para mim bastasse que ouvissem. Nem eu sabia o que queria com aqueles desabafos.
Passados cerca de vinte anos senti a carência das amizades que nasceram e frutificaram naqueles dois anos, os camaradas de aventura, os companheiros da minha Companhia Militar, e toca a tentar encontrá-los. Cerca de cinquenta atenderam a chamada. Três não responderam. Tinham tombado para sempre na Guiné. Outros já tinham partido no caminho que não tem retorno. Muitos, tinham emigrado. Houve, também, quem tentasse pôr uma pedra definitiva sobre os tempos de guerra, mas o encontro fez-se, e vieram as mulheres e os filhos. Depois, os netos e bisnetos. Vieram as dores, as enxaquecas, as artroses, indícios da velhice que não perdoa. Vieram as dores ao ver alguns partirem para a eternidade. Mas, continuamos a reservar um dia por ano para nos encontrarmos, falarmos de nós, da guerra que vivemos, das barreiras que tivemos de ultrapassar, dos caminhos novos que tivemos de construir, dos tempos que correm e que não entendemos. Da crueza das guerras que rebentam por todo a terra e que nós sentimos como ninguém, porque também vivemos uma guerra. Sabemos que quem as faz, não as quer fazer. Quem as manda fazer, não padece no corpo, os seus efeitos. Quem sofre os seus efeitos é o povo, as gentes humildes que querem viver em paz.
Para tentar acabar com a “guerra” que vagueia dentro de mim, parti para a Guiné, em romagem aos locais onde senti de perto os seus efeitos, onde a vivi. Procurei os lugares onde mais sofri. Os locais onde vi camaradas partirem para a eternidade sem lhes poder valer, locais onde acolhi e tratei feridos. Chorei as dores, que não tivera tempo de chorar no momento dos acontecimentos.
Procurei os amigos que por serem guineenses por lá ficaram na guerra. Tinham vindo comigo, no coração. Receberam-me em abraços. Muitos já tinham partido, alguns dos quais barbaramente assassinados, pelos conquistadores da “liberdade” da Pátria Guineense, por terem sido cobardemente abandonados por Portugal, que os considerava filhos e os motivara para a guerra na sua terra contra os seus irmãos de sangue, para os abandonar e lhes tirar a cidadania, entregando-os nas mãos dos combatentes contra quem tinham lutado, por Portugal. Trouxeram-me a família, mulheres, filhos, netos. Passei a ser “ermon di coração”. Seus filhos viram em mim o pai, seus netos, o avô.
Encontrei, em sã convivência, antigos guerrilheiros que me saudaram sem qualquer remorso, que tentavam localizar encontros de guerra, batalhas de frente a frente, sem nos vermos. Recordamos o ruido das armas, os mortos e feridos de ambas as partes. Ainda foram alguns, esses desencontros de outrora que tanto nos fizeram sofrer, a mim e a eles. Estranhamente sentimos necessidade de contarmos pormenores, localizarmos posições, historiarmos aqueles momentos, tal como fazemos quando encontramos algum camarada que partilhou connosco a terrível aventura da guerra. A necessidade de darmos o abraço da paz, apossou-se de nós em cada encontro. A frase “discurpa ermon, mas guerra é guerra” bailou nos nossos lábios, por ordem expressa do coração. Nos nossos olhos brilhava a luz da paz, do reencontro de “ermons” desavindos, e a amizade ganhou vida.
Ingoré, 2015, José Teixeira rodeado de crianças
Visitei as tabancas que me tinham acolhido, de quem retenho boas memórias. As “bajudas” raparigas de então, hoje, esposas, mães e avós. Fui reconhecido, chamado pelo nome. Sucederam-se os abraços, os ajuntamentos familiares, a festa cheia de sorrisos tão quentes como os de outrora. Recordamos tempos em que no ar pairava o medo da morte, a dúvida, a insegurança, ao lado da esperança do fim de uma guerra injusta. Hoje, respira-se paz e harmonia entre as gentes da Guiné, tão divididas naquele tempo. Há o bem-estar possível, num país continuamente adiado, mas onde a alegria caraterística dos povos africanos expressa nos ritmos e batuques, ocupou de novo o seu lugar.
