quinta-feira, 18 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25757: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte III: Desobstruir uma ponte ao km 28 da estrada do Olossato


Foto nº 1 > "O José Carvalho é o 5º a contar da esquerda. Eu sou o 2º. "


Foto nº 2 > O José Carvalho é o 1º. do lado esquerdo, eu sou o 4º. a contar da direita... Em momento de descontração na messe de oficiais em Catió.

Guiné > Região de Tombali > Catió > BCAÇ 619 (1964/66) 


Fotos (e legendas): © João Sacôto (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


José Álvaro Carvalho ("Carvalhinho")
(em 1º plano,  à esquerda) e João Sacôto,
em 2º plano, à direita)
1. Mensagem de João Sacôto, ex-alf mil, CCÇ 617 / BCÇ 619 (Catió, 1964/66; cmdt da TAP reformado), com data de /2024, 18:50:

"Caro Luís, boa tarde. Eu e o artilheiro José Álvaro Carvalho (ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65), o “Carvalhinho”, vivemos de 64 a 65 em Catió. Ele era um ótimo fadista e fazia lembrar o velho fadista “Marceneiro”. Falei agora com outro alferes da minha CCAÇ 617 em Catió, o Gonçalves, que também se lembra e com saudade das horas passadas a ouvir o inesquecível “Carvalhinho”. Um forte braço para todos, em particular para o C.


José Álvaro Almeida de Carvalho, "Livro de C", Lisboa, Chiado Books, 2019, 707 pp. (Coleção, "Palavras Soltas"). Dedicatória a Luís Graça: "Caro amigo Luís, muito obrigado por se interessar pelo que escrevi. Esta é a primeira versão do Livro de C. Com um abraço, José Álvaro" (s/l, s/d, c. julho de 2024).



Capa do livro. Está disponível em papel e em ebook (por exemlo, na plataforma "on line" da FNAC)


Catió, 1964 > João Sacôto, o 1º à esquerda;
o "Carvalhinho", o último, à direita.


2. O José Álvaro Carvalho, 85 anos, natural de Reguengo Grande, Lourinhã, entrou recentemente para o nosso blogue, sentando-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 890 (*). 

Com 26 meses de tropa, o alf mil art Carvalho acabou por ser moblizado para o CTIG por volta da primavera de 1963, não sabe precisar a data. Foi render um alferes de uma companhia de intervenção, de infantaria, sediada em Bissau. Com o ataque  a Tite, na região de Quínara, em 23 de janeiro de 1963, o PAIGC tinha aberto mais uma frente, na "guerra do Ultramar", a seguir a Angola.

O nosso camarada deve ter cumprido mais uns 26 ou 27, no CTIG, entre o primeiro trimestre de 1963 e o início do segundo semestre de 1965. Passou por Bissau, Olossato, Catió e a ilha do Como, aqui já a comandar um Pel Art / BAC, obus 8.8 (a duas bocas de fogo), com que participou na Op Tridente (jan-mar 1964).

No CTIG era popularmente conhecido pelo seu nome artístico do fado, "Carvalhinho" (*) .  
Era também amigo do então alferes  'comando' Maurício Saraiva, que será depois visita da sua casa, em Lisboa.

De acordo com as as suas memórias de guerra, ao oitavo mês de Guiné, o Carvalho (ou "Carvalhinho") ainda estava no Olossato. E no excerto que passamos a reproduzir,   tnha acabado de fazer um golpe de mão ao K (tabanca junto ao rio Farim,a 2 km do  K3 / Saliquinhedim ( ao km 3 da estrada Farim-Mansabá, tabanca que será ocupada mais tarde, no último trimestre de 1965, pela  CCaç 1421).

Na versão, digital, que nos facultou, em formato pdf,  das suas memórias de guerra(ou melhor, ddo seu "alter ego", C) , os topónimos da Guiné aparecem só com as iniciais (como é o caso  de O, de Olossato). Não há nomes de militares.  Nem datas. (**)

Esclarecimentos  e informações  complementares têm sido obtidas através das  nossas conversas na Praia da Areia Branca (onde reside atualmente).

