quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19108: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (1): Valdemar Queiroz (ex-fur mil at art, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)


Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > Centro de Intrução Militar (CIM) > CART 2479 / CART 11 > c. março/maio de 1969 > O instrutor (Valdemar Queiroz) e o recruta (Umaru Baldé, "menino de sua mãe")... Afinal, todos portugueses, todos iguais, mas uns mais do que outros...

Foto: © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O nosso camarada C. Martins (ex-alf mil art, cmdt, 23º Pel Art, Gadamael Gadamael, 1973/74),  citava há tempos o seu avô que, na inauguração da escola lá da terra, em pleno Estado Novo, ouviu da boca de um manda-chuva esta "verdade sociológico": "O escritório, para o rico; a enxada, para o pobre"... No fundo, é uma variante do ditado alentejano: "A rica teve um menino, a pobre pariu um moço"...

Não nascemos nem morremos iguais, embora sejamos todos feitos - com a sua licença, caro leitor -,  da mesma "merda"... E, ao longo da vida, há outros fatores que nos continuam a diferenciar...No caso da tropa, da arma e da especialidade, e da mobilização para o Ultramar, o estatuto sócio-económico dos pais, as habilitações literárias, os testes psicoténicos, o mérito, a instrução militar e o famoso factor C [, a "cunha") e, já agora, a "sorte" e os "santinhos"... ajudam a explicar muita coisa...

Com graça, mas naturalmente de forma redutora,  o C. Martins dizia que o "pobre" ia para atirador de infantaria, o "remediado" ia para cavalaria, o "remediado com estudos" para a artilharia... e os  "ricos" e os gajos com cunhas, esses, desenrascavam-se muito melhor: tinham especialidades que os livravam de ir para o Ultramar ("ir para fora"...) ou ficavam no "ar condicionado" de Bissau, Luanda ou Lourenço Marques... 

O retrato pode ser grosseiro, mas, na época da guerra colonial, não andaria muito longe da "verdade sociológica"... Na sociedade portuguesa ser "filho de algo" sempre foi, historicamente, importante, se não mesmo decisivo. O mérito é uma noção recente, capitalista, burguesa, coisa de há menos de 100 anos... E a "cunha" (o factor C)  era como as bruxas: que as havia, havia, e toda a gente "mexia os seus pauzinhos"...

A este propósito o nosso editor, LG, lançou este desafio (que alguns poderão interpretar como uma "provocação", mas que não é: é amtes uma "provação", ou melhor, uma "prova de vida"...):

Camaradas: toda a gente, fosse "rico", "remediado" ou "pobre", do Exército, da Marinha ou da FAP, tem opinião sobre este "tópico"... Tirem a "máscara" e comentem... 50 anos depois não vale a pena levar segredos para a cova... E um gajo, a ter de confessar-se, deve ser agora, aqui e agora, à sombra do poilão da Tabanca Grande... antes do Parkinson, do Alzheimer, do AVC, da morte macaca ou do cancro da próstata... (De que Deus nos livre!)

Já começaram a aparecer os primeiros escritos, sob a forma de comentários... Outros se seguirão, mais curtos ou compridos, mais finos ou mais grossos... Vamos dar início a uma série, aproveitando a frase da mãe do Valdemar Queiroz que, resignada, comentou, ao receber a notícia da sua mobilização para o Ultramar:  "Então, e depois?... Os filhos dos ricos também vão pra fora!"...

De qualquer modo, há uns largos anos atrás, em 2009, tínhamos criado uma série intitulada "O trauma da notícia da mobilização"... Publicaram-se então nove postes...   A nova série de hoje  dá continuidade a essa...  LG


2. Depoimento do Valdemar Queiroz [ex-fur mil at art, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70] [, foto atual à esquerda]

Sobre cunhas, principalmente em Especialidades com pouca rotação/mobilização (ex.: munições de artilharia, topógrafo de artilharia, transmissões de artilharia), a cunha estava feita para a Especialidade e, depois, se corresse mal havia os 'mata pra fora', ou seja quando havia um com boa nota e não se importava, a troco duns contos de réis, de ir 'pra fora' no lugar dele.

Aconteceu no RAP3, Figueira da Foz, com um cabo miliciano. meu conhecido, e um jogador de futebol dum clube grande. 

Mas, isto de Santa Bárbara, padroeira da Artilharia, bem se podia rezar por ela, que em novembro de 1967, todos os que estavam na EPA, Vendas Novas, ficaram com todas as fardas ensopadas durante três dias.

Quanto ao dia do conhecimento da mobilização estava no RAP3, já com 16 meses de tropa e não me lembro como foi passado. Apenas me recordo, ainda com muita mágoa, ter telefonado à minha mãe e ela me dizer:
- Então, e depois?, os filhos dos ricos também vão pra fora!...

Pobre coitada,  assim já tinha motivo pra rezar a todos os santinhos. (*)

Valdemar Queiroz
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5 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Pois é, Valdemar, as nossas santas mãezinhas lá arranjavam maneira de não morrerem de dor:
- Meu filho, não és mais do que os outros... Se até os filhos dos ricos vão, o que á gente, pobrezinha, pode fazer ?

