quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21584: Notas de leitura (1326): família, casamento e sexualidade, comentário de Cherno Baldé a uma das "Estórias cabralianas" ["Cabral, salvador das bajudas desfloradas"], da autoria de Jorge Cabral (Lisboa, ed. José Almendra, 2020, pp. 93-94)



Capa do livro de Jorge Cabral, "Estórias Cabralianas", vol I. Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp. (Preço de capa: 10 €). 




 Índice

O livro (*) pode ser adiquirido de duas maneiras:

(i) diretamente, na Livraria Leituria (Rua José Estêvão, 45 A, Pascoal de Melo / Jardim Constantino, Lisboa). preço de capa: 10 €

(ii) "on-line", em www.leituria.com: envio pelo correio: 10,00 €, mais 0,90 € de expedição; pode ser pago por multibanco, transferência, PayPal, etc.



1. Como já aqui dissemos em tempos (*), o "alfero Cabral" trouxe ao nosso blogue, à nossa tertúlia, à nossa caserna virtual, hoje Tabanca Grande. algo que podemos descrever como sendo o nosso lado mais solar, alegre, romântico, maroto, brejeiro, provocador, irreverente, desconcertante, descomplexado, histriónico, humorístico, burlesco, pícaresco, saudavelmente louco, próprio dos verdes anos (não é por acaso, que são os jovens que matam e morrem nas guerras)... Mas, neste caso, a guerra não foi só "sangue, suor e lágrimas"...

Finalmente ele deu à estampa o 1º volume das suas já famosas, aqui no blogue, "Estórias cabralianas". E no prefácio que lhe escrevi (**), com todo o gosto, eu digo que, para além do competente militar, alf mil at art, comandante do Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969/71), ele  foi o que mais nenhum de nós foi em simultâneo: "homem grande, pai, patrão, régulo, chefe de tabanca, conselheiro, psicólogo, ‘amigo do turra’, poeta, socioantropólogo, feiticeiro, ‘cherno’ (catequista), ‘mauro’ (padre), ‘médico (com a difícil especialidade de ‘obstetra e ginecologista’, “consertador de catotas”), sexólogo, advogado e não sei que mais." (p. 10). 

E tudo isto, sem nunca se ter batido ao louvor, à medalha, à cruz de guerra... Nem à simples comenda!

Bem, uma das estórias que eu agora reli, deliciado, fez-me recuar no tempo, ao relembrar-me  o anúncio comercial que um dia apareceu cravado no poilão da Tabanca de Fá Mandinga, à entrada do destacamento: "Alfero poi catota noba, dam trez bintim" ["Alferes põe catota nova, dá os três vinténs", em crioulo de caserna]... 

Não sei se o comandante de batalhão, a que ele estava adido [,primeiro o BCAÇ 2852 e depois o BART 2917], algum dia passou por lá e deu conta da tabuleta.  Mas ainda bem que não, porque teria que meter explicador...

Sei que não foi o melhor negócio da vida do "alfero Cabral", porque sempre o conheci como sendo um homem honesto, feito à semelhança e imagem de Deus, "pai dos orfãos e defensor das viúvas", incapaz de tirar proveito da miséria alheia... E, como advogado, trabalhou muitas vezes "por bono"...

Terá sido, isso sim, um das muitas boas ações, de natureza psicossocial, que  ele levou  a cabo no CTIG, nas tabancas à sua guarda, sempre perfeitamente alinhado com o espírito e a letra da política spinolista "Por uma Guiné Melhor"... 

Sendo eu  seu contemporâneo e visita frequente dos seus destacamentos (Fá Mandinga e depois Missirá),posso atestar duas coisas, por mor da verdade e da minha honra:

(i) nunca vi por lá nenhuma bajuda, bonita ou feia, com ar infeliz; 

(ii) quando fui gerente da messe de Bambadinca (tocava um mês a todos...), nunca arranjava galinhas (e muito menos ovos) nas suas tabancas... Mistério ?!...Só agora percebi porquê: o "alfero", que era também o "chefe da tabanca", tinha dado ordens terminantes às "mulheres grandes" para manter sempre um elevado "stock" de galináceos e de ovos, disponíveis para o supremo sacríficio das noites de núpcias...

Por tudo isto, recomenda-se vivamente a (re)leitura destas pequenas obra-primas (***) que é uma aperitivo e um convite para a compra e leitura integral do livro.


2. Estórias cabralianas > Cabral, salvador das bajudas desfloradas [, título original: "Alfero Cabral põe "catota nova"], pp. 93-94 [, há erro de paginação no índice]

por Jorge Cabral


Finda a comissão, calculem (!), fui louvado. O despacho do Exmo. Comandante do CAOP Dois [, com sede em Bafatá,] referia, entre outros elogios, a minha “habilidade para lidar com a tropa africana e populações”, a qual me havia “granjeado grande prestígio”.

