segunda-feira, 18 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23177: Humor de caserna (50): "O meu pessoal só pode transitar em canoas balantas. E alguns não sabem nadar. Conclusão: Siga a Marinha!": um documento do "Gasparinho" que ainda hoje nos suscita um sorriso amargo (António J. Pereira da Costa, cor art ref)



Guiné > Região do Oio > Nhamate > CART 3330 > 1971 > Uma peça de antologia do humor negro... castrense: "O meu pessoal só pode transitar em canoas balantas. E alguns não sabem nadar. Conclusão: Siga a Marinha!"  ...


1. Este documento foi-nos oportunamente remetido pelo António J. Pereira da Costa, cor art e membro da nossa Tabanca Grande, com a seguinte informação (*):

(...) Aqui vai uma nota escrita pelo célebre major Gaspar que inventou aquela expressão que ainda hoje usamos: Siga a Marinha!

In Os Anos de Guerra: 1961 - 1975: Os portugueses em África: Crónica Ficção e História. Organização de João de Melo - II Volume. S/l: Círculo de Leitores 1988. 190 (documento reproduzido com a devida vénia...).

Leiam-na com atenção e vejam se ela não é um tratado de logística da Guerra Colonial. É de um humor amargo, mas era a verdade. (...)


2. Fixação e revisão de texto, da responsabilidade do editor LG, de modo a tornar mais legível o conteúdo da mensagem:


Ministério do Exército | Comando Territorial Independente da Guiné

Mensagem nº 125/71 [classificada como Confidencial, Urgente), enviada pelo Comandante da CART 3330, SPM 6928, Cap Art José Joaquim Vilares Gaspar, dirigida ao Comandante da Engenharia, com conhecimento a CAOP1, RepOper/Com-Chefe, RepPop/Com-Chefe, RecAcap/Com-Chefe, e BCAÇ 2928. Entrada na Secretaria do Batalhão de Engenharia, nº 306, em 22/3/71.

Nhamate, 18 de Março de 1971.

Assunto - Quartel em Nhamate (ou mais propriamente abarracamento)

1. Exponho a V. Excia um dos assuntos mais vitais para a continuidade militar e humana de NHAMATE [, a leste de Binar: vd. carta de Bula].

2. Passo a descriminar [sic, em vez de discriminar]:

a) DEPÓSITO DE GÉNEROS

Quando chover fico sem pão pelo menos 15 dias. Julgo que não é muito agradável. Informo V. Excia que não como pão. Gordo estou eu.

E os outros géneros ? E os autos subsequentes ? Só problemas.

b) CASERNAS: 

Barracas de lona, todas oficialmente dadas incapazes. Na Birmânia, viveu-se assim 1 ou 2 meses. Os quadros vivem-no há 10 anos. E os milicianos (os meus, de certeza) “dão o litro” até ao fim. Os soldados dão tudo. Há que tudo lhes dar, na medida do possível.

c) CANTINA: 

E o tabaco ? Desde Napoleão e Fredy [diminuitivo de Frederico] da Prússia que o tabaco era uma das bases da eficiência do Exército. Como combater ou trabalhar sem o velho cigarrinho ? E outros géneros ? V.Excia, mais experiente, meditará sobre o assunto.

d) CASERNA DE CIMENTO: 

Único exemplar. Vou demoli-lo. Não tenho materiais. Solicito auxílio Engenharia.

e) MESS [sic, em vez de Messe]: 

Desde o início das chuvas desnecessita de garrafas de água. Basta as mesmas estarem abertas. Ponchos e gabardinas já temos.

f) CHAPAS DE ZINCO: 

Ao mínimo vento já voam no Quartel.

g) GABINETE D COMANDANTE E 1º SARGENTO: 

Com as chuvas eu e o 1º Sargento só temos a solução de entrar de escafandro, visto estar a 2 metros abaixo da superfície do solo.

h) O meu pessoal só pode transitar em canoas balantas. E alguns não sabem nadar. CONCLUSÃO: SIGA A MARINHA!


