1. Retomar (ou dar a conhecer) alguns dos seus escritos é também uma forma homenagear o A. Marques Lopes (1944-2024), que em vida foi cor inf DFA, na situação de reforma, alf mil at inf, da CART 1690 (Geba, 1967/1968) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968), membro da direção da delegação do Norte da Associação 25 de Abril (A25A) e, em termos históricos, o nosso quarto grão-tabanqueiro mais antigo, depois do fundador, Luís Graça, do Sousa de Castro e do Humberto Reis, tendo entrado para a nossa tertúlia em 14/5/2005)...
Falando dos seus escritos, temos para já a sua página no Facebook e o seu livro de memórias "Cabra Cega" (Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp., editado também no Brasil). Estamos a selecionar algumas das melhoras páginas que ele nos deixou. No nosso blogue, tem tem cerca de 280 referências.
"Cabra-Cega: do seminário para a guerra colonial" (Lisboa, Chiado Editora, 2015) é uma autobiografia, elaborada com recurso ao artifício literário do "alter ego": o livro foi escrito sob o pseudónimo João Gaspar Carrasqueira, que por sua vez conta a história do seu amigo e confidente António Aiveca...
Publicou, nos útimos dois anos, na sua página do Facebook, diversos excertos do "Cabra Cega", assumindo cada vez mais, de maneira explícita e consciente, que o personagem "António Aiveca" era ele próprio, António Marques Lopes.... bem como o psudónimo literário, João Gaspar Carrasqueira. De ascendência alentejana, o A. Marques Lopes nasceu em Lisboa, na Mouraria, em 1944. Vivia em Matosinhos, onde morreu muito recentemente.
Publicou, nos útimos dois anos, na sua página do Facebook, diversos excertos do "Cabra Cega", assumindo cada vez mais, de maneira explícita e consciente, que o personagem "António Aiveca" era ele próprio, António Marques Lopes.... bem como o psudónimo literário, João Gaspar Carrasqueira. De ascendência alentejana, o A. Marques Lopes nasceu em Lisboa, na Mouraria, em 1944. Vivia em Matosinhos, onde morreu muito recentemente.
Este excerto do seu livro de memórias, é retirado das pp. 165/169 e 187/178, seguindo a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook (aqui a narrativa era já feita na 1ª pessoa do singular). A cena inicial, a conversa entre os aspirantes Aiveca e Gonçalves (pp. 165/169) passa-se no bar de oficiais do RI 1 (Amadora).
No RI 1, Amadora, fazendo tempo... "Tinha que ir para a guerra, que remédio!"...
por A. Marques Lopes
Quando acabámos de almoçar fomos para o bar de oficiais. Pedimos cafés.
– Não queres um whisky? – perguntou-lhe o Gonçalves. (...)
– Chega-me um café.
Os outros dois enfiaram-se numa mesa a jogar poker de dados. Ele e o Gonçalves foram para umas cadeiras que estavam ao canto da sala.
– Então conta lá como é que te livraste daquela treta dos padres?
– Ora, fiz como tu. Um dia disse-lhes que me queria vir embora e vim. Mas, antes, andei mais de dois anos a magicar. Na altura em que estava na Filosofia já as minhas dúvidas tinham começado e avolumaram-se de tal modo que o director me mandou para o colégio do Porto, para pensar disse-me ele, vê lá. Tinha-lhe dito que não tolerava aquele ambiente, que havia lá uma cambada de hipócritas que batiam punhetas debaixo dos lençóis à noite, e que no dia seguinte pareciam anjinhos a rezar na igreja. Até lhe disse que também o fazia, não tive medo, mas ele, em vez de me dizer logo para me ir embora, ainda fez que me massacrasse durante um ano e meio no Porto.
– É, pá, mas então tinhas-lhe dito logo que querias sair. Eu não demorei tanto tempo. Foi cerca de um mês, só. Fui ter com ele, disse-lhe que não queria continuar e saí calmamente nesse mesmo dia. Fiquei livre, tirei o sétimo ano e fui depois para a Universidade.
– E não arranjaste um emprego?
– Não precisei. Os meus pais apoiaram-me. Até alugaram uma casa para mim em Lisboa. Onde ainda estou, aliás – disse como se fosse a coisa mais natural do mundo e levantou o indicador direito – ah, eu escrevi-te a dizer onde era, lembras-te?
– Lembro-me, sim. É na Rua Almirante Barroso, ali para os lados do Chile.
