quinta-feira, 11 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25733: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (3): "A morte da professora de Samba Culo ainda me pesa na consciência"...



"Um vaso de flores" (Imagem: Página do Facebook do A. Marques Lopes, 19 de abril de 2023): 

(...) "Reparou melhor no quadro à sua frente. Era de madeira pintada de preto e tinha desenhado a giz branco um vaso com uma flor, tudo muito naïf. Por baixo dele tinha escrito, também a giz branco, um vaso de flores. À sua frente, do sítio onde tinha disparado, estavam quatro carteiras escolares de madeira, muito rústicas e com bancos também de madeira perto de cada uma delas. Virou-se e viu que havia mais duas fileiras atrás também com quatro carteiras cada. Reparou, depois, que o seu guarda-costas, ao pé do quadro, folheava um livro." (...)



Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Geba > CART 1690 (1967/69) > O A. Marques Lopes em 1967, com duas bajudas da localidade .  

Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2023). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Nunca é demais relembrar aqui a morte trágica da professora do PAIGC que, tal como o  nosso saudoso amigo e camarada A. Marques Lopes (1944-2024),  então alf mil da CART 1690 (Geba, 1967/68) estava no sítio errado, e à hora errada, na barraca" de Samba Culo, no antigo regulado de Banjara, em 7 de julho de 1967, uma sexta-feira.  Foi morta por um rajada de G3, disparada pelo alf Lopes. Seria de etnia manjaca e cristã.

Foi um duelo de morte, coisa que era raro acontecer naquela guerra de guerrilha e contraguerrilha: os combatentes de um lado e do outro não tinham muitas ocasiões para se olharem olhos nos olhos. Como nos filmes do Faroeste,  o alferes foi mais rápido a puxar pelo gatilho. Fora treinado para matar. Mas só queria não morrer. A morte da professora marcou-o, para o resto da vida (*).

Trinta anos depois, em 2008, o A. Marques Lopes (já como cor inf ref, DFA) voltou lá, a Samba Culo, na margem esquerda do Rio Canjambari, no antigo regulado de Banjara, para fazer contas com os fantasmas do passado. (**)

E deixa-nos, em prosa poética (**), um texto que é revelador dos valores e princípios de um grande ser humano e de um militar português com sentido de honra e consciência moral.

Sobre este episódio da sua vida de combatente escreveu "ad nauseam" (no nosso blogue, no sue livro, na sua página do Facebook...). O fantasma da professora de Sama Culó tê-lo-á perseguido toda a vida. E isso ajuda a explicar  o seu gesto solidário, ajudando mais tarde a construir  a escola de Samba Culo:  fez-se sócio da ONGD "Ajuda Amiga" (****).

Há dois anos e 4 meses, ainda em vida,  em 19 de janerio de 2022, ele deixou esta mensagem pungente na sua página do Facebook:


(...) A morte da professora ainda me pesa na consciência 

Escrevi isto no meu livro “Cabra-cega”. Os nomes são fictícios, não os reais dos intervenientes. Mas há um que denuncio: o Aiveca é o alferes Lopes, (...)



Voltamos a transcrever este excerto que ele selecionou, do livro "Cabra Cega" (205, pp. 389/393), omitindo deliberadamente (?) o pormenor escabroso, patológico.  em que o soldado Cosme (nome fictício, que morrerá mais tarde em combate, em Sinchã Jobel)) "estava em cima da rapariga" (já cadáver...) "puxando-lhe a saia para cima e com a mão já nas cuecas" (pág. 393).  São 16 linhas que ele em 2022 censurou, considerando a cena indigna de um "tuga"...



A. Marques Lopes
(1944-2024).
Foto de LG (2015)
A morte da professora 
de Samba Culo ainda me pesa na consciência

por A. Marques Lopes


(...) Seguiram à beira da mata por uma faixa não alagada. Foram três horas e meia a ser massacrados pelo sol e pelos mosquitos, às vezes a enterrar-se quase até aos joelhos em poças de lama. Viu um ou outro soldado a sair da coluna para ir encher o cantil na água da margem mas não disse nada. Eles só queriam era beber, não se preocupavam e ele já não
 estava  para se chatear com isso. Já não sabia   que era pior, se uma doença ou aquilo  em que andavam metidos.

Pararam finalmente. O PCV, que volteara por ali desde o início e desaparecera algumas vezes, andava agora no ar novamente. O Lindolfo é que sabia, porque estava em contacto, mas Aiveca supunha que, quando desaparecia, era para se ir reabastecer. 

Estavam todos sentados e com as camisas do camuflado abertas. O Sousa Rato estava lixado dizendo que tinham sido muito mais de três quilómetros, tinham sido para aí uns seis ou mais. Aiveca desculpou-se, fora o capitão Lindolfo que lhe dissera que eram três. Alguém se aproximava vindo lado da companhia e reconheceu o alferes Rodrigo.

 
− É, pá, o Lindolfo diz que ficamos aqui um bocado a descansar. Só arrancamos quando o PCV ordenar. Agora é o gajo lá de cima que manda.

−  Lá em cima não se deve estar mal - comentou Aiveca.

Soergueu-se massajando as costas com a mão direita.

− E, olha
 continuou o Rodrigo  − quando estivermos em cima da base,  o Lindolfo diz para te avisar que vamos avançar em linha. Tu pela direita e nós pela esquerda.

Parou para ver se ele tinha entendido.

− Ok, chefe.