3. Este quartel tem se ser revisto por um Oficial de Eng[enharia], senão começo a construir um novo com os materiais dos REORD[ENAMENTOS], contra a norma, o que é aborrecido, contende com a disciplina e eu não gosto.

4. Agradecendo a boa atenção de V. Excia., gostaria de aqui ter como convidado um Senhor Oficial de Eng[enharia] a fim de concordar ou condenar as minhas asserções supras.

Cumprimentos,

O Comandante,
José Joaquim Vilares Gaspar, Cap Art



3. Comentário do editor LG:

Reproduzo, no essencial, o que escrevi na altura, há cerca de 14 nos atrás.

Repare-se no circuito da informação: uma simples mensagem, que devia ser de rotina, a pedir o apoio da Engenharia para se proceder a obras de reparação num aquartelamento  do interior (na realidade, um conjunto de barracos, como tantos outros), seguia para 6 (seis): o comandante do BENG 447,  com conhecimento a outras unidades,  incluindo três repartções do Com-Chefe!!!... 

Digam-me lá como se podia ganhar a guerra com tantos relés parasitas, porteiros, gate-keepers, típicos do disfuncionamento burocrático! ... 

De um exército em armas (que chegou aos 40 mil homens, no CTIG) quantos não haveria, do cabo ao sargento, do tenente ao coronel, com funções amanuenses, ligados à gestão da informação  e conhecimento?!

Milhares de homens, mangas de alpaca militares, escreviam notas como esta (seguramente menos geniais, divertidas, contundentes, demolidoras, corrosivas... como esta!), batiam-nas à máquina, expediam-nas, classificavam-nas, arquivavam-nas, retinham-nas, guardavam-nas na gaveta, analisavam-nas tardiamente, reencaminhavam-nas tarde e a más horas para o nível superior da hierarquia militar... 

Enfim, a maior parte das vezes estes homens não comunicavam devidamente, não recebiam resposta ou feedback positivo, continuavam perdidos e sós, nas Nhamates  e bu...rakos do mato da Guiné...

Pela primeira vez, em 2008, ouvi falar em Nhamate, na CART 3330 e no seu desconcertante e bravo comandante, o cap art Gaspar, tratado afetuosamente como "Gasparinhi"... 

Pergunta.se:

(i) será que a sorte dos homens que estavam em Nhamate melhorou ? 

(ii) será que nenhum morreu afogado na época das chuvas ? 

(iii) será que nunca lhes faltou o tabaquinho e a água de Lisboa

(iv) será que a Marinha seguiu mesmo ? 

(v) e o Gasparinho (que ternura de nome, posto pelos seus pares e usado pelos seus subordinados) não terá acabado na psiquiatria ? 

Sabemos hoje que acabou mesmo na psiquiatria e levou, ainda por cima,  dois anos de prisão disciplinar... Vejo que morreu cedo, coitado, em 1977... Um homem que tratava o Frederico da Prússia por Fredy merecia um estátua em Nhamate!

Tenho alguma relutância em classificar em poste na série Humor de Caserna... Embora ligeiro, soft, é o título que me acorreu primeiro... Mas podia ser outro qualquer, mais contundente, mais duro, mais agressivo, mais próximo do tempo e do lugar, algures na Guiné, longe do Vietname, como eu ironicamente costumava escrever, no tempo em que lá estive, em 1969/71.

4. Comentário adicional do António J. Pereira da Costa (*):

(...) Sobre este assunto quero acrescentar que não se tratava de uma situação de rotina, mas sim de um pedido para solução de um problema de instalações que se arrastava.

 Como podem ver,  o pedido era enviado às principais Repartições  do ComChefe que não estariam no circuito habitual para uma situação destas. Tratava-se, portanto, de fazer o "protesto" subir de tom para provocar a reacção de quem de direito. Sei que este desiderato foi atingido. 

Por mim considero este documento um verdadeiro tratado de logística, para além de uma prova de inteligêcia. (...)