O Gonçalves levou o copo do whisky à boca e eu aproveitou para continuar. Queria dizer-lhe antes que ele falasse novamente. Sentiu o à-vontade dele como uma injustiça.
– Pois é, para ti foi fácil, estou a ver, mas para mim não. Tive de ir viver apertadamente numa casa pequena onde já moravam os meus pais e os meus irmãos. Além disso tive de ir trabalhar para os ajudar, porque eles não têm as possibilidades que os teus, pelos vistos, têm. Foram as perspectivas que eu tinha destas dificuldades que também tiveram influência nas minhas hesitações antes de tomar a decisão de me vir embora. E como é que tu saíste assim tão de repente e nem sequer tiveste de esperar que viesse a dispensa dos votos para assinar? Se calhar os teus pais foram-te buscar ou então tinhas dinheiro, sei lá. Mas eu não, tive de esperar até ao fim e que me pagassem o comboio para Lisboa.
Ele tinha pousado o copo e olhava-o seriamente. Interrompeu-o.
– Espera aí, Aivec, tem calma, deixa-me dizer também. É claro que eu tinha dinheiro, sempre tive dinheiro guardado, estava-me borrifando para aquela treta do voto de pobreza. E a dispensa dos votos era problema deles, que o resolvessem, por mim deixei-me da castidade e da obediência. E quanto ao resto – apontou-lhe novamente o indicador – não penses que eu não tenho consciência das desigualdades que há, não estou de acordo com isso. E, olha, para te provar, estive metido num movimento contra esta situação toda, e é por isso que estou aqui agora. Fiz o primeiro ano na universidade mas, quando tinha começado o segundo, fui preso durante uma acção de contestação. Mandaram-me logo para a tropa.
– Estás a ver? – Aiveca apontou-lhe também o dedo, propositadamente, e sorriu, já estava calmo. – Mais uma diferença. Tu ainda fizeste o primeiro ano, e vieste para a tropa por protestar. Se não te tivesses metido nisso tinhas acabado o curso, certamente, e só virias depois. Comigo não foi assim. Entrei na universidade em Outubro do ano passado mas em Janeiro deste ano já estava em Mafra. Ainda fui a uma repartição qualquer que há na Rua do Passadiço para pedir o adiamento, mas um gajo de lá perguntou-me em que Universidade eu andava. Quando lhe disse que estava em Letras, o palerma riu-se. Que não davam adiamento porque não queriam atiradores de caneta, só os de canhota na mão.
– É, sei bem. Interessa-lhes é médicos, para tratar dos feridos, cortar braços e pernas, passar certidões de óbito, ou engenheiros, para construir quartéis, abrigos subterrâneos e aldeias para os pretos. Eu andava em Direito, não sei se lhes interessavam os gajos dali, nem sei se me deixariam acabar o curso, é que, sabes?, só não vão para a guerra os filhos e familiares dos governantes ou dos seus amigos.
Baixou a voz e inclinou-se um pouco para mim.
– E tu, estás disposto a ir para a guerra?
Admirou-se com a pergunta, encolhou os ombros e respondeu-lhe.
– É, pá, o que é que hei-de fazer? É a vida, não há remédio.
– Não há remédio, o caraças. Tens de pensar – e abaixou ainda mais a voz – que nós, sobretudo, é que decidimos da nossa vida.
– 'Tá bem, mas há coisas que são inevitáveis, e esta é uma delas.
– Não é nada, pá, não é nada. Tu podes mudar. Até já mudaste uma vez, não é?
Calou-se quando reparou que os oficiais estavam a abandonar o bar. Levantou-se, o Aiveca também. Desceram até à parada.
– Bem, temos de ir embora ao trabalho. Depois vou para Lisboa, só durmo aqui quando estou de serviço. Não queres vir comigo?
– Não. Estou a pensar ir a casa só aos domingos, para ver os velhotes.
– Mas vem lá hoje, pá. O Serafim, aquele gajo que estava à minha frente na mesa durante o almoço, vai também. Anda lá, tenho uma ideia para ver contigo, agora não dá, e acho que te vais interessar.
– Não, não vou. Prefiro dormir aqui do que na casa apertada dos meus pais. Depois falamos nisso.
O Gonçalves pareceu um pouco desiludido. Parou, pôs a mão esquerda no ombro do Aiveca e estendeu-lhee a direita. Ele ficou espantado com o gesto mas estendeu-lhe também a mão, instintivamente.