Pelas nossas contas (e apenas com base dos livros da CECA), essa companhia para a qual ele terá ido, inicialmente, em rendição individual,  pode ter sido a CCAÇ 273 (mo
bilizada pelo BII 17, Angra do Heroísmo): esteve no CTIG desde janeiro de 1962 e acabou a comissão em janeiro de 1964. (Nessa altura, a comissão na Guiné era de 24 meses.)  

Sabe-se que a CCAÇ 273 teve um pelotão destacado no Olossato, por períodos variáveis, em 1963. Era comandada pelo cap inf Jerónimo Roseiro Botelho Gaspar.

Mas voltemos às memórias do Olossato, destacamento que ele vai reforçar,  dois meses depois de estar em Bissau, a fazer segurança a Bissalanca (de 3 em 3 dias) e patrulhamentos nos arredores.  (**)

3. Do autor do "Livro de C" (Lisboa, Chiado Books, 2019, 710 pp.),  encontrei  esta autoapresentação:


(...) "Na juventude, comecei por escrever pequenos contos e alguns artigos para o jornal do colégio, pensando sempre, em mais tarde, dar continuidade a este projeto. Infelizmente, não foi possível.

Após um ano a trabalhar em várias atividades, fui chamado para o serviço militar, que cumpri, dois anos cá e outros dois em África. No regresso casei, e concluí que escrever não me permitiria sustentar a família, mais uma vez, esta tarefa foi adiada, até chegar à idade da reforma, quando finalmente comecei a fazê-lo.

Ganhei o vicio de ler com o meu pai, tendo sido muito influenciado pelos escritores que tive a ocasião de conhecer. Entre muitos, lembro-me dos livros do americano Mark Twain, depois dos de John dos Passos, também americano, mas de ascendência portuguesa, o que mais influenciou a minha forma de escrever, seguido por William Faulkner, também Norte Americano e outros com a mesma origem. Seguiram-se os nacionais, a começar por Gil Vicente, e os brasileiros, principalmente Jorge Amado. Quanto aos russos, Dostoievky que li em tenra idade (Crime e Castigo), impressionou-me, fortemente, até hoje." (...)
 

O "Livro de C", classificado pela editora como "não-ficção", é um género difícil de arrumar nas prateleiras das nossas bibliotecas. É um misto de ficção histórica com material memorialístico (guerra na Guiné, aventuras em Lisboa, Angola e Ártico): "
Meu pai sempre me chamou por C. Sendo esse o nome que dei ao livro" (pág. 5).

Na introdução (pág. 5), o autor esclarece: 

"Este livro é  um conjunto de narrativas, desfasadas entre si no tempo e no espaço, reunindo uma pequena  parte da história da civilização, reflexões, projetos, aventuras, relatos históricos, ficções, memórias - minhas e do meu pai - e marcadores constituídos por fados que o meu pai cantou ao longo da vida, porque tinha esse divertimento como passatempo".

 Em 700 e tal páginas, há, na 1ª versão (2019), 4 personagens (pág.    11): 

(i) Menés, "o primeiro faraó do Egipto há 5000 anos";
(ii) C, "aventureiro dos Séc. XX/XXI com grande admiração pelo pai já falecido";
(iii) Holandesa, "rapariga bonita e robusta e obrigada a prostituir-se, no sul da Europa, mais tarde companheira de C";
(iv) Pai de C: "pertenceu à geração colonial. Gostava de escrever. Escreveu páginas e páginas que deixou ao filho".

Em boa verdade, o "pai de C" é um "alter ego" do autor... As memórias de guerra, na Guiné, são atribuídas ao "pai de C" e não ao "C"...