Esquecido, porém, foi o essencial – evitei a dezenas de bajudas o repúdio matrimonial e a consequente devolução do preço. Essa tão meritória actividade, sim, teria merecido, não um simples louvor, mas uma medalha…

Entre Fulas, Mandingas e Beafadas, casar saía caro [, originalmente: "as mulheres eram compradas"], alcançando-se verbas elevadas. Cheguei a arbitrar casamentos, cujo dote atingiu os trinta contos! Claro que era exigida a virgindade, que às vezes havia desaparecido… Era então que o Alfero "odjo grosso" era procurado para remediar o que parecia irremediável.

Quanto ao teste pré-matrimonial, a cargo das mulheres grandes, que utilizavam um ovo (!), a questão resolvia-se, com alguns pesos.

O mais difícil era a prova do sangue no lençol, que devia ser exibido no dia seguinte à cerimónia. Equacionado o problema, adoptei uma solução que sabia já ter sido usada entre outras gentes com sucesso. Comprei em Bafatá pequenas esponjas, as quais, embebidas em sangue de galinha, e metidas no local apropriado, deram um resultadão.

Não houve mais Bajuda que não casasse em total e absoluta virgindade e confesso que me dava um certo gozo assistir às manifestações de júbilo dos viris maridos, no dia seguinte aos casamentos, no meio da algazarra da Tabanca.

Espalhada a minha fama, acorreram noivas de todo o lado. Ponderei mesmo montar um gabinete especializado, tendo chegado a escrever um folheto publicitário a informar que Alfero "poi catota noba, dam trezbintim".



Texto: © Jorge Cabral (2020). Todos os direitos reservados


3. O notável comentário, ou  crítica, mais de natureza socioantropológica, feito na altura [2013] pelo nosso Cherno Baldé [, hoje nosso assesssor para as questões etnolinguísticas], merece aqui ser publicado, na montra principal do nosso blogue (*):

(i) Comentáriodo Cherno Baldé:

Caro "Alfero Cabral",

Bonita descrição de factos de uma realidade vivida. O homem é plural.

O conceito da virgindade e a prática de testes de comprovação entre os povos islamizados da África deve ter as suas raízes nos antigos usos e costumes árabes.

Não concordo com o uso da palavra "compradas". Aqui fica melhor falar de dote, porquanto o valor total dos bens com que a noiva é dotada (o seu capital inicial) é sempre superior ao pretenso "valor da compra" e, em caso de incompatibilidade comprovada, a noiva é livre de voltar a casa dos pais e, se for por justa causa, a familia da mulher não é obrigada a devolver o dote ou valor da "compra".

 
(ii) Resposta do Jorge Cabral:

Eu sei, Cherno. Mesmo em Portugal existiu o dote. E, se consultarmos o velho código civil, lá encontramos o regime dotal. Quanto à virgindade, a falta dela, conduzia à anulação do casamento...Outros tempos...
 
(iii) Novo comentário do Cherno Baldé:

Obrigado por concordar comigo, obrigado pelo bom humor e não esqueça de fazer a devida correcção [,o que foi feito pelo autor...] antes da publicação do grande "best-seller" que se adivinha com as Estórias Cabralianas.

Como dizia o outro Cabral, as manifestações culturais são sempre o produto de uma época (tempo) e de um espaço bem determinado.

Desde criança que não me sentia bem na pele de um nubente fula por causa destas "provas" materiais a quente, que me pareciam humilhantes, ridiculas e injustificadas do ponto de vista humano (social) e económico (por causa do desperdício).

Assim, muito cedo, comecei a pensar numa estratégia para não me sujeitar a estas práticas que considerava caducas.

Quando voltei dos estudos, pensei que podia dar a volta, convencendo a minha namorada fula para um casamento discreto, sem barulho e sem a habitual cerimónia. "Niet!", ela, ao princípio concordou, mas rapidamente mudou de ideias, influenciada pela familia e colegas. Ela, uma menina ainda "virgem" (o que não era verdade), não podia ir a casa do seu homem assim às escondidas como se fosse um embrulho, nunca.

Com este primeiro desaire, compreendi que devia matar os germes do tribalismo que habitavam em mim, da mesma forma que habitam um pouco em cada Guineense, e ultrapassar os esteréotipos "raciais" alterando os gostos e as convicções interiorizadas na mente, como quem toma medicamentos amargos para sarar uma doença crónica mas curável. Mudei de perspectiva e comecei a ver as mulheres com outros olhos.