– É pena, Aiveca. Adeus, se não nos virmos. Hás-de ter notícias minhas – e afastou-se apressadamente.
Aiveca ficou especado a vê-lo afastar-se. Estava completamente baralhado com o gesto e as palavras dele. Acabou por ir andando em direcção à CCS com um torvelinho de interrogações na cabeça. Aquela do aperto de mão não era normal num local onde todos se viam durante o dia inteiro, tanto mais que a saudação da praxe era bater a pala, mas isso não era entre eles, claro, porque eram da mesma patente. E o se não nos virmos, o adeus, será que já tinha sido mobilizado e ia formar companhia? Era capaz de ser isso, sim, mas podia ter-lhe dito quando estiveram a falar no bar…
Capa do livro "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo do nosso camarada A. Marques Lopes)(Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp. ISBN: 978-989-51-3510-3, Colecção: Bíos, Género: Biografia). |
(...) Na segunda-feira levantou-se cedo, era o hábito que ganhara, e já estava pronto quando foi o toque de alvorada. Vagueou calmamente pela parada, observando tudo o que estava à volta dela, lendo os letreiros que estavam nos vários edifícios indicando a que se destinava cada um. Era uma forma de se inteirar de tudo aquilo, aproveitava aquele tempo para isso, pensando ao mesmo tempo o que é que o capitão lhe destinaria para aquele dia. Vi um soldado que se aproximava.
– O meu aspirante é o aspirante Aiveca ?
– Sou. O que é que há?
– O nosso capitão Ferreira quer que vá ter com ele ao gabinete.
Porra que o homem madrugara. Mas ainda bem, ia saber o que fazer. Viu logo que estava com má cara.
– Aiveca, você sabe onde está o aspirante Gonçalves?
– Não sei, meu capitão, ainda não o vi hoje.
– Que merda! – estava mesmo lixado. – Ele hoje está de serviço à companhia e já devia cá estar!
Olhou depois para ele de modo perscrutador:
– Eu vi que vocês os dois estiveram muito tempo a falar lá ao canto no bar de oficiais. Ele disse-lhe que tinha algum problema?
– Não, meu capitão, não me falou de problema nenhum. Disse-me que depois do serviço ia para casa, como habitualmente…
– É, pá, tanto tempo e foi só disso que falaram?
Tocou-lhe uma campainha na cabeça e ficou alerta.
– Não foi só isso, meu capitão, claro. Fomos colegas na escola e estivemos a lembrar esses tempos.
Nem esteve para lhe dizer que a escola era o seminário. Não pareceu convencido, mas não insistiu.
– Bem, você vai ficar a substituir o aspirante Gonçalves. Daqui a pouco vai tocar para a formatura e eu vou estar lá para me apresentar a companhia.
Foi assim que entrou no vários serviços à CCS do RI 1. Formaturas, ver se os ranchos estavam bem, prevenções, etc.
O Gonçalves nunca mais apareceu e falou-se durante algum tempo no bar de oficiais, e a meia voz, que ele e o Serafim tinham desertado. Mais uma vez tomou uma atitude e decisão rápidas, pensou Aiveca. Deve ter ido para França, era para onde iam muitos, já sabia. Mas teve condições para isso, como quando saiu do seminário, os paizinhos ajudaram-no e vão continuar a ajudá-lo certamente. Mais uma diferença. Se ele, António Aiveca, quisesse fazer isso como é que podia? Só se fosse para os bidonvilles nos arredores de Paris viver miseravelmente como os milhares de imigrantes que lá estão. Continua a haver coisas que só alguns podem fazer. Tinha de ir para a guerra, que remédio. (...)
António Marques Lopes
Página do Facebook do A. Marques Lopes | 19 de janeiro de 2022, 22:00 e livro "Cabra Cega" (2015, pp. 165/169 e 176/178)
(Seleção, revisão / fixação de texto, título, negritos, itálicos, parênteses retos: LG)
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Nota do editor:
(*) Vd. poste anterior da série > 16 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25749: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (4): Depois de Mafra, o RI1, Amadora, como aspirante miliciano, à espera da mobilização para o ultramar
1 comentário:
O nosso camarada Marques Lopes continua a proporcionar-nos a leitura destes seus maravilhosos retratos da vida dentro dos seminários, das diferentes condições socioeconómicas da sociedade portuguesa e da guerra que ele descreve de um modo que bem daria um grande filme.
Obrigado , Marques Lopes, obrigado, Luís.
Um grande abraço
Carvalho de Mampatá
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