O livro terá começado a ser escrito, ainda em meados dos anos 60, quando  o José Álvaro Carvalho regressou do CTIG e ainda tinha memórias frescas da guerra.  Na última versão, manuscrita, inédita, em 2 volumes, que eu possuo, por cortesia do autor, há agora apenas 3  personagens, Menés, C e a rapariga ("jovem nórdica bonita que vagueou alguns anos pelo Sul da Europa, até se vir fixar em Portugal, mais tarde companheira de C"), sendo o C definido como  um "aventureiro dos Séc. XX/XXI com grande admiração pelo pai já falecido"...


Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65)


Parte III: Desobstruir a ponte ao km 28 da estrada do Olossato  


Entrou no seu compartimento formado por uma estrutura rudimentar de paus, revestida com esteiras indígenas. Sentado na cama começou a escrever o relatório semanal.

"Há 3 dias sofremos uma flagelação, no seguimento da qual foi efetuado um reconhecimento à volta da povoação. Encontraram-se rastos de sangue.

O informador B comunicou que continuam a passar grandes quantidades de abastecimentos e homens em K 
 [?nas margens do rio C [acheu]

Apesar das ordens recebidas para não nos afastarmos da povoação mais do que o indispensável para não por em risco a sua segurança, porque julgo que uma secção do destacamento a consegue defender durante algumas horas, decidi atacar K. , como acção de flagelação ao inimigo, semelhante a algumas que já temos efectuado, ainda que mais perto.

Partimos às 0 horas da madrugada do dia... com 3 viaturas pesadas e 1 ligeira. Além do equipamento habitual. levamos 1 metralhadora e 1 lança roquetes. Às 4 horas encontrámos a estrada principal que liga M
[Mansabáa K. Deixámos os carros escondidos e avançámos a pé.

O ataque foi iniciado por volta das 6 horas, tendo terminado 15 minutos depois. Foram confirmadas 4 baixas inimigas e recolhidas as respectivas armas.

Destruímos 10 canoas, 2 barcos de borracha e 1 depósito com munições e abastecimentos.

Chegámos ao aquartelamento por volta das 11 horas do mesmo dia."


Entrou na única loja que existia na povoação.

 Boa tarde,  senhor alferes.

 Boa tarde.

 O que é o lanche?

 Ostras.

O homem seguiu para as traseiras da loja, seguido pelo alferes. No quintal uma mulher negra abria ostras nas brasas dum fogareiro a carvão.

No meio do quintal, à sombra duma velha árvore, estava posta a mesa com 2 bancos, a toalha, dois pratos e duas tigelas de sumo de limão com piri-piri.

A mulher cumprimentou o alferes, retirou as últimas ostras do lume para uma travessa que colocou na mesa e retirou-se.

Sentaram-se os dois e começaram a comer.

 O chefe de D 
? confirmou hoje que o agrupamento inimigo destinado a esta zona estaciona junto à aldeia que fica em frente à sua, na margem Sul do pântano que as separa, a cerca de 8 kms. e que os habitantes desta, os apoiam abertamente fornecendo-lhes arroz e vindo aqui comprar-lhes mantimentos como fósforos, sal, lanternas eléctricas, tabaco, etc. Disse ainda que os chefes desse acampamento, costumam frequentá-la principalmente nos dias de festa e que cada um tem uma rapariga com quem dorme quando lá vai.

 As ostras estão muito boas.

− Nem sempre se arranjam assim.

Depois do lanche, a caminhar na estrada para o aquartelamento, pensava que devia lutar de novo para criar uma milícia de defesa civil armada, talvez com base na que já existia embora desarmada. Fora organizada pelo velho poliíia africano e 3 subalternos a quem em tempo de paz estava entregue o policiamento da região.

Esta organização de polícia estava debaixo do seu comando e passou a encarregar-se de vigiar a povoação mantendo-a rodeada de dia e de noite de elementos da sua confiança, que se revezavam e tinham por missão informar o destacamento da ocorrência de qualquer infiltração inimiga na aldeia e fugir em seguida.

Utilizavam uma senha que era mudada com frequência para dar o alerta.

