quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19111: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (3): Umaru Baldé (c. 1953-2004), "filho único de sua mãe"


Umaru Baldé (c. 1953-2004), soldado do recrutamento local,  nº 82115869, tirou a recruta e a especialidade no CIM de Contuboel. Foi apontador de morteiro 60, soldado arvorado e depois 1º cabo infantaria da CCAÇ 12 (1969-1972). Foi depois colocado, em Santa Luzia, Bissau, no quartel do Serviço de Transmissões, até ao fim da guerra. Conheceu, em mais de metade da vida, a amargura  e a solidão do exílio. Veio morrer a Portugal onde teve grandes camaradas e amigos, solidários, que o ajudaram.

Foto: © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados . [Rfição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Envelope da carta enviada pelo Umaru Baldé ao José Valdemar Queiroz Silva, 5residente no Cacém  (foi deliberadamente rasurado o nome da rua do destinário)]




Recruta do CIM de Contuboel
(c. março de 1969)
Carta, datilografada,  sem data nem local, tem a foto do remetente, o Umaru Baldé, ao canto superior esquerdo. Excerto.

Fotos: © Valdemar Queiroz (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

1. É um relato pungente de um miúdo, de etnia fula,  que deveria ter 15/16 anos, "filho único de sua mãe", quando foi recrutado, na sua aldeia (Dembataco, do regulado de Badora, no subsetor do Xime, setor de Bambadinca), em 12 de março de 1969. 

No Centro de Instrução Militar de Contuboel, o Umaru Baldé (c. 1953-2004)  fez a recruta e a especialidade, sendo integrado na CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, como soldado arvorado, apontador de morteiro 60. 

Era um exímio apontador de morteiro 60, como o demonstrou em exercícios de fogo real, no CIM de Contuboel, ma presença do gen Spínola e seus acompanhantes (**), em inúneras situações em que esteve debaixo de fogo, durante cerca de dois anos e meio.

Depois da independência da Guiné-Bissau, e com justificado receio de represálias por ter servido o exército português,  atravessou quase metade de África para chegar a Portugal, em 15 de abril de 1999, tendo entretanto vivido ou sobrevivido no Senegal (11 anos), Mali (1 ano), Costa do Marfim (2 anos), Gana (2 meses), Burkina Faso (7 meses). etc, e passando por ainda Benin, Guiné-Conacri, de novo Guiné-Bissau, etc. e, por fim, Portugal.

É membro, a título póstumo, da nossa Tabanca Grande), Esta carta terá sido escrita  em meados ou finais de 1999 / princípios de 2000. Morreu de tuberculose e SIDA em 2004. Nunca escondeu o seu grande amor à Pátria Portuguesa que lhe foi madrasta. 

Este documento humano lancinante precisa de melhor conhecido, divulgado e comentado.

Excertos. transcrição, revisão e fixação de texto: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Vd. carta na íntegra aqui (**)


AMOR NUNCA ACABA

Amor nunca acaba,
ninguém esquece dos passados ceja [seja de] bem ou de mal,
eu me lembro de dia 12 de março de [19]69, quando foi [fui]
chamado para [a] vida militare [militar] Portugues[a].

Na verdade eu tinha pouco[s] anos de idade 
e eu era único filho de o meu pai, 
e na verdade minha Mamãe revoltou[-se], 
disse que eu não tenho [tinha] idade para ir na guerra, 
mas a pena [é que] Alferes que tinha vindo para nos levar, não podia ouvir esta revolta.

Alferes disse-nos [:]
todos somos Portugueses, 
saímos [de] muito longe para defender [a] Pátria Portuguesa, antão [então], para povo saber 
que [em] Portugal não há raça nen [gente] de cores, 
todos [todo] cidadadão tem que ir cumprir 
serviço militar português.

Minha mamãe chorou, 
disse [:] ai, meu Deus, tenho meu filho único
que vai me deixar para ir morrer na guerra.

Esta data era[foi] dia de tristeza i [e] lágrimas 
para [o] povo de Demba Taco e Taibatá, 
na verdade ficámos até às 4 horas das tarde 
[até] entramos no [nas] viaturas militares para Bambadinca.

Eu, com a pouca idade que eu tinha, 
o que podia fazer ? 
Todo como homem, que sou, 
quando foi [fui] na recruta [em Contuboel], 
foi [fui] o melhor apontador de morteiro 60 [...] 

