sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21795: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (36): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Chegou-se a um momento em que se cruzam os acontecimentos do tempo da guerra com o dos regressos à Guiné, estes, por sinal, festivos e simultaneamente dolorosos. Annette registou conversas, espicaçou o diálogo sobre os retornos, sabia que tinha havido reencontros, tudo com pretextos profissionais, selaram-se novas cumplicidades. Um Soncó volta sempre. É um dever, é uma razão de ser. Paulo aprendeu ao longo dos anos que houve quem regressasse da Guiné profundamente malquisto, magoado, disposto a tratar aquele passado como livro fechado. Ele e a sua circunstância ditaram outro caminho, por isso acedeu facilmente a satisfazer a curiosidade de Annette quando ela lhe perguntou nas curtas férias de Lier, não muito longe de Antuérpia: o que representou na tua vida regressar aos locais de tantos afetos e de tantas violências? E Paulo contou-lhe o significado que ele atribuía aos seus retornos, afinal demonstrativos de que há memórias que nunca se apagam. E repetiu-lhe: um Soncó volta sempre.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (36): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon amoureux, trabalhei todo o dia em Gand, era uma reunião promovida pela Comissão com médicos de várias categorias, retive comentários de professores universitários, eminentes cirurgiões, médicos de família também, mas havia na assistência representantes da indústria farmacêutica, farmacêuticos e especialistas em Saúde Pública, não sei se não estou a dizer algum disparate, mas passou-se o dia inteiro a ouvir intervenções sobre automedicação, tudo começou com a intervenção do Comissário da Saúde que tratou a automedicação como um fenómeno inevitável e em expansão, não só para garantir a eficiência dos serviços de Saúde e medicamentos essenciais a preços abordáveis, transferindo os medicamentos não prescritos pelo médico para um novo quadro de responsabilidade entre farmacêuticos e utentes e doentes. Houve para ali uma certa polvorosa, os médicos entendem que os doentes, de um modo geral, ainda não estão preparados para uma automedicação criteriosa. O representante da indústria farmacêutica, por seu lado, mostrou-se entusiasta para que a lista destes medicamentos cresça e revelou que os laboratórios gostariam de fazer uma comunicação direta com os doentes. Não podes imaginar o pandemónio que houve na sala. E recordei-te o dia todo porque no ano em que nos conhecemos tu tinhas vindo a Bruxelas colaborar na primeira conferência europeia sobre a automedicação.

Obrigado pela organização que estás a dar a todos os teus apontamentos até agosto. Tenho uma surpresa para ti. Coligi as nossas conversas em Lier, estava mortinha de curiosidade para saber o que representava a Guiné nos anos subsequentes ao teu regresso. Vê se compreendi bem, e o que estiver impreciso acrescenta ou corta. Pelo desenvolvimento que estás a dar ao romance, parece-me que faz todo o sentido que haja um posfácio, voltaste à Guiné em 1990, uma curta viagem, trabalhaste sensivelmente cinco meses em 1991 como cooperante, ficou-me a impressão de que houve alegrias e deceções profundas.

Retive o seguinte. Regressas a Lisboa em 1970, tens vários militares feridos, uns a pôr próteses, outros em tratamento. Aquele teu furriel cujo sistema nervoso colapsou ainda estava muito débil, quase apático. Recebes visitas frequentes do Paulo Ribeiro Semedo e do Fodé Dahaba. Virão mais tarde outros sinistrados, caso daquele teu grande amigo, Mamadu Camará, era soldado Comando, foi gravemente ferido num calcanhar, tudo se tentou para a sua recuperação, mas a perna gangrenou, houve que a amputar, ainda hoje vocês se encontram. Outra gente da Guiné ia aparecendo, é o caso do Abudu Soncó, o filho mais novo do régulo, que apareceu em 1996, ele era professor primário, passava longos meses sem receber salário, aproveitou um curso em Setúbal e foi trabalhar para a construção civil. Ri-me imenso quando me falaste de que tinhas preenchido uma declaração dizendo que o Abudu fora admitido em tua casa como criado, ele para ficar em Portugal tinha que ter uma fonte de rendimento, foi esse o expediente encontrado.

