segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Guiné 61/74 – P21570: (Ex)citações (379): Vidas (José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp)





1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas,

O tempo, cada vez mais curto, leva-nos a hilariantes momentos em que as nossas vidas cruzaram inconcebíveis circunstâncias onde, outrora, o foco da guerra se instalava num horizonte carregado de incertezas.

Hoje, com 70 anos feitos neste singularizado 23 novembro, revejo pequenas histórias de vida de um conflito armado na Guiné, sendo que essas curtas resenhas permanecerão nos nossos já calejados corações.

Pessoalmente, tenho dedicado largos momentos a transcrever pequenos textos que são, tão-somente, o cruzar de gerações de camaradas onde as vivências de cada um de nós coincidem, não obstante a idade que o Cartão de Cidadão agora nos indique.

Esses textos inserem-se na minha última obra – “Um Ranger na Guerra da Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74 Memórias de Gabu” – onde descrevo inesquecíveis instantes que por lá passámos.

O mundo é pequeno e as nossas recordações gigantescas


Vidas 
por José Saúde

Não obstante a velocidade estonteante que contempla um desgastar imutável de vidas que paulatinamente vão marcando gerações, eis-nos perante uma realidade que consome nacos de uma existência que marcará eternamente a nossa presença neste cosmos terrestre.

Assumindo a minha condição de exímio sexagenário, sou, de quando em vez, embalado, imaginariamente, ao colo da minha saudosa mãe por um sentimento nostálgico onde as luzes da ribalta transcende o hino das emoções e nos conduzem, quiçá inadvertidamente, a vidas sentidas dos tempos de tropa e da guerra.

Tempos em que nós, miúdos e de caras joviais, dávamos um pontapé nas estrelas, sendo que nesse exorcismo irreal deixávamos um sinal claro que o nosso futuro passava irremediavelmente pelo dia da chamada do futuro mancebo para engrossar as fileiras do exército português.

Porém, uma certeza não invadia as nossas almas: a guerra no Ultramar. Ou seja, um cenário gigantesco que ditava como encenação provável uma comissão militar em território de além-mar. Mas, existiam também nuances que acarretavam preocupações acrescidas a rapazes que viviam anos de uma efervescente juvenilidade. O futuro, sempre imensurável, sugeria um sonho que nos fazia sorrir. A guerra era coisa distante. Parecia.

Todavia, escondido no nosso ego lá permanecia uma faixa negra onde se lia: Segue em via rápida uma encomenda que transporta a tão conhecida frase “carne para canhão”!... Ainda assim, a utopia transmitia um similar de odores onde esperança falava mais alto. “Vou à guerra, mas regressarei um dia são e salvo ao meu rincão sagrado. Não quero medalhas, mas exijo apenas um simples reconhecimento pelos momentos de padecimento sofrido. Ponto final”.

E muitos regressaram isentos de malazengas contraídas nos campos de batalha. Outros, infelizmente, chegaram tendo à sua espera uma secção de militares do quartel mais próximo da sua residência que honrava o defunto com uma rajada de G3. Depois seguia-se o discurso que ornamentava o fúnebre momento, frisando o oficial o heroísmo do camarada agora já cadáver. Bolas, que púdica mensagem de voz!

A tropa apresentou-se, creio certamente, para todos nós como uma universidade da vida na qual recolhemos informações que nos levaria a efetivos doutores de uma licenciatura concluída num mar de aventuras e que coabitava com o desenrolar das nossas vidas. A tropa foi, e afirmo obstinadamente, uma inquestionável experiência que muito nos ensinou.

Lembro o dia 10 de outubro de 1972 quando dei entrada como mancebo no CISME, em Tavira. Depois veio Lamego, Operações Especiais/Ranger. O dia 4 de janeiro de 1973 traçou-me um novo destino. Abençoado pela Serra das Meadas, a bíblia dos futuros rangeres, tornei-me um exemplar militar e adquiri louros para uma especialidade que me fez crescer na sua plenitude. Seguiu-se a Guiné e Gabu recebeu-me com “pompa e circunstância”.

Recordo o dia que ousei desafiar calendas escondidas e obrigatoriamente parti para uma comissão militar na Guiné. Num outro lado África esperava-me e o solo guineense hospedou a minha chegada. Constatei de imediato que o bafo causado pela aquela terra vermelha me aconselhava cuidados atempados.

Cuidados que, posteriormente, disparariam em todas as direções. O dia-a-dia em Gabu evidenciava novas aventuras. Aventuras que coincidiam com patrulhamentos, proteções às colunas, quartel e pista de aviação, com visitas permanentes a tabancas, operações, saídas constantes para o adensado mato, enfim, um rol de procedimentos comuns imputados a um operacional em tempo de guerra.

Evoco outros momentos em que o clima de África contemplava as nossas vidas. O paludismo, que me visitou por três vezes, derrubou-me, mas logo me levantava e sempre pronto para levar a bom porto novas missões. Foi uma espécie de ataque de morteiro sem recuo onde a versão primária levou o debilitado combatente a exercitar a sua já usada condição de ranger.

E é neste permanente propagandear de vidas preenchidas em território guineense, que me ocorrem situações em que o facilitar permitia o desenvolvimento de momentos caóticos. Alguns fatídicos.

Jovens militares que acreditaram na sorte. Vidas que, inconscientemente, se perderam, tão-só pelo simples facto de não premeditavam o futuro imediato. Facilitavam. Depois vinha a desgraça.

Um abraço, camaradas,

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:

Vd. também o poste anterior deste autor: 

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