quinta-feira, 18 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25756: De(Caras) (212): João Crisóstomo e António Rodrigues, dois antigos mordomos portugueses em Nova Iorque, que vêm, em 2004, a Cabanas de Viriato, dar início à história da recuperação da Casa do Passal, hoje museu Aristides de Sousa Mendes






Carregal do Sal > Cabanas de Viriato > Casa do Passal > 2004 > António Rodrigues e João Crisóstomo "pondo mãos à obra"...

Fotos do jornal  "Defesa da Beira", 1/10/2004. 
Imagens digitalizadas e enviadas pelo João Crisóstomo (2015) (*) e reeditadas pelo Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)



Título da reportagtem feita pelo jornal "Defesa da Beira", 1/10/2004



S/l> S/d (c. 1996-2006) > O então presidente da República Jorge Sampaio, tendo à sua esquerda o João Crisóstomo e à sua direita o António Rodrigues. Foto do arquivo de João Crisóstomo (2015) (*)


Lisboa > Centro Cultural Franciscano > Largo da Luz, nº 11, Carnide >  Dia da Consciência, 17 de junho de 2015, celebrado em Lisboa: sessão de homenagem a Artistides de Sousa Mendes, por ocasião dos 75 anos da sua decisão histórica  (1940-2015)

Na foto, da esquerda para a direita,  a Alice Carneiro, o João Crisóstomo, uma amiga do João (que vive em Leiria), o  António Rodrigues (que vive na Batalha, e é também  ativista de causas sociais, foi ele com o João quem salvou da ruina completa a Casa do Passal, em 2004 (*); emigrou para os EUA em 1967, depois de ter feito o serviço militar na Base de Monte Real, como voluntário na FAP), a Mariana Abrantes de Sousa (outra grande ativista da causa de Aristides de Sousa Mendes, igualmente da diáspora lusitana nos EUA) e a esposa do António Rodrigues

Foto (e legenda): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Em 2004 o João Crisóstomo  "queria que o nosso herói Aristides [de Sousa Mendes] fizesse parte da Galeria dos Heróis no prestigioso Museum of Jewish Heritage em Nova Iorque", na sequência da consagração, a nível nacional e internacional,  do dia 17 de Junho como o "Dia da Consciência".

Conseguiu, entretanto, convencer o director do supracitado Museu  a aceitar a ideia, mas ficou condicionada a que ele conseguisse trazer para Nova Iorque,  para ficar em exposição por um ou dois anos, o livro do "Registo de Bordéus" e o carimbo com que Aristides autenticava os passaportes. 

Foi,  na sequência da sua busca do famoso carimbo,  que ele acabou por conhecer, há 20 anos atrás, a Casa do Passal, que hoje é monumento nacional (classificado em 2005) mas  então em estado de abandomo e ruina.  Depois de restaurada e requalificada, a Casa do Passal vai amanhã ser inaugarada  como Museu Aristides de Sousa Mendes (**).

Aproveitamos a efeméride para relembrar aqui um antigo poste que publicámos, em 2015, com o início da história da recuperação do imóvel, que vem do séc. XIX. E  também para fazer uma pequena homenagem a estes "dois portugueses das Américas" que têm a sua quota-parte de mérito na defesa da causa de Aristides de Sousa Mendes e na salvaguarda da sua memória, (a par naturalmente  de muitos outros, aqui e lá fora). O João Crisóstomo é membro da nossa Tabanca Grande desde 2010. O António Rodrigues, infelizmente, está internado num lar, na sua terra natal, Batalha. (***)

Do poste em questão (P14419) (*), selecionamos o essencial:

"Consegui que o MNE [Ministério dos Negócios Estrangeiros] aceitasse deixar vir o livro, mas faltava o carimbo (que no fim teve de ser substituído pela caneta de Aristides, já que não foi possível encontrar o carimbo). Mas na altura nós pensávamos que o carimbo existia em qualquer parte em Portugal. Aproveitei as minhas férias e, com o António Rodrigues, que sempre tinha sido o meu braço direito em todas as minhas campanhas e que tinha regressado de vez a Portugal, resolvemos procurá-lo."

"Pedi o auxílio de Mariana Abrantes, de Luís Fidalgo e de António Moncada, neto do César (irmão gémeo de Aristides) em cuja casa suspeitávamos se encontrava esse carimbo. E lá andámos umas duas ou três horas, sem encontrarmos o carimbo."