Já tinha tentado armar estes homens e dar-lhes mais alguma recompensa,  além da habitual, que , como a dos informadores, consistia no pagamento de abastecimentos na loja, até montantes que combinava com o gerente.

O pelotão era rico. Sobrava-lhe dinheiro por não haver géneros frescos para comprar, principalmente carne, e a dotação ser generosa. Valia-lhe isso, abandonado e esquecido nos confins do território da guerrilha.

Um acampamento inimigo com oito grupos de 10 homens armados a 7 kms de distância, era preocupante.

Completou o relatório semanal com as informações que recebera do gerente da loja e disse ao soldado operador de transmissões:

 Envie este relatório ao comando da companhia.

Durante a noite, a chuva continuou a cair apesar do inicio da época seca. Os sapos coaxavam em sinal de trégua. Os pássaros noturnos gritavam no mato próximo.

***

Uma coluna militar motorizada, entrou na aldeia e parou no aquartelamento. Chamaram-no da porta. Veio ainda espantado pela visita. A primeira desde que ali estava.

Da primeira viatura saiu um alferes que conhecia e convidou para tomar uma bebida. Conversaram sobre o que se passava na zona,  de copo na mão. O pelotão de passagem estava instalado na povoação a norte do rio C
 [acheu p
ara onde o seu se dirigia quando foi desviado [Bigene  .

O Alferes disse-lhe:

 Quem é um fulano às direitas é o Oficial da Marinha comandante da lancha que patrulha o rio
C[acheu],

Sem me conhecer de lado nenhum, há dias atracou a embarcação no cais de B
 [igene], mandou-me chamar e ofereceu-me um dos melhores jantares que já comi.!

Não disse nada mas pensou:

− Este jantar era meu!

Despediram-se e o pelotão partiu.

Alguns dias mais tarde. Chovia. Deus resolvera inundar a terra. O céu, cinzento, baixo, estava ao alcance da mão. Na floresta próxima não se sentia qualquer sinal de vida. Uma coluna militar de cinco viaturas ligeiras, entrou no aquartelamento. Vinha da sede do batalhão. O alferes que a comandava coberto por uma capa impermeável, saiu da primeira viatura e entrou no celeiro de amendoim que servia de aquartelamento. Os soldados seguiram-lhe o exemplo e entraram na divisória que servia de refeitório com os habituais ruídos de satisfação de quando se encontra um conterrâneo em ambiente remoto e longínquo.

Cumprimentaram-se.

O Alferes disse:

 Trago ordens do novo comandante do batalhão 
 [?para destruirmos o acampamento inimigo de F ?]. que pertence à tua zona.

Respondeu :

 − Quer brilhar e quem se fode somos nós. O acampamento de F
 ?]  tem 8 grupos de 10 homens bem armados e não muito longe há outro acampamento semelhante que facilmente pode ajudar. Os nossos dois pelotões juntos não chegam a perfazer 40 homens. Não podemos beneficiar da surpresa, porque estes acampamentos são bem disfarçados na floresta densa. Com a excepção de um,  todos os trilhos são falsos. Mesmo os melhores guias têm dificuldade em orientar-se. Tudo isto já foi descrito por mim nos relatórios que tenho vindo a enviar regularmente, para o comando da companhia, mas isto é uma merda de guerra.

Fez-se noite e continuava a chover. Passado algum tempo disse:

− Penso que o comando do Batalhão já podia brilhar se lhe entregássemos um ou dois prisioneiros importantes.

Não sei. O comandante chegou há dias, traz muito prestígio e está cheio de gás para ganhar a guerra.

Ainda chovia. Decidiu ir pela primeira vez à aldeia onde o chefe e os dois filhos eram os seus melhores informadores. Era arriscado, mas não podia contactá-los doutra forma. A aldeia estava muito perto do acampamento inimigo, que o comando do Batalhão mandava atacar e duma outra povoação na qual este acampamento se apoiava e podia ser considerada também inimiga.