A Tabanca de Matosinhos surgiu da necessidade de nos encontramos, os que passaram pela Guiné, de falarmos de nós, das nossas “guerras” numa linguagem que só nós entendemos. De convivermos numa “caserna” real, onde todas as semanas há sempre novidades da guerra. Já se passaram vinte anos, mas continua bem viva.
Uma quarta-feira na Tabanca de Matosinhos
O blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné foi outro espaço de reencontro comigo, com camaradas que viveram dramas idênticos, e como eu continuam a sentir a guerra dentro de si e a pôr em comum dramas e aventuras, momentos bons e momentos menos bons da sua guerra.
Voltei à Guiné, mais tarde, outra e outra vez, à procura da paz interior, mas a guerra nunca acabou. Continua cá dentro.
José Teixeira
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Nota do editor
Último post da série de 21 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26828: (In)citações (271): Eu vivo na Lisboa que amo (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)
3 comentários:
Será possível regressar de onde nunca se chegou para o que já não existe?
Um abraço do J.Belo
Boa pergunta, para a qual não tenho resposta. Há um regresso ao passado, sempre presente, que nos impede de nos reencontrarmos tal como éramos antes.
Muita saúde
Saudades num abraço to tamanho do rio grande de Buba
Zé, Josés, Zé Teixeira, Zé Belo: andamos a blogar há mais de 20 anos (desde 2004, ano que praticamente não conta, publicámos "apenas" 4 postes")... Este poste do Zé Teixeira é o P26888 (!)...Publicamos, em média, mais de 1300 postes por ano... Todos os dias (!), como se fosse um jornal diário, o nosso blogue muda de cara, há sempre "coisas novas", mais interessantes ou menos interessantes, que chamam a atenção do leitor...
Ao fim de 20 anos, há naturalmente um "cansaço bloguístico"... Já fizemos pelo menos 10 "comissões na Guiné", cada uma de 2 anos... Não há "tuga" nem "turra" que aguente!... Tudo isto para dizer que é uma pena o texto intimista do Zé Teixeira passar um pouco ao lado, na voragem dos dias... Merecia ter, pelo menos, uma boa meia dúzia de comentários... Há uns anos atrás tê-los-ia... Desculpas ? Estamos "velhos e cansados"... Não vale a pena arranjar desculpas !...
O Zé Belo, distante, enigmático, lapónico..., interpelou-nos, mais um vez com uma questão existencial: "Será possível regressar de onde nunca se chegou para o que já não existe?"... A esta hora da manhã, sem tomar o meu pequeno almoço ("uma salada de banana, maçã reineta ou pera rocha, morangos, nozes da Califórnia e iogurte grego"... + um café!), não me atrevo a sequer a equacioná-la... quanto mais a tentar respondê-la... Mas mexe com a gente..., mexeu comigo!...
Como mexeu a leitura, a primeira que fiz hoje (e só hoje!, às 7 da manhã), da reflexão, pungente, do Zé Teixeira, "A guerra nunca acaba, fica connosco"... Levei um murro no estômago vazio!...Revi-me em grande parte na história de vida do Zé, o seu percurso foi o de muitos nós... Um calvário doloroso que cada um de nós, antigos combatentes, percorreu... antew, durante e depois da Guiné....Solitário!...Mesmo nos momentos mais exaltantes das nossas vidas, pessoais, familiares e coletivas, tivemos de pôr entre parênteses a p*ta da guerra que fomos obrigados a fazer e da qual regressámos com um sentimento, pesado, opressivo... Regressámos com vida, mas, muitos de nós, com a "morte na alma"... Cumprimos o "dever para com a Pátria! (!)" (que está sempre acima dos regimes políticos), ou seja, pagámos-lhe o "imposto de sangue" que ela nos exigiu... Retomámos o nosso lugar (que já não era o mesmo!), continuámos a ter o direito de viver aqui e agora, mesmo que muitos também tenham optado por seguir os caminhos da diáspora (e de "novos exílios", como o Zé Belo)...
Zé Teixeira, está lá tudo. De facto, a guerra nunca acaba, fica connosco. Nenhum de nós faria melhor. E arrematas com um sorriso e uma nota de esperança e de fé, reveladores da tua grandeza humana... Por outras palavras, e parafraseando o Pablo Neruda, disseste o que é importante: "Confesso que vivi"...(Horrível, ou pelo menos "chato", é chegar à porta do São Pedro, de mãos vazias, sem nada para negociar...).
C/ um alfabravo fraterno, Luís
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