"No fim resolvemos 'visitar' a casa de Aristides, que fica bem perto. Aí o António Moncada disse-nos que não, pois a casa não estava em condições de ser visitada por ninguém, pelo perigo que isso representava: havia um grande buraco no teto que havia caído (com uns quatro a cinco metros de diâmetro), e os 'beams' (barrotes, é assim que se chamam, não é?), alguns deles ao caírem, fizeram buraco enorme em todos os andares até ao chão,  e outros barrotes, de todos os tamanhos, alguns enormes, estavam dependurados, numa imagem dantesca de ameaça e perigo.

Mas ele e o António Rodrigues, que tínham vindo de tão longe, queríam ver  a casa de que tanto tínham ouvido falarm de modo que insistimos com a direção da Fundação Aristides de Susa Mendes, criada em 2000 e com sede em Cabanas de Viraito, representada na altura  pessoas pelo António Moncada e o Luis Fidalgo. 

"Finalmente acederam ao nosso pedido, mas que tudo seria por nossa conta e risco. Assim aceitámos. E lá entrámos, pés de mansinho, um após outro, olhando para o alto e para os lados com todo o cuidado. Verificámos que o enorme buraco estava situado mais ou menos no meio da casa, logo à entrada, mas com cuidado havia maneira de ver o resto da casa sem grande perigo.

"Para nosso espanto apercebemo-nos que a casa parecia nunca ter sido sujeita a qualquer cuidado ou limpeza. E por respeito ao nosso herói nós resolvemos que a casa teria de ser limpa imediatamente e não sairíamos de Cabanas de Viriato sem que a casa de Aristides recebesse pelo menos uma limpeza geral.


"Mais: começámos a pensar se não seria possível contratar um empreiteiro para consertar o telhado. Pensamos nós: se este buraco continuar assim, com as chuvas e ventos de inverno etc., a casa não vai aguentar mais do que dois ou três invernos… Viemos para fora para pedir autorização do que queríamos fazer e averiguar sobre empreiteiros locais, etc. Sucede que entretanto a nossa visita tinha despertado a curiosidade de alguns residentes de Cabanas; e, quando falámos sobre a ideia de reparar o telhado, falámos sobre orçamentos e viabilidades, etc.

"Entre os presentes que tinham chegado ou estavam por perto foi-nos apresentado um empreiteiro, logo seguido de outro que também podia estar interessado e que nos podiam dar ideias sobre o que estávamos falando, dum possível conserto da Casa. Que era impossível reparar o buraco e não era possível fazer nada a não ser cobrir o telhado com uma "umbrella" de metal, até que fosse possível fazer uma reparação à casa toda. Essa cobertura de metal custaria pelo menos 20.000 dálares ( isto em 2004!), o que nós não podíamos dispender nem tínhamos disponível!

"O António Rodrigues porém não se conformava, arguindo que se podia consertar o telhado, que a casa não precisava de cobertura nenhuma e que não era preciso gastar tanto dinheiro.

"Perante a posição bem clara e declarada de que nada se podia fazer, o António Rodrigues, meio nervoso, deu-me um toque no braço de maneira a não ser ouvido por mais ninguém e diz-me: 'Se eles não o podem fazer, então faço eu!'...

"Eu, habituado a muitas outras ocasiões em que o António tinha feito 'milagres' aqui nos EUA, apenas disse: 'Eh pá, tu tens a certeza? Então estes que são profissionais acham que não há nada a fazer, tu achas que vais conseguir alguma coisa?!'… Ao que ele respondeu: 'Deixa comigo. Eles estão a dizer que para consertar o teto têm de consertar a casa toda... Ora eu posso escorar tudo, partindo do chão até chegar ao teto e aí, depois de chegar ao teto, o telhado é fácil de consertar... Deixa comigo'.

