domingo, 17 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21775: Fotos à procura de... uma legenda (137): Pistas de leitura para uma festa do fanado mandinga, em 1973, em Bigene, região do Cacheu (Texto: Cherno Baldé; fotos: António Marreiros)



Foto nº 1


Foto nº 3


Foto nº 4

Guiné > Região de Cacheu > Bigene > CCAÇ 3 (1973/74) > A festa do fanado... mandinga


Fotos (e legendas): © António Marreiros (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1.  Mais um precioso comentário do nosso amigo e colaborador permanente Cherno Baldé, desta vez às fostos do António Marreiros, inseridas no poste P21760 (*) .

Voltamos a reproduzir, embora em formato mais reduzido, as belas imagens captadas pelo nosso camarada António Marreiros em Bigene, em 1973. O Marreiros, um algarvio que vive há muito no Canadá, foi alf mil, CCAÇ 3544, Buruntuma, 1972, e CCAÇ 3, Bigene, 1973/74.





António Marreiros

Legendas para as fotos de uma festa do fanado,
em Bigene, em 1973




Cherno Baldé
 

Caro amigo Antó
nio,

Devem ser fotos tiradas em Bigene a julgar pelo ambiente, população e a manifestaçao cultural em presença.

As fotos nºs, 1, 3 e 4 são do mesmo dia e da mesma festa de animação de um fanado mandinga de rapazes que já devem estar no mato h+a cerca de uma semana.

Os guardiões do fanado, lambés, voltam à aldeia com um ou dois kankurans ou cancurans (o tal ser mascarado com um tecido vegetal) que não é suposto ser conhecido e cuja origem e destino são desconhecidos tal como a origem do bem e do mal que ele vem exorcizar e extirpar a fim de proteger os jovens fanados (iniciados) que, supostamente, no preciso momento se encontram num estado de vulnerabilidade face às forças ocultas.

A festa é da comunidade, incluindo homens e mulheres, mas a animação é sobretudo dos mais novos entre jovens e raparigas, familiares dos iniciados ou fanados, que cantam e dançam dando conhecimento a todos que a vida e a saúde das crianças que se encontram na barraca do fanado estão bem protegidas pelo espirito do kankuran.

De casa em casa vão recolhendo alguns donativos em produtos alimentares que servirão para o sustento da barraca durante alguns dias e assim por diante.

A duração média de um fanado (periodo iniciático) é variavel entre 1 a 3 meses. Há casos extremos, verificados entre certos grupos (Balantas e Nalus) que podem durar até 6 meses.

A festa do fanado é um ritual de iniciação que já existia antes da chegada das grandes religiões dos livros ou abraâmicas e continuam a ser feitas já com alguma influência destas com a eliminação dos aspectos mais feticistas das religiões tradicionais africanas.




Foto nº 2 > O António Marreiros no meio dos blufos, balantas


A foto nº 2 não deve estar relacionada com as outras, pois que se trata de jovens blufos, balantas em migração. Nesta fase das suas vidas são capazes de tudo, porque consideram-se livres das restrições da sociedade e é também a fase da moldagem do seu espírito e capacidades de guerra e de resiliência que os prepara para a vida futura onde a astácia, a camuflagem e a coragem sero os elementos mais apreciados e valorizados.

Durante a minha infância, e tão idiota que era, participei em três fanados diferentes no mesmo ano (1969).

Primeiro levaram-me para o fanado dos fulas, tipico dos Fulas-forros a que pertencia que durou mais ou menos um mês.

Duas semanas após a minha saida, eis que os jovens Fulas-pretos, por sua vez, deviam ser submetidos ao mesmo ritual, mas como diziam que o nosso era tão leve que mais parecia fanado de mulheres, lá fui outra vez para ver com os meus próprios olhos em que é que era, de facto, diferente. Desta vez não fui submetido ao corte físico [do prepúcio] como da primeira vez e, no fim, depois de dois meses, constatei que não era muito diferente daquilo que ja conhecia do meu primeiro fanado.

Passado um més após a saida deste último, era a vez de os mandingas celebrarem o seu fanado e, eis senão que o menino Cherno, sempre insatisfeito e curioso, queria ver com os próprios olhos como era o tão propalado fanado mandinga.

Apos três meses de vai e vem entre a barraca no mato e a aldeia para transporte de comida e água para os fanados-novos, incluindo os preparativos e as festas semanais dos kankurans na aldeia, finalmente fechamos a barraca, voltamos a aldeia num ambiente de grande frenesim festivo.

Mas, a constatação final era que tudo não passava de pura propaganda para a valorização de grupo e a única diferença a considerar, de facto, era a animação dos kankurans e o incomparável talento e capacidade de alardear e fazer propaganda e folcore sócio-cultural, típico dos (artistas) mandingas.

Factos e evidências que justificam o nascimento e sobrevivência do provérbio guineense que diz, em crioulo:"Duno di boca mas duno de mala".

Em tradução livre: Mais vale ter uma boca refinada do que uma mala cheia de dinheiro", ou seja, a aparência (a propaganda) quando bem utilizada, vale mais do que a riqueza (conhecimento, trabalho, o saber fazer). [O provérbio popular português diz o contrário: "Antes sê-lo  que parecê-lo", LG. ]

Este conceito, também, é universal, acho eu e hoje mais que nunca. (**)

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

7 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Cherno, mais outra valiosa lição de etnografia guineense!... Obrigado.