Bateu-lhe a pala, gozão, e esticou-se novamente. O Rodrigo não lhe ligou mais e foi-se embora.

Foi pouco descanso. Muito pouco tempo depois de o Rodrigo se ter afastado e de o PCV ter passado por cima uma vez, mas bastante por alto, depreendeu que não queria denunciar a presença da tropa ali. Notou, depois, que os soldados da companhia se estavam todos a levantar com as G3 na mão.

 Andor, pessoal!  
− disse para os seus.

Meteram pela mata atrás dos outros. Após vinte minutos tiveram de parar, os da frente tinham feito o mesmo. Já deviam ter andado um quilómetro mas parecia-lhe que ainda havia muita mata pela frente. Estava a criticar mentalmente o Guilhermino por também não saber calcular as distâncias quando vieram de longe, mas não muito, os sons de numerosa fuzilaria e rebentamentos.

−  É o capitão Guilhermino que está a levar  
− disse para o Belmiro, que estava com ele à cabeça.

Os da companhia retomaram a marcha, mas de forma mais acelerada. Deu indicação para fazerem o mesmo. Dez minutos andados e as árvores foram substituídas por arbustos, não muito altos mas que os tapavam. Os da companhia estavam parados e em linha. 
Eram três e meia da tarde. Fizeram igual. Os furriéis e o Belmiro estavam ao pé dele quando o Rodrigo lhe viera dar o recado, tinham ouvido as indicações. Começaram a andar. As G3, que tinham andado descansadas a tiracolo ou aos ombros como enxadas, iam agora nas mãos com ar ameaçador de sanha assassina. 

Após andarem uma trintena de metros lá estava a base, mesmo ali, quase a tocar-lhes. Do lado esquerdo, na direcção dos da companhia eram talvez umas trinta casas, algumas com telhados de zinco. Em frente dele uma barraca rectangular com paredes e cobertura de capim, estava bastante separada das casas. O Guilhermino continuava a levar. Era do outro lado, percebia-se bem agora.

Quando avançaram todos rapidamente, quase em corrida, Aiveca e os seus entraram de rompante na barraca. Os do Lindolfo, do outro lado, já tinham começado às rajadas. Viu logo que era uma escola. Uma rapariga que estava ao pé do quadro tirava uma kalashnikov que estava lá pendurada.

Levantou a mão esquerda ao alto para ninguém disparar.

− Tá quieta! Firma lá!  
− gritou-lhe.

Mas ela não. Com a arma já empunhada meteu o dedo no gatilho. Disparou instintivamente. Ela caiu para trás e as balas da kalash furaram o capim do tecto.

Ficou estático de olhos esbugalhados fitados nela. A cabeça escaldava-lhe e o coração parecia querer soltar-se. Os soldados puseram-se à volta dela a observar e a comentar. A sua rajada acertara-lhe na barriga e no peito. Era bonita e devia ter vinte e poucos anos. Alguns levantavam a cabeça para Aiveca mas, ao ver a cara que tinha, preferiam não dizer nada.

 
− Meu alferes, se não tivesse disparado,  ela matava-o − acabou por dizer o sargento Belmiro.

Os outros apoiaram-no. Acalmou um bocado. Reparou melhor no quadro à sua frente. Era de madeira pintada de preto e tinha desenhado a giz branco um vaso com uma flor, tudo muito naïf. Por baixo dele tinha escrito, também a giz branco, um vaso de flores. À sua frente, do sítio onde tinha disparado, estavam quatro carteiras escolares de madeira, muito rústicas e com bancos também de madeira perto de cada uma delas. Virou-se e viu que havia mais duas fileiras atrás também com quatro carteiras cada. Reparou, depois, que o seu guarda-costas, ao pé do quadro, folheava um livro.

 Deixa-me ver isso, Carmelita.

 Estão ali uma data deles por trás do quadro, meu alferes.

Tinha uma capa vermelha. Na metade superior e em letras grandes brancas dizia: "O Nosso Primeiro Livro de Leitura". Na outra metade tinha a reprodução a cores da fotografia de um grande ajuntamento com um cartaz: O PAIGC Vencerá. Folheou-o também. Eram as várias letras e ditongos do alfabeto com vários exemplos de palavras portuguesas. Havia também alguns textos sobre a luta deles.

− Meu alferes, venha ver o que está aqui.

Era o Martins ajoelhado a um canto ao pé de uma mala aberta.

−  Carmelita, guarda-me este livro no bolso das calças.

Foi ver o que tinha o Martins. Ficou pasmado assim que olhou. Era um casulo para a missa. Ajoelhou-se também e pôs-se a remexer no que estava na mala, cada vez mais pasmado. Estava lá tudo o que bem conhecia da liturgia da missa: o casulo, a estola, a alva e o cíngulo para a apertar. Aiveca estava completamente atónito. (...)



(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, itálicos, parênteses retos: LG)



Guiné > Região do Oio > Carta de Farim (1954) (Escala 1/50 mil) > Detalhe > Posição relativa de Samba Culo, na margem esquerda do Rio Canjambari, a sudoeste de Canjambari, afluente do rio Farim, e aonde havia, em 1967, uma "barraca" do PAIGC, com uma escola e uma professora.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)
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(**) Vd. poste de 8 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11215: Blogpoesia (327): In Memoriam: A professora de Samba Culo, morta em 7/7/1967, de Kalash na mão (A. Marques Lopes)

(***) Postes anteriores da série > 

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