Era o "fatum", era o fado, era o destino!...

A minha também rezava o tercinho, todos os dias, por mim... Uma santinha que já lá está ao pé das outras santinhas como a tua.

Anónimo disse...

Pois vou voltar ao mesmo assunto. Isto é assim:
Não queria esta exposição, mas tem de ser assim.
Quando eu fui mobilizado em 10 de agosto de 67, estava no BC10 em Chaves, mas tinha-me desenfiado, mais uma vez, e andaram à minha procura vários dias, até que o Comandante do BC10 consegue falar para minha casa, e avisar que eu andava a ser procurado, e que tinha sido mobilizado para a Guiné, teria de me apresentar em Chaves nesse dia, e lá me deram a Guia de Marcha para o CIM de Santa Margarida.
Não vi lá em casa, e éramos 7, ninguém a chorar, só recebi ordens do meu pai para me apresentar em Chaves e depois seguir logo para Santa Margarida.
Depois, mais tarde, já na data da despedida para o embarque para a Guiné, em 18 de setembro de 67, os meus pais despediram-se de mim à porta de casa, e lá fui de saco às costas para o comboio correio da noite em São Bento no Porto, rumo a Figo Maduro. Não vi ninguém a chorar por mim. Eu tenho talvez uma explicação para isso, mas não interessa agora levantar mais 'dramas' do passado.
Será que isto se passa porque já pertencia a uma família de militares? O meu pai ainda vá que era mais duro, mas a minha mãe não chorou, e lá fui eu de casa, a pé até o eléctrica da Arca de Água, não sei se me vieram as lágrimas aos olhos.
Isto tem de ser dito e escrito como foi, e não como devia ser.
Vamos em frente, eles, os meus pais, lá estão no sitio para onde todos vamos, e não vou mais chorar por causa disso.
Há realidades que custam a engolir, esta é uma delas...

Abraço,
Virgilio Teixeira

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Virgílio, até nisso nos diferenciamos, todos nós, indivíduos, famílias, comunidades, povos...Há idiossincraisas próprias, culturas específicas... Por isso nos interessa saber como é que cada um de nós reagiu, e qual foi a atitude da família e dos amigos... A esta distância é difíl reconstituir os pormenores... Mas tu sublinhas e bem, que vens de uma família de militares: o teu pai, o teu irmão---

E, como tu bem sabes, não estamos aqui jukgar ninguém, muitos menos os nossos queridos pais... Viou juntar os teus comentários para depois fazer um poste para esta série... Oxalá apareçam muitos mais depoimentos... Todos passámos por isto...

Abração, Luís

Unknown disse...

E o meu comentário? Catém!!!!!

Hélder Valério disse...

Olá camaradas

Este tema é interessante.
É verdade que o que então se passou, no momento da mobilização e suas consequências, é já passado.

O Virgílio revelou o que se passou com ele. Custou-lhe, mas também talvez tenha feito bem essa revelação pois pode 'arrumá-la' sem mais tormentos.
É verdade que cada um teve a notícia de forma diferente e reacções e comportamentos diferentes.

No meu caso foi assim: tinha tido uma semana de férias (conquistada, modéstia à parte, por habilidade minha, que me serviu e a alguns dos meus camaradas "Ilustres TSF", mas isso poderá ser outra história) que terminou a 31 de Agosto de 1970 e no dia seguinte, 1 de Setembro saiu a minha mobilização (e de mais 6 camaradas, todos em rendição individual, para a Guiné). Sobre esse acontecimento, já dei conta aqui no Blogue do conjunto de situações que entretanto ocorreram e por isso o que importa agora é o facto de após ter tido a tal semana de férias, passados dois ou três dias, já não me lembro bem, chego a casa, o que causou alguma estranheza aos meus pais mas lá os tranquilizei dizendo que me tinham dado mais 10 dias de férias ao abrigo dumas tais Normas Militares.

O meu pai desconfiou e perguntou "para onde"? e, desprendidamente, mostrando tranquilidade, respondi "Guiné", (a palavra "maldita" por aqueles tempos) "que tem a vantagem de ficar mais perto e poder vir cá duas vezes"...

Depois foi o tempo de aguardar transporte o que só viria a acontecer oficialmente a 26 de Outubro, mas nem isso, pois conforme relatei aquando da minha apresentação no Blogue, a partida real apenas ocorreu a 3 de Novembro. Para a "despedida" de 26 de Outubro houve "adeuses" no cais mas sem grande alarido, tudo muito contido. Entre essas datas, a da "falsa partida" e a da "partida real" andei 'por aí' e no final a despedida foi apenas da namorada com um "adeus" triste mas confiante, duma janela de comboio em Santa Apolónia e então lá fui sozinho para o Cais da Rocha, com tempo para interiorizar os tempos mais próximos.

E pronto!

Abraços
Hélder Sousa