quarta-feira, 17 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25754: Historiografia da presença portuguesa em África (432): Crenças e costumes dos indígenas de Bissau, do século XVIII (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
Dá-se um pontapé e surge uma pepita de ouro. O Franciscano António Joaquim Dias é o investigador e historiador Dias Dinis, foi Vigário-Geral da Guiné e andou envolvido naquela grande polémica sobre Nuno Tristão, o primeiro navegador que chegara à Guiné tese contrariada por outros historiadores como Teixeira da Mota, Vitorino Magalhães Godinho, Fontoura da Costa e Duarte Leite, Nuno Tristão terá morrido algures no rio Gâmbia. O investigador encontrou um interessantíssimo documento, o segundo volume da Crónica da Província Franciscana de Nossa Senhora da Soledade, dela respigou os usos e costumes dos Papéis, bem interessante o que ele registou sobre a Virgem da Candelária, o apreço dos Papéis pelos portugueses e as cerimónias fúnebres dos reis da ilha de Bissau. Espero que um dia os Franciscanos que tanto estão a investigar sobre a sua presença na Guiné, e que nela hoje têm um papel preponderante e um impressionante trabalho desenvolvido, reeditem este belo trabalho de Frei Francisco Santiago, é repositório do maior interesse para o legado luso-guineense.

Um abraço do
Mário


Crenças e costumes dos indígenas de Bissau, do século XVIII

Mário Beja Santos

Na revista Portugal em África, revista da Cultura Missionária, 2.ª Série, ano II, n.º 9, maio/junho de 1945, e ano II, n.º 10, junho/agosto de 1945, encontra-se um artigo assinado pelo Padre António Joaquim Dias, Franciscano, ex-Vigário-Geral da Guiné (seguramente o investigador Dias Dinis, com diferentes trabalhos sobre a Guiné) intitulado Crenças e Costumes dos Indígenas na Ilha de Bissau no Século XVIII, segundo manuscrito inédito.

Escreve este padre Franciscano que os missionários Franciscanos portugueses tinham adquirido em 1953, numa biblioteca particular de Braga, o segundo volume da Crónica da Província Franciscana de Nossa Senhora da Soledade, autógrafo inédito do cronista Frei Francisco Santiago, também autor do primeiro volume da mesma obra, impresso em Lisboa, em 1697.

Àquela Província pertenceram, depois de 1663, o Convento de S. Francisco da Ribeira Grande, da ilha de Santiago de Cabo Verde, hoje arruinado, e os Hospícios de Cacheu, Bissau e Geba, na Guiné. Frei Santiago dedicou algumas páginas aos costumes e crenças dos indígenas. Bebeu-as nos relatórios escritos pelos missionários, na correspondência destes e nos relatos orais dos seus confrades que então por ali trabalharam. O que o investigador nos informa é que vai transcrever os dados relativos aos indígenas de Bissau, observando que, em muitos pontos, traduzem os costumes atuais dos Papéis, etnia predominante na ilha.

Apresenta assim os Papéis: quadra-lhes bem o nome, porque com facilidade se dobram, por serem de natural mais dóceis e brandos que os outros da sua cor. E aos portugueses têm particular atenção, preferindo-os a todas as outras nações da Europa, no respeito e no afeto, só aos portugueses denominam por brancos. E quanto às suas crenças: há um Deus, superior a todas as criaturas e essências, os Papéis não adoram ídolos, não creem na imortalidade da alma racional, e fazem sacrifícios nas chamadas “Chinas”, que são na forma de um chapéu de Sol, coberto de palha; há entre eles feiticeiros chamados Mandigas, etíopes negros. Mas são supersticiosos: entre as muitas e variadas superstições que têm, uma é guardarem em casa, pela melhor relíquia, sangue de qualquer rês ou ave que matam; outra é que chamam falar-lhe o seu defunto, isto é, vão consultar uma Baloba para lhe dizer o sucesso que qualquer negócio que intentem.

Frei Santiago fala depois na guerra e na alimentação dos Papéis: quando vão à guerra, vão com o espírito de furtar, chegam a uma terra de outros gentios, esperam escondidos que apareçam homens ou mulheres descuidados e trazem-nos para os vender; alimentam-se de fundo, milho ou arroz, peixe seco malcheiroso, óleo de palma, a tudo chamam Mafé, também comem caranguejos a que chamam cáqueres, as carnes só as comem nos chamados Choros, que as mais são para venderem aos brancos; as armas que levam para a guerra são traçados e zagaias; se acontece matarem algum ou alguns, têm o mais que diabólico costume, que é cortar cabeças e as partes pudendas, as cabeças as metem em troncos de árvores, os poilões, e as partes vergonhosas as assam ao fogo e depois de tudo bem torrado o pisam fazendo-o em pós, que todos bebem em vinho de palma.

