terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23898: Boas festas 2022/2023 (6): As Mães e os anos da guerra... Feliz Natal, queridos companheiros (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)


1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 30 de Novembro de 2022:


As Mães e os anos de 1964/6!

Já passaram mais de cinco décadas, quase seis, no entanto, nenhum de nós companheiros, pode esquecer a jornada de ter sido combatente na Guerra Colonial Portuguesa em África, na então província colonial da Guiné Portuguesa, cuja guerra, principalmente nesta região, foi denominada "o Vietname de Portugal”. Era uma guerra terreste de guerrilha mortífera.

E agora, quase a chegar à época de Natal, constantemente nos vem ao pensamento os amigos de infância e a família de então, que deixámos na Europa, onde na escola da vila o professor nos repetia constantemente a história dos reis e rainhas e os tais “descobrimentos”, onde o professor se levantava, tal qual um actor representando, fazia desenhos de caravelas no quadro negro, declamando frazes mais ou menos: “Portugal descobriu novos mundos, enfrentando tempestades e fúrias dos dragões de mares distantes, subjugando outros povos e outras civilizações ao Reino de Portugal e dos Algarves”.

E nós ficávamos excitados com estas palavras sem todavia compreender o que eram os “novos mundos”, os “dragões” ou “mares distantes”, e claro, encobrindo sempre tudo o que nos pudesse dar o conhecimento do que existia lá por esses “novos mundos” ou essas tais civilizações que eram subjugadas ao reino de Portugal e dos Algarves.

Em outras palavras, era mais ou menos como “colocar a pele de ovelha ao sistema colonialista em que se vivia, no maldito e feroz lobo que lá morava dentro”. E mais, constantemente nos diziam que a nação era a nossa mãe. Infelizmente, hoje compreendemos que era uma enorme e horrorosa mentira.

A nossa mãe era uma personagem linda, carinhosa e bondosa, (aliás todas as mães para nós filhos, são lindas, carinhosas e bondosas), e a nossa mãe ILDA, era uma sofredora, contando-nos muitas vezes que nunca tinha sido menina, pois nessa idade já era uma mulher de tranças feitas ao domingo de manhã antes da missa, de saia de borel cardado pelas mãos da sua mãe, nossa avó, braços cansados de trabalhar na lavoura e de rodilha na cabeça para aguentar o peso dos molhos de erva que carregava para alimentar o gado, trabalhando de sol a sol e esperando a sorte de alguém a levar para a vila, “servir para casa de gente de posses”, pois seria menos uma malga de caldo para encher e uns tostões que chegavam a casa no final de cada mês, para ajudar no sustento dos seus pais, nossos avós.
E quando mais tarde, já avó, em conversa com os vizinhos, quase chorando dizia:
- “Tive quatro filhos e só um é que foi à guerra, mas felizmente voltou vivo para casa”.

Companheiros, somos sobreviventes de uma guerra horrorosa, que anos depois se verificou que era injusta, que não desejamos, em nenhuma circunstância, se volte a repetir, mas não resistimos em mencionar algumas passagens de relatos de textos anteriores, onde falamos da mulher mãe que nesta época de Natal mais recordamos.

Portanto cá vai:
“Na aldeia havia somente uma mulher, magra, já de uma certa idade, nua da cintura para cima, com algumas argolas em volta do pescoço, servindo de enfeite, talvez. Estava sentada, ao lado de um balaio de arroz com casca, com as mãos ao lado da cara, falando aflita, numa linguagem incompreensível, e de vez em quando, tirava as mãos da cara, fazia gestos para a frente, ao mesmo tempo que balançava o corpo para a frente e para trás. Na sua frente, estavam duas crianças, também magras e nuas. Estas três pessoas, eram no momento, os habitantes da aldeia.
Os soldados africanos, chamados pelo alferes, para traduzirem as palavras da mulher, diziam:
- Ela se lastima, por os militares lhe terem morto os seus dois filhos, e diz para se irem embora, que aqui não há mais ninguém. Também diz que tem quatro filhas, que desapareceram um certo dia pela madrugada, e que as visitam de vez em quando, pois neste momento eram guerrilheiras, transportadoras de material de guerra”
.

E agora, outro relato tirado de outro texto:
“Em Portugal visitámos a família deste militar, por diversas vezes. Era de uma aldeia da Serra da Estrela, tinha uma irmã e um irmão, ambos casados. A mãe andava sempre vestida de preto e dizia:
- Ainda não fui, mas não tarda muito tempo. Sou viúva duas vezes, do meu Joaquim, que Deus lhe guarde a alma em descanso, e do meu António, que era a cara do pai, quando nasceu, e que foi dar o corpo às balas, e que morreu na guerra, lá na África. E mostrava sempre o farrapo do camuflado ensanguentado, que o Cifra lhe mandou, e a fotografia do António, que beijava e encostava ao coração”
.

Tenham um bom tempo neste mês de Natal, todos vós e vossas famílias, queridos companheiros e, já agora, que o ano que vem nos traga saúde e algum carinho, pelo menos da família.

Tony Borie, Dezembro de 2022.

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23889: Boas festas 2022/2023 (5): Mensagens dos nossos camaradas e amigos: José Firmino; Ernestino Caniço; José Carlos Mussá Biai e Luís Fonseca

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