"Foi difícil de convencer, mas depois não só concordaram em nos deixar a 'limpar a casa' que era tudo o que dizíamos ia acontecer, como toda a gente começou a oferecer os seus préstimos e ajudas: (i) um trator e um camião para levar as madeiras, pedras, tijolos, terra e lixo; (ii) além de virem eles próprios (e elas, pois se me lembro bem o trator pertencia a uma senhora que quando podia nos vinha ajudar) ao fim do dia para conduzir os mesmos; (iii) os escuteiros da escola queriam ajudar, o que tivemos de recusar pelo perigo de que não podiamos assumir a responsabilidade; (iv) o irmão da Mariana Abrantes, professor António Abrantes,  e sua esposa Ivone vieram-nos ajudar e connosco permaneceram até altas horas da noite para o que trouxeram holofotes para pudermos trabalhar de noite, como nós pedimos.

"Os que não puderam ficar foram-se, mas o Luís Fidalgo (advogado, e director da Fundação) nos garantiu, e cumpriu!, arranjar-nos um seguro contra acidentes, para o caso de nos acontecer algo (o que bem podia ter acontecido, dado a nossa coragem e entusiasmo em fazer o que estávamos a fazer).

"Foi durante essa primeira noite, conforme depois saiu em todos os jornais e na própria RTP que também fez cobertura do acontecido, debaixo de grossa camada de terra e estrume de ovelhas e de galinhas, tudo misturado com caliça das paredes, pedras e tijolos, que nós viemos a encontrar o que os media chamaram de 'tesouro na casa de Aristides': "documentos inéditos 'encontrados;'  'documentação encontrada surpreende investigadora', etc etc.; cartas de Aristides à sua mulher, de seus filhos para outros que já tinham emigrado para o Canadá; uma cópia de um livro, escrito por A. S. Mendes ainda por abrir ( à maneira antiga, tinha de se cortar as páginas com um 'abridor de cartas'); e muitos outros pedaços de documentos, alguns ainda intactos, mas a maioria que se desfaziam em pó nas nossas mãos ao simples tocar, revistas e jornais do tempo...

"Tudo foi entregue no dia seguinte em dois sacos de plástico à Fundação na pessoa do dr. Luis Fidalgo na presença da dra. Lina Madeira, uma autoridade em A. S. Mendes que veio de Coimbra a correr, e de vários correspondentes presentes.

"Voltando à reparação 'ad hoc' do telhado e dos buracos nos andares até ao chão... Eu fiquei com o António Rodrigues três ou quatro dias comendo na cantina do lar para idosos, de que o Luis Fidalgo era diretor, e dormindo as primeiras noites na casa do António e Ivone Abrantes, e depois num pequeno hotel local (ainda hoje não sei quem pagou a nossa estadia; o Luis Fidalgo disse-nos que estava tudo pago e não nos devíamos preocupar com isso). Tive de deixar o António sozinho e voltei aos EUA.

"O que o António fez e conseguiu depois, muitas vezes trabalhando sozinho, viajando todos os dias num camião bastante "usado" que um amigo dele lhe pôs ao serviço e onde trazia de sua casa ferramentas, materiais de construção como madeiras, barrotes, e tudo o mais que tinha e ele achava ser preciso para consertar a casa e o telhado... é coisa quase impossível de imaginar, não se tivessem visto os resultados.

A sua imaginação de arquiteto 'ad hoc' - entre outros apelidos chamavam-lhe o 'arquiteto sem canudo', 'o milagreiro ambulante', 'o americano maluco'...porque às cinco da manhã ele já estava, vindo de Aljubarrota, encarrapitado no telhado ou a trabalhar sozinho como um desalmado para remendar o que ele achava imperioso ser feito para que a casa aguentasse mais uns anos até se encontrar uma solução definitiva - levou-o a procurar nos arredores eucaliptos, telhas para o telhado ( iguais às outras do telhado, já difíceis de encontrar), materiais de construção, sobretudo barrotes e madeiras que precisava.

"A sua franqueza e simplicidade desarmavam toda a gente que não podia negar o que ele queria, 'para consertar a casa de Sousa Mendes'... Os troncos dos eucaliptos, não sei quantos, mas numa visita que fiz à Casa anos depois deparei com um bem grosso, barrando o meu caminho, escorando o andar superior, depois de rusticamente despojados dos seus braços/ramos, serviram para escorar os andares começando pelo chão...