Depois, na especialidade 
foi [fui] levado para [o] mesmo lugar [...]
na primeira companhia [que] foi na CCAÇ 2590 [/] CCAÇ 12] onde nunca esqueço [o] sufrimento [sofrimento] 
que sofri para [pela] Minha Pátria Portuguesa, 
na Guiné Portuguesa.

Na verdade, [em] dois anos e alguns meses 
que fez [fiz] como operacional, 
fez [fiz] 78 operações no mato do Xime, 
[na] zona do Xitole e até [em] Medina [Madina] do Boé, 
ao lado de Ganjadude [Canjadude]. 
Na minha companhia, durante dois anos 
só sofremos 5 soldados [mortos], 4 pretos e um vranco [branco].
Depois fui transferido para Bissau como primeiro cabo, 
onde fui colgado [colocado] no comando das transmissões
 [, quartel de Santa Luzia,] 
até ao fim de[da] guerra em 1974. [...] (***)
_____________

Notas do editor:
(**) Vd. poste de 29 de setembro de 2016 Guiné 63/74 - P16537: (In)citações (102): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte V): O Umaru Baldé que eu conheci... O "show" de morteiro 60 que o "puto" deu, no CIM de Contuboel, em exercício de fogo real, na presença do próprio gen Spínola em maio de 1969... (Valdemar Queiroz, fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)

(***) Último poste da série > 17 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19109: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (2): Virgínio Briote [ex-alf mil cav, CCAV 489 (Cuntima) e allf mil comando, cmdt do Grupo Diabólicos (Brá; 1965/67); coeditor jubilado do nosso blogue]

4 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O drama de "ir para a guerra" não foi apenas nosso, jovens, nascidos no Portugal metropolitano... O Umaru Baldé também foi sacrificado no "altar da Pátria", quando Spínola decidiu militarizar toda as as tabancas e toda a gente... Eu estive em tabancas de autodefesa, e toda a gente tinha arma, exceto as mulheres e as criancinhas... O Umaru Baldé não tinha "escapatória"... Ficou a sua mãe a chorar, tal como as nossas...

Valdemar Silva disse...

A propósito do Umaru Baldé, puto/soldado em Março de 1969, encontrei-me com ele várias vezes na Amadora e fui visita-lo ao Sanatório de Torres Vedras quando esteve internado.
Ele sempre muito pedinchão, coitado, andava sempre a escrever sobre vários assuntos do quotidiano e, principalmente, petições para ser reconhecido como tendo sido do Exército Português e que nunca conseguiu.
Também tinha conceitos interessantes sobre a filosofia da vida, com base na sua religião muçulmana, e não se importava quando nos encontrava-mos beber um 'penalty' de tinto. Dizia que podia beber vinho em dias de festa.
Recordo-me dele pedir para ir ver o fim da terra dos portugueses, que descobri que
era o Cabo da Roca. Ele ficou emocionado com o local e até escreveu num papel 'Onde a terra acaba e o mar começa'.
Ele que passou as passas do algarve por quase meia da sua África ficou espantado de ver o fim da terra dos portugueses.

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Espantosas revelações dos últimos anos do 'puto' Umaru Baldé, que eu e tu, Valdemar, conhecemos ainda "djubi" (15/16 anos), e fez a guerra comigo e com a malta da CCAÇ 12...

Tenho uma foto com ele e com o José Carlos Suleimane Baldé em Finete... Palmilhámos, juntos, muitas centenas de quilómetro por matos, bolanhas e picadas da Guiné... Ainda hoje sinto amargura e revolta pelo seu trágico fim, no terminal da morte do "hospital" do Barro, em Torres Vedras...

Era um miúdo esperto, dotado de elevada inteligência emocional, que poderia ter ido longe, se em vez de ir para a guerra, tivesse feito a instrução primária, depois o liceu e, quiçá, a universidade, como acobteceu como o Mussa Biai, o "djubi" do Xime, 10 anos mais novo... A geração do Umaru Baldé estava condenada a fazer a guerra de um lado ou do outro.

Uma criança imolada em honra do deus Moloch, pelos grandes senhores da guerra, António Spínola e Amílcar Cabral.

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

Não consegui evitar ficar comovido com o que li.
E irritado pela impotência em conseguir fazer alguma coisa de jeito.
O Umaru é também, a seu modo, uma imagem bem demonstrativa da insanidade da guerra, das guerras.
O meu "inútil" lamento.

Hélder Sousa