
Queridos amigos,
Ir a São Miguel é como chegar à segunda casa, o deslumbramento nunca cansa, é verdade que há uma dor por todos aqueles que aqui me deram tanta estima e que já partiram. Estava ali no jardim de Antero de Quental, depois de ter deixado na Biblioteca Municipal os livros autografados e que me foram oferecidos por Armando Cortes Rodrigues, a derradeira figura do Orpheu, olhei para a casa onde visitava o meu professor de Cultura Portuguesa, António Machado Pires, foi uma melancolia, outras já tinham acontecido, como a perda do médico oftalmologista Botelho de Melo, que me tratou em Bissau de uns olhos chamuscados por uma mina anticarro. Para quem deixou a vida profissional há uma dúzia de anos, foi também um raro prazer conversar com gente de uma associação de consumidores que ajudei a fundar, falámos do passado, andámos pelo presente e visionámos o que parece vir a ser o futuro, as associações de consumidores carecem de posturas novas neste admirável novo mundo que orbita no digital, na cultura da urgência e na modernidade líquida, cabe-lhes conjugar esforços perante as ameaças ambientais e uma solidariedade que contrarie este primado do individualismo, o grande Cavalo de Tróia da equidade e do Estado social. E fica-me a vontade de regressar depressa.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (198):
Bruscamente, no Natal passado, uma viagem relâmpago a Ponta Delgada – 2
Mário Beja Santos
Recapitulando, aterrei em Ponta Delgada ao principio da tarde, o secretário-geral da ACRA – Associação dos Consumidores da Região dos Açores telefonara-me dias antes lembrando-me das minhas obrigações enquanto um dos impulsionadores, ia para 35 anos, desta organização que privilegia os interesses dos consumidores açorianos, é uma promotora de causas de interesse público, acrescento que, tirando a DECO, é a associação de consumidores que resta da década de 1980, em tempos de pré-adesão à CEE e depois houvera cerca de dúzia e meia de associações, desapareceram praticamente todas ou não chegam ao grande público. Não podia dizer que não, a ACRA lutara denodadamente, anos a fio, para a criação de um centro de arbitragem de conflitos de consumo da região, este entrou em pleno funcionamento, é uma vitória de estalo, mas que traz problemas de foco, agora as reclamações dos conflitos de consumo são tratados nesse centro de arbitragem, o CIMARA, a ACRA precisa urgentemente de encontrar novos azimutes ou reforçar parcerias neste mundo de ameaças ambientais onde o consumo pesa, onde o paradigma digital suscita preocupações, tal como as tecnologias que decorrem e irão decorrer da inteligência artificial, a informação e educação do consumidor carecem de redobrados cuidados. Tive a tarde por minha conta, percorri uma cidade que conheço relativamente bem, aqui vivi de outubro de 1967 a março de 1968, fiz amizades inquebrantáveis, há saudades sem conto, memórias vivas e pesar por aqueles que já partiram e a quem devo profunda gratidão. Comecei o novo dia na cidade da Lagoa, houve larga conversa no auditório camarário, é um ritual que não descuro, almoçar filetes de abrótea ou peixe porco. E depois de regalado, pedi ao anfitrião que me levasse ao outro lado da cidade, extasia-me esta enseada e o contraponto da pedra vulcânica com a terra verde.
Igreja de Nossa Senhora do Rosário
Cidade da Lagoa, vista da Igreja de Nossa Senhora do Rosário
Enquanto aqui fiz tropa esta bela igreja barroca, que pertenceu aos Jesuítas, chamada Igreja do Colégio, esteve sempre fechada, muito depois reabriu e tem um interior faustoso, compatível com o esplendor desta fachada, aqui me detenho e recordo que em frente vivia um senhor chamado Leonardo que saía de caleche, ou talvez uma tipoia, bem indumentado, de botina e chapéu de coco, era um gosto ver aquela marca do passado a meter-se no meio do trânsito. Aqui ao lado da Igreja do Colégio é a Biblioteca Municipal Antero de Quental, aqui venho depositar presentes, um deles foi uma oferta do Dr. Armando Cortes Rodrigues que me convidara para jantar em casa, na Rua do Frias, recebeu-me parecia um gaúcho, recordou-me os seus tempos de Lisboa, inevitavelmente Fernando Pessoa veio à baila, os livros com dedicatória dele ficam nesta biblioteca.Não há nada de espetacular nesta fotografia, sei muito bem, estamos no Largo 2 de Março, era precisamente naquela esquina que parava uma viatura militar que transportava para os Arrifes os milicianos, oficiais e sargentos, que iam dar recruta. Não havia viaturas, mas o transporte era completamente desconfortável, o camião aos saltos, nós de pé agarrados a uns puxadores manhosos, aos encontrões uns aos outros, a viatura aos saltos e a parar bruscamente quando passavam as vacas. Foi assim, voltei facilmente a 55 anos atrás.