Aquela aldeia era terra de ninguém onde o inimigo já fizera varias sessões de mentalização embora a população lhe continuasse a ser hostil, apesar de desarmada e indefesa. Era uma aldeia pequena e de pouca importância como tantas outras, á qual não era possível garantir segurança e o único amparo que dava era a oferta de abastecimentos pagos na loja da povoação e também remédios fornecidos na mesma ocasião.

Tentou criar uma milícia indígena armada, e, no caso desta aldeia, executar uma vedação de arame farpado a toda a sua volta, e trincheiras nos pontos fundamentais, mas a cavalgadura do capitão que comandava a defesa civil respondera-lhe:

− Isso de armas para indígenas é muito complicado.

Viria a ser mais tarde incendiada num acto de retaliação da guerrilha e a população obrigada a refugiar-se numa pequena cidade ao Norte. Assim se foram entregando as populações a um destino duvidoso.

À chegada, deixou o carro com o motorista ainda longe e seguiu com outro soldado até á povoação na direcção do terreiro central onde entrou. Debaixo dum coberto de colmo sustentado por troncos de madeira, à volta duma fogueira, embrulhados em panos, estavam vários homens entre os quais conheceu o chefe e os dois filhos. Com a habitual fleuma que os caracterizava, não mostraram qualquer espanto pela sua presença como se já o esperassem há muito.

Entrou e disse ao Chefe:

 Preciso de saber se está hoje alguém importante a dormir em T
 [?] .

Ao que este respondeu no seu crioulo arrastado:

− Há vários dias que dormem lá dois comandantes que estão de visita à zona. Já estiveram aqui com uma grande conversa acerca da guerrilha.

Agradeceu e foi-se embora como chegara.

Faltavam duas horas para o romper do dia. Os dois pelotões saíram com todos os carros do aquartelamento. Passados dois kms as viaturas reduziram a marcha, o pessoal saltou em andamento e embrenhou-se no mato. Os carros andaram mais um km e estacionaram. Era aí o ponto de encontro.

Caminhavam lentamente, sem ruído, em fila indiana no estreio trilho do mato cerrado. por onde o guia os conduzia. Chegaram próximo da povoação de B 
 [ Binta ?] que se situava no cimo duma pequena colina. Dispersaram-se e iniciaram o cerco. Não havia sentinelas. Foi montada uma emboscada na direcção do acampamento que a povoação apoiava.

Surgiam os primeiros sinais de claridade quando foi informado pelo rádio de que estava tudo a postos. Confirmou com o outro alferes e deu a primeira rajada de tiros para o ar.

Notou-se alguma confusão de movimentos rápidos dentro da aldeia, ruídos confusos, desordenados, cães que ladravam aflitos, vozes, gritos, e dois homens armados saíram na direcção do acampamento da guerrilha. Foram apanhados na emboscada e aprisionados.


***

Trovejava. A luz intensa dos relâmpagos iluminava tudo de branco. Pouco depois o som espantoso da fúria dos elementos fazia-se ouvir. Anoitecera há pouco. Quase por milagre a rádio funcionava e estava a transmitir uma mensagem codificada. Vinha do comando do batalhão e ordenava-lhe que fosse desobstruir uma ponte ao Km 28 da estrada de O
 [lossato] onde por reconhecimento aéreo fora referenciada uma grande quantidade de arvores derrubadas.

Esta estrada, que atravessava varias zonas pantanosas, e de muitas linhas de água, tinha todas as pontes e pontões principais nesta situação desde que a guerrilha entrara em actividade na região. Era a espinha dorsal dum território que o inimigo já considerava como seu, e defendia com unhas e dentes. A ponte referida estava muito próximo já referido acampamento inimigo com oito grupos de 10 homens.

Não havia qualquer utilidade naquela operação de elevado risco para a vida de vários militares sem qualquer beneficio aparente.