"E, um por um, cada andar foi escorado e consertado até chegar ao teto.... era preciso 'ter a certeza' de que os barrotes originais no telhado å volta do buraco 'ficassem bem ligados' para que tudo não fosse parar ao chão outra vez. E o António de vez em quando me falava nos anos seguintes nuns bons cabos que lhe faziam muita falta e que ainda estavam a escorar e segurar o telhado da casa de Sousa Mendes: 'Quando consertarem de vez a casa, vou lá buscá-los, que eles ainda me fazem boa falta de vez em quando'…

"E assim foi o que sucedeu. O António, acabado o teto, estava esgotado e só desejava e sonhava poder descansar. Faltava tapar as janelas com madeira para proteger um pouco mais da chuva e vento e ter a certeza de que as portas permaneciam fechadas. Assim pediu, como eu antes de me ir embora de volta aos EUA tinha já falado seria preciso fazer. Mas tal parece não ter sucedido.

"A Casa ficou durante alguns anos em condições de ser visitada sem perigos dum barrote a cair na cabeça. Mas com o tempo e sem um 'António' a preocupar-se pela sua saúde, sujeita às intempéries, o telhado e o resto começou outra vez a cair aos bocados até que finalmente, quase no último minuto, a desesperada reconstrução das paredes, telhado e janelas, finalmente aconteceu..

"Bem hajam quantos trabalharam e contribuíram para o que agora finalmente e felizmente vai já em bom progresso. Bem merecem uma placa em lugar de destaque. Mas nesta não se esqueçam de mencionar também o nome de António Rodrigues!

"Não fora a intervenção 'ad hoc', mas que veio a ser providencial, em 2004, deste apaixonado 'arquiteto sem canudo' de Aristides de Sousa Mendes, não haveria nada a consertar mais, pois o que ainda restava e foi possível salvar, teria sem dúvida desmoronado completamente e tudo teria de ser reconstruido à base de fotos e memórias.

"Nova Iorque, 31 de janeiro, 2015.

"PS - Em anexo dois 'recortes' de jornais : 'Diário de Coimbra', de 8 de outubro de 2004; e 'Defesa da Beira', de 1 de outubro 2004. As imagens [do jornal 'Defesa da Beira'] parecem deixar muito a desejar, mas dão uma ideia do estado da casa com o seu enorme buraco, do teto ao chão;  e nos outros recortes, tens comentários do 'Diário de Coimbra' sobre o que foram encontrar. "
(***) Último poste da série > 15 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25746: (De)Caras (301): Quem seria o instruendo nº 821, do 3º turno de 1968, 3ª Companhia de Instrução, Centro de Intrução de Sargentos Milicianos (CISMI), Tavira ? Pergunta ao César Dias, que era o nº 847/3ª, desse turno (Eduardo Estrela, ex-fur mil, CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71)

4 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Dois portugueses das Américas, a que eu tiro o "quico"!

Tabanca Grande Luís Graça disse...


Luís Graça (by email)
18 jul 2024 11:07
João:

Boa estadia lá por Carregal do Sal...Boa inauguração. E não te esqueças de fazer um pequeno apontamento para o blogue. Conto com as fotos da Vilma... É um grande dia...

Recordo aqui as tuas "peripécias" em Cabanas de Viriato há 20 anos atrás, tu e o António (que já não pode ter, infelizmente, a alegria de ver a "nova" Casa do Passal).

É mais do que justo recordar a aqui estes "dois grandes portugueses das Américas", tu e o António, ajudando a resgatar a memória de outro grande português e cidadão do mundo, que foi o Aristides de Sousa Mendes. Quando eu e a Alice pudermos, faremos depois uma visita ao Museu e jardins.

Um grande abraço. Bj para as tuas "bajudas"... Luís

Anónimo disse...

Sinto grande admiração e gratidão pela ideia brilhante e pelo esforço do João Crisóstomo e o António Rodrigues na sua concretização. Todas as palavras serão poucas para agradecer a estas heróicas pessoas sem as quais provavelmente a casa de Aristides seria hoje um montão de pedras e a memória deste herói português esquecida ou pouco lembrada.
Obrigado e um grande abraço.

Carvalho de Mampatá

Hélder Valério disse...

É muito mais fácil falar do que fazer.

Estes Homens falaram e fizeram.
Por mim, saúdo a iniciativa e o resultado do trabalho.
Bem hajam.
Subscrevo as palavras do "Carvalho de Mampatá"

Abraços
Hélder Sousa