A Guiné entrara no limbo no teu quotidiano, mais tarde foste solicitado para escrever em algumas publicações, registei que fora trabalho penoso ir aos escaninhos da memória e encontrar episódios aliciantes, ilustrativos da guerra em que te movimentaste, foi trabalho de pouca dura, sentiste alívio que tudo permanecesse no limbo. Até que um dia, no final de 1989, foste chamado ao teu diretor-geral que te informou que as autoridades portuguesas, no âmbito das reuniões ministeriais que estavam a ter com os novos países independentes de língua portuguesa, para articularem posições quanto à Cimeira da Terra, que se iria realizar no Rio de Janeiro em 1992, o Ministro da Guiné-Bissau, para completa surpresa do ministro português, pedira-lhe cooperação para aprofundar uma política de consumidores no país, coisa considerada urgente. Estava aprazada uma reunião para janeiro, em Bissau, iria a subdiretora-geral e fazia todo o sentido que tu participasses nessa missão, não mais de uma semana, era só para avaliar da viabilidade de tal cooperação e em que termos ela podia ser feita. Foste, foi um grande choque encontrar Bissau a caminho do descalabro, as ruas esburacadas, os prédios em ruínas, a Guiné a viver da ajuda internacional, a classe dirigente enriquecida e o povo muito pobre. Ficaste assombrado com o funcionamento da administração, uma diretora-geral do Comércio Externo recebeu-vos logo declarando que tinha pouco tempo disponível, precisava de ir para a sua empresa pois tinha um contrato de exportação vantajoso para tratar… E à porta do hospital Simão Mendes viste chegarem os familiares dos doentes com colchões, havia camas nas enfermarias, mas os colchões estavam literalmente podres. Tu sentias uma infinita tristeza com um espetáculo tão deplorável. O ponto alto dessa estadia foi a visita a Missirá, graças a um outro cooperante, o carro avariou mas ele arranjou uma camioneta de caixa aberta, desde que te aproximaste de Mato de Cão até tomarem a estrada que leva Canturé a Missirá, passando por Cancumba, tu entraste em transe, a procurar reconhecer os locais que percorrias com tanta assiduidade, ficaste impressionado por ter voltado vida a Cancumba, durante a guerra não havia vivalma, e a alegria do reencontro com amigos, registei o abalo que sentiste quando abraçaste Bacari Soncó, que será mais tarde régulo do Cuor, a conversa havida com a população, tu, a tua subdiretora e o cooperante português (registei o nome, Dr. Francisco Médicis), vocês rodeados dos anciãos, mais atrás os homens mais novos e os jovens adultos, ao fundo as mulheres e as crianças. Antes, tu percorreras Missirá sempre a soluçar, à procura de vestígios do passado, olhando para os tetos das casas e recordando o trabalhão que dera a chegada de tanta chapa zincada, entregavam-te papéis à socapa, o professor pedia cadernos e lápis e todos os livros disponíveis, alguém te entregou uma folha a pedir equipamentos de futebol, faltavam sacos de cimento para acabar a reparação da mesquita, noutra folha alguém invocava generosidades pretéritas, precisava de dinheiro para comprar arroz, óleo e sabão, se podia dar uma ajuda de uns escassos milhares de pesos… E tu ainda ficavas mais magoado, não vieras preparado para tanto desembolso. A reunião prolongara-se até meio da tarde, a despedida foi um sofrimento ainda mais penoso, até porque foi nesse momento que chegou Cherno Suane, o teu guarda-costas, alguém fora de bicicleta chamá-lo a Gambiel, e quando o viste foi outro choro irreprimível, porque ele logo disse que sabia por Deus que um dia o virias buscar, um irmão ajuda sempre o seu irmão, era para ele impensável que eu não o trouxesse para Portugal, fora castigado porque pertencera aos Comandos, era um banido, tinha emprego na empresa Socotran, cortava madeira, mas hoje mesmo viria comigo para Bissau, estava pronto a partir para Portugal. E tu transido, o que responder a este homem que te tinha dado uma amizade desvelada, que naquela amaldiçoada noite de 16 de outubro de 1969 ia no guincho do Unimog 404 e que com o sopro da explosão da mina anticarro voara uns bons metros até aterrar em cima de um morro de bagabaga, trazido para Finete, tu abraçado a quem davas como moribundo, o rosto todo retalhado, em Bissau diagnosticado duplo traumatismo craniano, e que superara o sinistro, como era possível agora dizer-lhe que não? E regressaram a Bissau, o Cherno empertigado na caixa da camioneta onde iam as prendas da população, várias galinhas e sacos com mangas. Mais tarde, o Cherno veio para Portugal, tornou-se uma das mais queridas amizades, encontrou emprego num estabelecimento de eletrodomésticos na região de São Paulo, entre o Cais do Sodré e o Conde Barão, foi o que tu me ditaste, espero que tenha escrito bem.

Estou agora a alinhavar o essencial do que me disseste da tua experiência em 1991, que peripécias, cher Paulo! Eu vou tomando nota de tudo o que te vem à memória, não te quero mentir, há momentos em que me convenço que o que se escreve na literatura é menos empolgante do que se passa na realidade… E pergunto-me a mim própria como é que aquela experiência da Guiné te fez mais forte, te trouxe uma maior alegria de viver. Disseste-me um dia que teres perdido tudo o que trouxeras de Lisboa numa flagelação em que se incendiou a tua casa, não te trouxera grande inquietação, havia que refazer o quartel e tratar dos vivos, os teus trastes foram considerados coisa morta, e havia mais vontade de viver, seria ela capaz de fazer renascer roupas, livros, discos e recordações feitas cinza, e que a grande lição aprendida é que se a vida não renasce é porque se perdeu o respeito por nós e o amor pelos outros. Quando voltas a Bruxelas? Onde passaremos a Páscoa? Que saudades tenho de ti, a despeito de tanta companhia que me dás. Obrigado pela tua joie de vivre, mon adorable, bien à toi, Annette.

(continua)

Local em Mato de Cão onde se fazia a vigilância das embarcações militares e civis no Geba
Edifício dos CTT, Bissau, imagem de Didinho, com a devida vénia
A beleza acrobática da subida da palmeira, um fruto que pode custar a vida, imagem de Didinho, com a devida vénia
Pescador no Rio Grande de Buba
Ainda hoje estremeço nesta panorâmica da velha tabanca de Bambadinca, ao fundo à direita estão os estancos onde se comprava desde a graxa a biscoitos, ali tudo se encontrava, do lado esquerdo, situava-se a loja do Rendeiro, outro fornecedor, detinha uma caverna de Ali Babá para primeiras necessidades, e ao fundo, feita a cambança do Geba, a bolanha de Finete, ao fundo à esquerda vêm-se os armazéns do porto, tudo mudou, a decadência tomou conta de tudo.
Uma imagem que vale por mil palavras
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21769: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (35): A funda que arremessa para o fundo da memória

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