Pensou logo que aquela ordem era o resultado da inexperiência do piloto aviador responsável pelo reconhecimento e do Comandante de Batalhão que chegara havia dias e queria brilhar.

Não formava grande opinião acerca de alguns oficiais do quadro permanente que - salvo algumas excepções - se comportavam de forma desmotivada, quando não pareciam morrer de medo quando se punha a hipótese de saírem dos aquartelamentos em operações, ou mantinham um comportamento ilógico, teatral, que conduzia geralmente a erros graves.

Parecia que eram sempre conduzidos por más informações ou informações mal digeridas, como naquele caso que reunia as duas situações.

Ainda não amanhecera. A manhã devia tardar, porque o céu se encontrava ao alcance da mão. As nuvens negras e apressadas roçavam o telhado das casas e a copa das arvores da floresta reduzindo-lhe o ruído nocturno.

Era madrugada mas já o calor húmido entrava nos ossos. O pelotão depois dos últimos preparativos para cumprir a missão de que fora incumbido formou com os dois guias junto das viaturas e aguardava a sua vinda.

Chegou e ao mesmo tempo que caminhava à frente dos homens, disse:

 − Como já sabem todos vamos desobstruir a ponte ao Km 28 da estrada de O
 [lossato]. Seguimos dentro do possível com as viaturas a corta mato - ainda não há minas nas estradas mas não deve faltar muito -. Dentro de duas horas amanhece. A ponte fica a sete quilómetros daqui. Devemos lá chegar ao romper da manhã. Como de costume, sempre que os carros pararem por qualquer razão todos se abrigam rapidamente na floresta e montam a segurança de acordo com as instruções do respectivo Furriel. Em caso de contacto com o inimigo não há tiros desordenados. Só se abre fogo à minha ordem ou do respectivo Furriel. Por cada tiro desordenado tem que aparecer um inimigo ferido ou morto.

Depois de desobstruirmos a ponte, se estiver destruída como julgo, tentamos passar a linha de água a vau, com a ajuda dos guinchos das viaturas, para não regressarmos pelo mesmo caminho. Neste caso vamos ter que andar 40 Kms. com pequenas linhas de água que conseguimos atravessar, para voltar aqui . Penso que o inimigo ao tomar conhecimento de onde estamos, montará uma emboscada no caminho do regresso por parecer improvável passarmos o rio a vau com as viaturas.

No sentido Sul, o sentido do nosso caminho, esta é a ponte mais importante da estrada de O
 [lossato]. o resto para sul, são pequenos pontões que julgo não estarem obstruídos e se estiverem, deve ser possível atravessá-los facilmente. Podemos partir. Boa sorte.

Depois de cada um ter subido para o seu lugar, as viaturas iniciaram a marcha lentamente na direcção do Nascente. Ia na da frente ordenando ao motorista que seguisse pelos trilhos precários que os guias lhe iam indicando. Durante duas horas, lutaram com o calor, os mosquitos, procurando sentir os mais leves indícios de contacto com o inimigo.

Perto da ponte ordenou que o pessoal se apeasse e avançasse disperso e que os carros saíssem da estrada e avançassem a corta-mato. Tinha medo das minas anti-pessoal e outras armadilhas. Já tinham aparecido algumas mais a Sul . [A prime
ira mina A/C, IN, desta guerra terá sido acionada pelas NT na estrada São João - Fulacunda, na região de Quínara (LG)].

Quando finalmente chegaram, constatou que fora destruída com explosivos e obstruída nos dois sentidos com troncos derrubados. Parte do, pessoal montou a segurança, emboscado a alguma distancia em locais de provável acesso. Tudo era feito com precaução e o menor ruído possível. O restante pessoal removeu com os guinchos dos carros os grandes troncos que obstruíam a estrada na margem Norte. Quanto à estrutura da Ponte, destruída com explosivos, não havia meios nem tempo para a reparar .