Também no Largo 2 de Março esta casa apalaçada era uma ruína, em franco abandono, dá gosto vê-la aprumada, transformada em alojamento local, passava por aqui todos os dias, lá ao fundo virava à esquerda para me ir encontrar com gente amiga no café Gil ou na Tabacaria Açoriana.
O café Gil agora é um restaurante de sushi, a livraria Gil fechou, é loja expectante, sobrevive a Tabacaria Açoreana, com bastantes alterações, mantém à entrada uma zona de cafetaria, em espaço intermédio temos os jornais, revistas e a lotaria e depois a zona de livraria, ainda um tanto parecida com o que foi. Tem agora este aspeto de tertúlia, antes de entrar ainda procurei o Melo Bento no seu escritório, disseram que talvez estivesse na Açoreana, não estava, talvez a tertúlia comece mais tarde. Olhei melancolicamente para o escaparate onde se vendia o República ou o Diário de Lisboa.
O meu quarto ficava aqui, Rua de Lisboa, n.º 31, 1.º andar, janela sem varanda, quarto com direito a banhos e tratamento de roupa, vinha do quartel, desfardava-me, e partia à civil com um livro debaixo do braço. Nunca esqueci o dia em que sobraçava um calhamaço de cerca de 700 páginas, uma biografia de Kennedy feita por Theodore Sorensen, Editorial Aster, 1967, eis senão quando sou abordado na Tabacaria Açoreana por alguém que me pediu para ler o livro no fim de semana, marcámos ponto de encontro, o dito senhor nunca mais apareceu… O que posso dizer é que a casa levou obras, no meu tempo era uma simples alvenaria branca, uma porta muito simples e nada de gelosias como estas.
É incrível como passei tantas vezes por aqui a caminho do Largo de São Francisco, ou em sentido inverso, para ir para o meu quarto, e nunca me detive para conversar com o Roberto Ivens, natural aqui da terra, que andou com o Brito Capello naquelas expedições africanas, nos tempos em que procurávamos consolidar o Terceiro Império, é um busto bonito, a peanha é elegante, um dever de memória bem assumido.
Houve grandes benfeitorias, naqueles anos 1960 o coliseu estava um tanto escalavrado, é hoje uma casa de concertos, no meu tempo era sobretudo cinema, aqui trouxe um pelotão para vermos o filme Lord Jim, realizado por Richard Brooks, com um elenco de primeiríssima água, descobri que um bom número dos meus recrutas jamais tinha entrado num cinema, foi uma noite de grande felicidade, o comandante do batalhão autorizou que viéssemos todos de viatura, a partir dos Arrifes, finda a sessão, a minha malta regressou à caserna.
Venho despedir-me deste saudoso Antero, nunca foi poeta do meu culto, mas jamais esquecerei a sua conferência no Casino Lisbonense intitulada Causas da decadência dos povos peninsulares, não entendo como todos aqueles que se debruçam sobre a história do pensamento português omitem sempre esta reflexão anteriana.
E também venho despedir-me do Largo da Matriz, um pouco mais à frente há um café que subsiste com o nome Nacional, eu era comensal, comia todos os dias pão, azeitonas, sopa, uma travessa com peixe ou carne e uma sobremesa. Sempre muito bem servido. O empregado caiu na asneira de dizer que era irmão de um recruta meu, adverti-o que no dia em que ele me tratasse mal havia consequências sérias para o irmão, ele terá ficado inquieto, chegava ao desplante de me dizer “Hoje peça a carne, o peixe não está muito bom.” E também neste Largo da Matriz estava o consultório do Botelho de Melo, amigo para sempre, tratou-me carinhosamente a vista depois de um trágico acidente com uma mina anticarro.
Por uso e costume, nunca me apresento em imagem nestas deambulações. Abro exceção porque foi um momento de rara felicidade, reencontrei o jornalista Sidónio Bettencourt, ele era estagiário aí pelos anos 1980 nos estúdios da Emissora Nacional, onde eu gravava programas, nem todos eram em direto. Coube ao Sidónio fazer uma gravação de um desses programas, no final disse-lhe que ele devia ficar na Emissora pelo seu alto profissionalismo. Agradeceu o meu comentário, mas disse-me prontamente que o seu lugar era aqui. Entrevistou-me longamente, não esqueceu aquele encontro de há largas décadas, alguém que acompanhara a emissão nos estúdios disse-me logo que tínhamos que ficar na fotografia. Dei-lhe um abraço e parti para o aeroporto, a visita meteórica chegara ao fim.
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Nota do editor
Último post da série de 22 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26605: Os nossos seres, saberes e lazeres (674): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (197): Bruscamente, no Natal passado, uma viagem relâmpago a Ponta Delgada – 1 (Mário Beja Santos)
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