26 de junho de 2008 às 23:07
_____________

Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 26 de junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2986: Humor de caserna (5): Siga a Marinha para Nhamate, mais abarracamento que aquartelamento (António José Pereira da Costa)

9 comentários:

Valdemar Silva disse...

Este major Gaspar tinha das boas.
Sobre a expressão "siga a Marinha", também, ouvi dizer ter surgido para indicar os prostíbulos da cidade: "Não sabe onde é o bordel? Siga a Marinha", mas parece-me de origem brasileira e sem o significado que conhecemos de não ser por falta de qualquer coisa que não resolvemos um problema.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

António J. P. Costa disse...

Olá Camarada
Ele dizia mais: - Siga a Marinha, porque o Exército já está e a Força Aérea já anda no ar há meia hora!
O comentário à nota dá pano para mangas e abona muito acercado do autor no que toca à descrição do ambiente logístico e da vida no "mato malandro"...

Um Ab. e boa semana
António . P. Costa

Valdemar Silva disse...

Olá camarada Pereira da Costa
De facto, e muito interessante, se formos procurar/consultar a origem da expressão "siga a Marinha" reparamos que vários autores a atribuem a um major durante a guerra na Guiné.
É caso para dizer, com a palavra periquito dicionarizada e uso da expressão siga a Marinha, a guerra na Guiné deu novas palavras a quase 295.000.000 de pessoas. Porra é obra.
Mas, nas palavras "embrulhar" de má memória mais a "bioxene" reconfortante, parece haver um certo melindre, ou por poder criar confusão, em dar categoria de dicionarização por, afinal, não perdermos a guerra e a rapaziada não estar sempre com os copos.

Um abraço, saúde da boa e siga a Marinha
Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

A verdade, verdade, é que a hierarquia senão toda, pelo menos a maioria não gostava de ouvir nem ler as verdades.
Daí levarem à conta de "saúde mental" alguns "avisos à navegação".O que é certo e verdade, já haver oficiais como o Major Gaspar, cuja visão e conhecimento dos problemas -que não eram partilhados ou aceites nos estados maiores- bem como a antevisão do futuro, já se tinham apercebido que algo não ia bem "no reino da Dinamarca".Neste caso diga-se Guiné.

E toma lá o a etiqueta de problemas mentais.Não era só no meio militar, já vi isto na politica
Um abraço
Carlos Gaspar

Anónimo disse...

A verdade, verdade, é que a hierarquia senão toda, pelo menos a maioria não gostava de ouvir nem ler as verdades.
Daí levarem à conta de "saúde mental" alguns "avisos à navegação".O que é certo e verdade, já haver oficiais como o Major Gaspar, cuja visão e conhecimento dos problemas -que não eram partilhados ou aceites nos estados maiores- bem como a antevisão do futuro, já se tinham apercebido que algo não ia bem "no reino da Dinamarca".Neste caso diga-se Guiné.

E toma lá o a etiqueta de problemas mentais.Não era só no meio militar, já vi isto na politica
Um abraço
Carlos Gaspar

Tabanca Grande Luís Graça disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Tabanca Grande Luís Graça disse...

Os regimes totalitários e os autoritários, à esquerda ou à direita.sempre lidaram com a "dissidência"... E as "igrejas" com a "heresia"... Os "dissidentes" (já não falo dos "opositores") eram tratados com a calúnia, o ostracismo, os manicómios, os "goulags", mas o que com a eliminação física pura e spreso. ...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Sempre lidaram MAL com a "dissidência"...

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Mais uma vez chamo a atenção para o facto de haver outras possibilidades de contestação. Esta era frontal, espectacular e ruidosa, embora fosse normalmente justa e certa.
Neste caso, julgo que uma contestação directa, fundamentada e reduzindo ao absurdo a situação sem alarde. No fundo, é o que se passa com as caricaturas - desenho com exagero dos traços fisionómicos do caricaturado - que normalmente agridem os caricaturados/situações/instituições e, assim, eles procuram relegar as questões importantes para segundo plano, agarrando-se e punindo o ridículo a que foram expostos ou se expuseram.

Um Ab.
António J. P. Costa