Segue-se um olhar para a Justiça Papel: quando fere um ou outro, tanto paga o que deu como o que apanhou, ou seja, com razão ou sem ela; se há morte, paga o que matou um certo número de escravos ao rei, se é forro; e, se é escravo, paga o seu senhor, e sendo forro que não tenha com que pagar fica escravo do rei.

Temos agora as práticas religiosas: o que chamam Ronias são as adorações que fazem às Chinas; junto ao mar têm os gentios desta ilha uma China geral, debaixo de uma grande árvore aonde vão fazer a sua adoração em certos dias do ano; e não pode nenhum deles semear arroz, sem primeiro oferecer a esta China o seu arado e fazer uns tantos roubos com ele defronte dela.

É altura de descrever Bissau: tem esta ilha de Bissau 28 léguas de circunferência, pouco mais ou menos, é de clima o mais salutífero de toda aquela costa, assim pela pureza dos ares como pela frescura e bondade das águas; o número dos seus habitantes estima-se em 20 mil famílias que, comumente, são de natural mais dócil e brando que os outros da sua cor preta; além do rei principal, que se intitula de Bissau, teve a ilha mais outros sete reis inferiores que são os de Quixete, Cumeré, Safim, Tor, Biombo, Bijamita, e Antula e outros tantos Jagras (chefes de tabanca); porém, o cabeça-maior é o chamado o de Bissau, o qual, em algum tempo, governava sobre todos os outros; é esta ilha a mais vistosa e aprazível de toda aquela costa, e os habitantes dela negros bem parecidos, com dentes e beiços delgados; é de dotar que não herdam o reino os filhos de tal rei; mas, para o ser, vão buscar o filho da irmã do rei, porque, como este tenha muitas mulheres, há dúvidas se será o filho seu; mas o filho da irmã é certo ser parente dele; a este sobrinho do rei chamam Morgado do Rei, que é como entre nós Príncipe, sucessor do reino.

Frei Francisco de Santiago dá-nos depois uma descrição sobre o local e o cerimonial do enterro do régulo, segue-se uma observação quanto a Bissau e à sua defesa. A povoação dos cristãos nesta ilha fica junto ao porto dela, que é a parte do sul, perto da ponte de Leste. E tem hoje de 500 até 600 pessoas de Sacramento; já teve mais, e ainda a estivera se os brancos do reino e das ilhas não fugissem de viver ali, pelas muitas e grandes vexações e injúrias que lhes fazem o rei e gentios; para se defenderem deles, o rei D. Pedro II levantara ali fortaleza no ano de 1686, com artilharia e munições de guerra; e lhes pôs Cabo que a governasse, um filho da mesma terra, chamado Barnabé Lopes, homem poderoso e de respeito, a quem os gentios se sujeitavam; os que se seguiram não mereceram tal respeito e também a fortaleza caiu rapidamente em ruína e D. José mandou reedifica-la em 1753; o mesmo monarca enviou um corsário de guerra, Nossa Senhora da Estrela, com soldados e munições necessárias, houve depois combate, em que dos gentios morreram mais de 500 e dos nossos só 9 soldados, a seguir o gentio prometeu obediência ao reino de Portugal.

Interessante é o que nos escreve Frei Santiago sobre a imagem da Virgem da Candelária: imagem de muita devoção, não só os cristãos mas ainda os gentios; no tempo em que aquela igreja era coberta de palha – que hoje é de telha – costumavam os gentios, por devoção, levar dela umas palhinhas, para serem bem-sucedidos; na psicologia do guinéu, o Irã de Branco é mais poderoso que o Irã dele; o interesse e não a devoção o impele até aos pés da tusta imagem da Senhora da Candelária, conservada ainda na pequena e pobre igreja paroquial da cidade, dentro da fortaleza.

Guiné Portuguesa - Jovem de raça pepel
(Legenda original)
Guiné Portuguesa - Velho de raça pepel
(Legenda original)
Circumscripção de Mansôa - Uma estrada para o Enchalé
(Legenda original)
Buba - Ponte na estrada para o Xitoli
(Legenda original)
Bolama - Palácio do Govêrno e Repartições publicas
(Legenda original)
Mesquita em Bissau
(Legenda original)

Estas quatro últimas ilustrações são provenientes dos Anuário da Província da Guiné de 1925, por Armando Augusto Gonçalves de Morais e Castro

(Fotos editadas por CV)

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Nota do editor

Último post da série de 10 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25732: Historiografia da presença portuguesa em África (431): João Vicente Sant’Ana Barreto, e o estado da Saúde na Guiné, vai para um século (Mário Beja Santos)

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