sábado, 23 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21799: Os nossos seres, saberes e lazeres (434): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (3): Das Caldas da Rainha à Foz do Arelho (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Era impossível escapar à rota caldense, um convívio que se encetou há mais de 60 anos, tudo por causa das férias na Foz do Arelho, inevitável não ir à Praça da Fruta, D. Anita, minha madrinha, acolitada por marido e ajudantes, abastecia-se de fruta e legumes, carne e peixe, nenhuma das refeições tinha menos de dez pessoas. Havia escapadas até à Pastelaria Machado, com os seus doces icónicos. Atravessava-se a cidade para ir até Peniche, o meu padrinho era conserveiro, ali havia fábrica, uma outra na Nazaré, aqui havia o ritual de uma sardinhada servida por mulheres indumentadas com as sete saias, refeição de arromba. Interessava-me visitar a azulejaria de muitos edifícios caldenses, um legado de Rafael Bordalo Pinheiro, não perdia ocasião de ir até ao Museu José Malhoa, o mestre pintou os pais do meu padrinho, são dois retratos fabulosos.
O parque continua muito bem tratado, é aprazível e dá gosto vê-lo sempre cheio de vida. Pedi a quem ia ao volante de não fazermos diretamente a estrada para a Foz do Arelho, ocorreram outras recordações, os passeios ao Bom Sucesso e à Serra, atravessar a lagoa até à Lapinha, então um lugar bem pobre. E assim se contornou a lagoa para ver o oceano e os areais como num grande ecrã, longe da aglomeração hoje urbana, da Foz do Arelho. E foi maravilhoso reviver o passado, lembrar os meus mortos muito queridos e aqueles que estão distantes, que a roda da fortuna separou. A viagem continua, regressa-se a Óbidos, há que fazer as honras à casa, e depois, de orelha murcha, fazer uma pausa nas férias.

Um abraço do
Mário


Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (3):
Das Caldas da Rainha à Foz do Arelho


Mário Beja Santos

Tive esse privilégio, fazer vilegiatura na Foz do Arelho, anos a fio, em casa dos meus padrinhos, a última casa que alugaram tinha sido a colónia de férias do Colégio Moderno. Era inevitável vir às Caldas, primeiro pelo abastecimento, não há nada no país como a Praça da Fruta, muita dela proveniente de localidades limítrofes, caso da Benedita. O parque é de visita obrigatória, sempre o conheci bem mantido, com os seus cortes de ténis e a escultura de José Malhoa como que a convidar a visita do museu com o nome deste ilustríssimo caldense. E a igreja-matriz, que vem do tempo da donatária, a Rainha D. Leonor, que deu certidão de nascimento em 1488, eram as Caldas um mero lugarejo. Falava-se das cerâmicas de Rafael Bordalo Pinheiro, havia sinais do seu trabalho no Museu José Malhoa e em edifícios da cidade, bastava olhar para aquela azulejaria do tipo sevilhano. Era estância termal, não perdeu a fama, quase no final do século XIX as termas passaram a ser local obrigatório associado a férias, a população cresceu. Isto são coisas que eu estou a ler no livro Linha do Oeste, que também anuncia a chegada do comboio, a modernização urbanística, a importância da cerâmica, o Hospital Termal e a beleza do parque, obra do Administrador Rodrigo Maria Berquó, um arquiteto que procedeu à construção do parque com um lago e áreas aptas à prática de desportos. Nesses cortes de ténis, jogaram muitos estrangeiros fugidos aos horrores da II Guerra Mundial, eles estavam estacionados nas Caldas por decisão política superior, há mesmo livros que recordam a sua presença. E no século XX, em 1927, passou a cidade, destaca-se pelo seu trabalho de planeamento urbano o jovem arquiteto Paulino Montez. Mas voltemos atrás, por aqui andou Rafael Bordalo Pinheiro e deixou sinais do seu génio, a sua cerâmica era tão engenhosa que ainda hoje se reproduz e tem ávidos compradores.

Praça da Fruta, Caldas da Rainha

O Museu José Malhoa não se cinge ao romântico naturalismo deste caldense ilustre. É certo que ele está altamente representado por figuras prestigiadas da aristocracia, cenas campestres, figuras populares, retratos de amigos e discípulos como, caso do consagrado retrato que dedicou à sua discípula Laura Sauvinet, mas outros grandes artistas justificam uma demorada visita. Com efeito, a coleção de pintura, desenho, aguarela, escultura e cerâmica, onde predomina o movimento naturalista, tem obras de grande mérito e mesmo modernistas como Eduardo Viana aparecem aqui representados com obras de significado.

Estátua de José Malhoa, junto do museu do mesmo nome, Parque D. Carlos I
Retrato de Laura Sauvinet, por José Malhoa


Cidade termal, fundada em finais do século XV, sofrerá novo impulso no período joanino. Ganhou muito com o comboio, com a modernização urbanística, com o dinamismo do Hospital Termal. Não há viajante que não se abisme com aquelas construções fantasmáticas, parece que uma parte fundamental do termalismo deixou de pé uns edifícios esventrados, numa plácida agonia, mas na prática é um abandono chocante.

Os pavilhões termais, imponentes mas decadentes, Parque D. Carlos I
Os edifícios termais vistos de perto


O Parque é de uma indizível beleza, muito bem cuidado, e a prova de que é atrativo é a sua utilização para atividades desportivas, para recreio e lazer, e as instalações museológicas favorecem a atmosfera local, entra-se e sai-se para contemplar edifícios, visitar lojas de cerâmica, o meio envolvente é muito sugestivo. E é imperdível a visita à igreja-matriz, Nossa Senhora do Pópulo, está marcada pelo tardo-gótico, o seu interior é uma preciosidade em azulejaria, talha e escultura.

O viço das buganvílias num parque primorosamente mantido
A torre sineira da Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, Caldas da Rainha
Uma imagem interior da Igreja de Nossa Senhora do Pópulo


Prossegue a viagem em direção à Foz do Arelho, com uma nuance, não se vai propriamente pelo Nadadouro e contorna-se a lagoa, tom-se outra direção, caminha-se pelo lado oposto, há necessidade de recordar certos passeios de outrora, a praia e a lagoa eram uma outra coisa, caminhava-se pelo areal naqueles dias de bandeira vermelha e mar em turbulência, as ondas em cachão, uma constante neblina, impossível ver as Berlengas. Ia-se em direção ao Gronho, um maciço todo ornamentado de vegetação rala. Faziam-se burricadas quase até Peniche, o mar em vazante, todos na galhofa montados na azémola, com farto piquenique, ia-se até às praias de Peniche, o nosso guia sabia exatamente a tabela das marés, regressava-se à Foz do Arelho são e salvo. E foi com essa recordação, também a pensar nos passeios em que se atravessava a lagoa de barco para vir até à Lapinha, hoje tudo radicalmente transformado, que se parou diante daquele mar imenso, lá está a lagoa sempre ameaçada pelo assoreamento, deste ponto é tudo uma beleza, nem dá para acreditar que aquela aldeia que conheci vai para 60 anos se transformou e adaptou ao turismo de massas. Está na hora de regressar a Óbidos, amanhã vamos visitá-la a preceito, conviver um pouco com essa pintora extraordinária que foi Josefa d’Óbidos.

A Foz do Arelho contemplada do Gronho, a permanente ameaça da Lagoa de Óbidos assorear
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21773: Os nossos seres, saberes e lazeres (433): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (2): Conservas de peixe, um naufrágio com grande riqueza, uma fortaleza-prisão: Peniche (Mário Beja Santos)

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