Num local a Nascente da Ponte, onde a linha de água alargava e a profundidade parecia menor, atravessou a pé para ver a altura da agua e a consistência do terreno. Enterrou-se até à cintura, mas conseguiu passar parecendo-lhe possível que aí a coluna atravessasse a vau para a margem Sul. A profundidade da corrente era pequena e a zona de terreno lamacento até se chegar à água ou dela sair também não era muito profunda nem extensa.

Escolheu na margem Sul uma arvore sólida e dimensionada. Mandou envolvê-la num cabo de aço com 12mm de espessura e argolas nas extremidades a ligar com manilha. Mandou puxar a corda ligada ao cabo do guincho do Unimog ( a viatura mais ligeira da coluna) que se começou a desenrolar até chegar à arvore que envolveu e o gancho da extremidade deste cabo engatar na manilha que o prendeu. Em seguida mandou a viatura avançar com todas as reduções e tracções metidas. Ao mesmo tempo que o guincho se enrolava a viatura inclinou-se na direcção da água com as rodas a patinar na lama, lentamente até chegar à outra margem.

Com a ajuda do guincho deste carro e dos guinchos próprios, os camions GMC foram passando com maior ou menor dificuldade, sendo depois afastados os troncos que obstruíam a estrada nesta margem.

Meteram-se então a caminho para sul para atingir o aquartelamento daí a 40 Kms.

Estava o Sol a pôr-se quando chegaram. Aguardavam-no o cabo cipaio da policia indígena e um guia, que o informaram de que a cerca de 3 Km, vários grupos de guerrilheiros num total de algumas dezenas de homens, tinham montado uma emboscada no caminho de regresso, e ainda aí se encontravam a aguardar a passagem do pelotão.

Depois de lhe identificarem o local da emboscada numa zona baixa, pantanosa que a estrada atravessava, ordenou ao furriel responsável pelo paiol de munições que lhe fornecesse o morteiro pequeno e seis munições e depois a uma secção armada somente de granadas de mão que o acompanhasse numa viatura. Andaram algum tempo na estrada, esconderam o carro no mato e a pé, cada homem com uma munição do morteiro, um furriel com a base , o guia com o tubo e ele com o aparelho de pontaria, pediu ao guia que os levasse a uma zona sobrelevada donde se avistasse toda a área da emboscada, e, aí chegados, o, morteiro foi rapidamente armado e disparadas de forma dispersa todas as granadas para o local onde lhe parecia mais provável que estivesse a maior concentração de homens.

Ouviram-se na zona disparos em todas as direcções por não saberem donde lhes vinha aquela desgraça. O morteiro foi de novo desarmado e regressaram rapidamente ao aquartelamento, enquanto tiros e rajadas de metralhadora sem sentido se continuavam a ouvir na zona da emboscada. (...)

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, parênteses retos: LG)
________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 26 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25684: Tabanca Grande (560): José Álvaro Almeida de Carvalho, ex-alf mil art, Pel Art / BAC, obus 8.8 m/943 (1963/65) , adido 14 meses ao BCAÇ 619 (Catió, 1964/66): senta-se no lugar nº 890, à sombra do nosso poilão

3 comentários:

Valdemar Silva disse...

Em 1963, no ano do início da guerra na Guiné e só terminou em 1974 com a Revolução do 25 de Abril.

Na Foto nº. 2 até apetece perguntar qual era a marca do tinto da garrafa no centro da mesa.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Quem passou pelo Olossato ( ou conheceu a região do Oio) talvez nos possa ajudar a identificar os topónimos começados pelas iniciais B, D e T... Sessenta anos depois o autor, com 85 anos de idade, já não se lembra... LG

Anónimo disse...


Paulo Cordeiro Salgado
sexta, 19/07/2024, 17:12

Et voilà, com as senhoras...do MNF
Muito bem.

Nós, a CCAV sete anos depois, era mato, descanso, mato, apoio no aquartelamento, mato, descanso...o correio que nos trazia o encanto do amor em cartas vasado.

Forte abraço a camaradas "velhinhos".

Paulo Salgado