Sobre o fanado, temos mais de vinte referências no nosso blogue. Era uma cerimónia, pelo seu impacto sociocultural, que despertava a nossa curiosidade e atenção...Há outras belas fotos capatadas por outros camaradas nossos. Falta-nos, naturalmente, o conhecimento íntimo do que se passava nas "barracas": rituais, transmissão de conhecimentos, reações, emoções, etc.

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/fanado

Anónimo disse...

Que aula sobre as culturas guineenses !
Aprendi mais alguma coisa, graças ao nosso amigo Cherno.
Obrigado. Um abraço.

Carvalho de Mampatá

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Há muitos provérbios sobre as falsas aparências... Gosto muito deste: "Nem tudo o que luz é ouro, nem tudo o que é feio é mau; quem não tem que fazer, vá fazer colheres de pau"...

Ou este: " A Cruz nos peitos e o Diabo nos feitos"...

Anónimo disse...

Caros Amigos,

Quanto faço a descrição dos ritos e culturas africanas, antes do mais, faço-o com muito prazer, na certeza de que cairão em ouvidos bem atentos e interessados em conhecer algo que já viram ou viveram em circunstâncias diversas, mas também o faço porque estou ciente de estamos na fronteira, no limiar de passagem de uma uma época e de gerações que foram educadas dentro de modelos e formas de pensar e de estar completamente diferentes da época actual e cada vez mais distantes das próximas gerações de africanos que vão surgindo.

Neste particular, pode-se perguntar:
-Qual é ou qual era o sentido e papel do fanado na cultura africana no presente e passado?

No passado, na época pré-colonial, era a única escola de formação para a vida adulta e, concomitantemente, de escola de preparação de guerreiros para a defesa e conquista dos interesses dos diferentes grupos étnicos e/ou clánicos assim como algumas ferramentas e técnicas de comportamento usadas para a condução de uma vida em familia.

Nas épocas subsequentes da conversão forçada ao Islamismo em certas regiões e a implantação do período colonial e as escolas europeias de assimilação cultural, houve negociações e adaptações socio-culturais, mas o seu papel principal de preparação de homens fortes, resilientes e respeitadores das palavras e orientações dos mais velhos continuou a vigorar de tal forma que, em muitos casos eram focos de luta e de resistência anti-coloniais como ficou muito bem demonstrado no caso dos papeis da região de Bissau/Biombo.

Para uma melhor compreensão, faço um paralelismo entre o nosso fanado e o que foi para os portugueses da vossa geração a recruta. Talvez a única diferença esteja nas idades de uns e outros. De resto a brutalidade, insensibilidade e a disciplina militarista infligida aos mais novos ou recrutas é a mesma, tudo no sentido de matar o homem bom e ingénuo que tu eras antes e colocar no seu lugar um homem de guerra, capaz do bem e do mal ao serviço de objectivos superiormente traçados. De modo que, os soldados nativos de recrutamento local detinham uma clara vantagem. não só do conhecimento do meio, mas também da preparação física e psicológica durante a guerra, mesmo se era evidente a vantagem dos metropolitanos no conhecimento da estratégia, táctica e domínio das armas.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Excelente comentário do Cherno sobre a essência do "fanado", enquanto "rito de passagem", ou seja, de mudança de "status" de um jovem, rapaz ou rapariga, e a sua plena integração na comunidade a que pertence...

Em todas as épocas, sociedades e culturas houve (e continuam a haver) "ritos de passagem", da família à escola, da igreja ao exército, etc.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

blufo | s. m.

blu·fo
(balanta blufo)
nome masculino
1. [Guiné-Bissau] Rapaz não circuncidado.

2. [Guiné-Bissau] Jovem inexperiente.

3. [Guiné-Bissau] Indivíduo considerado estúpido.

4. [Guiné-Bissau] Dança executada na cerimónia de circuncisão.


"blufo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/blufo [consultado em 17-01-2021].

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Segundo o etnólogo italiano Salvatore Cammilleri, o "blufo" é aquele que "não sabe nada, não é capaz de nada, não pode fazer nada que não lhe seja ensinado"...Metaforicamente falando, e recuoerando um conceito nosso, e já ultrapassado da psicopedagogia, é uma "tábua rasa", um disco virgem, não formatado...

"Blufo" é um conceito fundamental para se perceber o sistema de formação e educação entre o povo "brasa" (ou balanta), o mesmo é dizer o processo de integração social masculina...que vai dos seis anos aos vinte e quatro / trinta anos!... Ora numa sociedade gerontocrárica, este conceito tem implicações tremendas na autonomia e no exercício da liberdade individual: um jivem adukto balanta, enquanto "blufo", está sujeito à mais estrita obediência ao adulto, ao ancião...

Como o "blufo" não sabe nada, é uma espécie de idiota, a que se perdoa a idiotice...

Não é por acaso que o PAIGC criou uma revista para formação juvenil a que chamou "Blufo" e fez dos balantas a sua "tropa-macaca", os seus "intantes", a sua "carne para canhão", os seus "cabras-machos", os seus "homens do mato"... Amílcar Cabral tinha um especial apreço por este povo... O PAIGC e os missionários católicos italianos, como o Salvatore Cammilleri. A administração e a tropa coloniais, pelo contrário, estigmatizaram-nos, como "rebeldes,desleais, ladrões, bêbedos"... Testemunhei isso em Bambadinca, no tempo em que lá estive (1969/71)...