Foi assim que comecei a namorar com a minha actual mulher e companheira, com a qual vivo há mais de 20 anos. Não estando sujeita a mesma pressão social das mulheres fulas, ela aceitou, sem dificuldades, a minha proposta.

Com ela consegui fugir da exposição pública da nossa intimidade, mas em contrapartida fui obrigado (eram as suas condições) a formalizar três casamentos: Apresentação do "Cabaz" à familia (o pacto da etnia Papel, da parte dos pais), "amarra" (pacto muçulmano para satisfazer a parte materna - Nalú- e a minha familia) o casamento civil junto ao Tribunal com escritura e tudo.

No computo geral, acabei por pagar mais caro, financeiramente, do que seria normal e, apesar de tudo, ainda é cedo para concluir que a minha decisão foi acertada, pois o casamento misto, na Guiné e em qualquer outra parte do mundo, é um desafio com muitos imponderáveis. Foram muitas as vezes que surpreendi a minha esposa a questionar a honestidade do pacto que esteve na base do nosso casamento e, as vezes confessa para as amigas: "Se eu soubesse que estava a tratar com um economista, educado no mundo comunista..." enfim, com muitos "ses" e "istas" no meio de dúvidas e interrogações.

Na altura, a minha familia discordou, a minha mãe barafustou, mas como não tinham que pagar nada, acabaram por aceitar.

E tudo por querer fugir do barulho da multidão de mulheres curiosas (são as verdadeiras guardiães da tradição)e 5 minutos de stress sexual com truques e "mesinhas" a mistura para a perpetuação dos usos e costumes e, também, para a manifestação da virilidade masculina de ser homem, "macho". (****)
 
___________

Notas do editor:


2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Chermo, todo o homem (e toda a mulher) pertence a uma família, a um comunidade, a um clã, um tribo, uma etnia, uma nação, a um país... (Exclui "raça", porque não há "raças humanas", um pré-conceito que, infelizmente, está de novo a vir ao de cima nas nossas sociedades)...

Isto quer dizer: todo o homem (e mulher) tem raízes. E essas raízes são mais ou menos fortes, modelando muitos dos seus valores, princípios, atitudes, conhecimentos, comportamentos,individuais e de grupo...

Todos temos uma matriz sociocultural, muito mais forte que o "fenótipo" (que nos pode distinguir por particularidades físicas)... Daí não ser fácil um homem ou mulher conseguir romper com certas regras e normas que impõem, por exemplo, a exogamia (e, em última análise, a proibição do incesto)...

Só muito recentemente, em certas sociedades, é que o indivíduo, devido à automonia e à liberdade "conquistadas", conseguiu impôr-se ao grupo de pertença e de origem... Nessas sociedades, foi fundamental o triunfo do liberalismo e da democracia, revolucionando o conceito de Estado, de poder, de família, de direitos e deveres, etc.

A tua luta, casando com a mulher que querias que fosse a mãe dos teus filhos, e a tua companheira para a vida, é um belíssimo exemplo da luta, sempre dinâmica e desigual, do indivíduo contra o grupo, a tribo, a comunidade, a sociedade e, em última análise,o poder de Estado (que codifica, por exemplo, no código civil, o "direito de família)...

Obrigado pelo teu testemunho. Muitos portugueses, da geração dos pais e dos meus avós, também eram pressionados a "seguir a tradição"...

Mantenhas, para tim a tua "mulher grande", os teus filhos... Já tens netos ?...LG

Cherno Baldé disse...

Grande amigo Luís Graça,

Foi uma agradável surpresa rever um texto (comentário) de algum tempo atrás que foi como que um desabafo sobre a minha vida ou sobre o meu exercício de equilibrista ao desafiar usos e costumes milenários. Nem tudo correu bem, mas acho que o desafio foi ganho e devagar devagarinho estamos a descer (acho que estamos a descer) a última recta como acontece em todos os casamentos, quando a mulher começa a tomar ascendência na vida do lar e não só e o homem sabe que o seu reino já está no começo do fim. Apesar de tudo conseguimos vencer este desafio num contexto bastante difícil.

Não, ainda não tenho netos, os meus filhos, todos rapazes, ainda estão a estudar, alguns aqui no país e outros lá fora. O mais velho com 24 anos e o mais novo, que é teu xara, com 15 anos.

Não raras vezes, quando me encontro com um familiar ou colega que não via algum tempo, a primeira pergunta é sempre para saber se ainda vivia com aquela mulher Nalú de Cacine como se, por alguma razão qualquer o nosso casamento estava condenado a falhar.

Um grande abraço e sucessos ao nosso Escritor e grande contador de histórias que é o Alfero Jorge Cabral.

Cherno Baldé