sábado, 20 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19123: Memórias de Gabú (José Saúde) (72): Jau, o nosso guia (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série. 

Gabu em memórias 
Jau, o nosso guia 

Era de etnia fula. Sorriso rasgado, afável, extremo companheiro em todos os momentos em que a guerra impunha a ordem, o Jau, o nosso guia, estava sempre disponível para nos orientar pelo interior de um matagal excessivamente intenso onde o capim e os trilhos estreitavam, sendo que o sol quase não penetrava em ramagens superiores rotuladas como freneticamente extensas. 

As memórias que guardo dos escaparates da guerra são de facto imensas. Gabu, tal como as outras regiões, fora chão palmilhado por camaradas que para ali foram drasticamente atirados. Aliás, estas pequenas histórias avulsas que amiúde descrevo fazem integralmente parte da vida de um qualquer enigmático e mui respeitoso camarada que pisou o solo guineense. 

O horizonte, sempre bélico e carregado de expectativa, escondia ao entardecer mais uma noite de intensos pesadelos. Ou, mais uma noitada onde a missão imposta passava pelo montar de uma emboscada. Depois, lá vinha a luta titânica travada no breu e ao largo de um tempo, quiçá infindável, em que as insónias se assumiam como mais fortes em corpos de jovens soldados impossibilitados do calor afetuoso dos seus carinhosos lares. 

Os irrequietos mosquitos, emitindo zumbidos ensurdecedores, davam a volta à cabeça do mais tranquilo camarada. Na época das chuvas as trovoadas pareciam quebrar a linha de um céu onde a noite parecia fazer-se dia. Tal a sonoridade dos temíveis trovões e sobretudo o lampejar da intensidade de raios sucessivos que se abatiam sobre as nossas cabeças. 

Estávamos em África. Solo pátrio do meu camarada Jau. De quando em vez lá me ia soletrando algumas palavras que visavam, creio eu, tranquilizar-me uma vez que o entoar estridente da “filarmónica” não dava folgas. Abrigávamo-nos enrolados em ponches que minimamente nos protegiam das chuvadas. Ele, conhecedor acérrimo de uma realidade que lhe era comum, lá se desfazia em cultos de gáudio. 

O Jau era um homem feito com as vicissitudes da guerrilha. Conhecia os meandros de um conflito virado literalmente para a luta guerreira e onde os ocultos rostos do inimigo causavam estragos. Muito “viajámos” pelo interior das tabancas de Gabu as quais congregavam gentes simples e crianças desprotegidas que encarecidamente reclamavam apenas a paz. 

À memória ocorre-me um interminável número de casos que fizeram parte do nosso quotidiano convívio. Recordo, por exemplo, quando o tempo era de Ramadão. O Jau, fiel aos seus princípios éticos, pedia-me para descansarmos porque o momento requeria a sentimental reza. Respeitava. Virado alegadamente para Meca, lá imaginava a linha do horizonte que o transportava à Terra Santa, orava e a sua alma sentia-se mais leve. 

Quando o jejum impunha rigorosas obrigações, recusava a ração de combate e passava todo o dia a mascar cola. A cola era uma pequena semente de uma planta que se destinava a não sentir a necessidade de uma refeição. Alimentava-se durante a noite, ou seja, após o pôr do sol e antes deste iluminar a ancestralidade da terra. 

Numa sintética abordagem ao conteúdo genérico do respetivo fruto – noz de cola –, sabe-se que este não representando abundância, tinha sim, por outro lado, o condão em condensar uma dimensão social nas sociedades sediadas na costa ocidental de África. 

Especificando o êxtase que o mascar da cola causa (va) no indivíduo, admite-se que o seu estado anímico se torna transcendente, sendo o espaço e o tempo uma espécie de reunião entre o céu e a terra. 

Eis, talvez, o significado primordial que levava o Jau, tal como a plebe, em ocasiões propícias, a mascar o lascivo fruto. Tanto mais que ele, o fruto, sintetizava imagens de mundos sagrados e profanos onde não faltava também o universo oculto que o mesmo envolve. 

A talho de foice, lembro, ainda, um contacto com o IN em que atrevi levantar-me e, numa estonteante correria, procurar granadas do morteiro 60, visando a sua utilização imediata dado que as vozes dos guerrilheiros soavam por perto e o Jau, sabendo a dimensão do perigo, gritava-me: “deite-se furriel que isto é perigoso”. 

Hoje, vergado já ao peso da idade, arremato, despretenciosamente, que o Jau foi um grande amigo e companheiro que muito me ensinou, restando lançar agora o oportuno apelo: camarada, fazes ainda parte, ou não, deste cosmos dos mortais? Ou, fostes, mais um, levado na fatídica enxurrada no pós entrega do território ao novo governo do país que te viu nascer?  


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________

Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

7 comentários:

Valdemar Silva disse...

José Saúde
Jau também era nome de vários soldados da nossa CART11 'Os Lacraus' que estivemos
em Nova Lamego, Quartel de Baixo, de Maio/Junho 1969 a Julho/Agosto 1970.
No meu Pelotão havia o Demba Jau, um homem feito, de temperamento calmo, falava francês e exímio atirador da Bazuca e o Arfan Jau, um rapaz de grande porte atlético, soldado valente e grande, embora jovem, lutador de luta-fula.
Também, Jau era o nome do criado/escravo de Luís de Camões, em terras da Ásia.
Abraço
Valdemar Queiroz

Cherno AB disse...

Caro amigo Valdemar,

Jau ou Djau é um apelido dos Fulas de Gabu que deriva do apelido Dja ou Dia (frances), mais usado na sub-regiao (Senegal, Mali e Mauritania).

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Valdemar Silva disse...

Caro amigo Cherno Baldé
Obrigado por mais um pequeno ensinamento sobre a Guiné.
Lembro-me que o Demba Jau, quando lhe perguntava a razão de falar melhor francês que português ele ter dito que trabalhou muito tempo na terra do irmãozinho no Senegal.
Também é interessante o nome Jau do criado/escravo de Luís de Camões, parece que ele
era oriundo da Ilha de Java.
Um abraço
Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Faz bem ler boas histórias dos tempos idos que não voltam. E de Nova Lamego, o Gabu, os fulas, e as fulas, deixam uma nostalgia, quer se queira ou não. Quem por lá passou sente isso, pode é não querer dizer. Não venham agora falar em saudosismo, mas saudades sim, apesar de tudo foram apenas 5 meses, quem me dera que tivessem sido os 23 meses todos lá, e estaria bem melhor hoje em dia, nunca se sabe, claro!
Não tive tempo para aprender tanta coisa do Gabu, fui ali parar e tinha uma tarefa que não me deixava muito tempo para conhecer as pessoas, foi pena. Como já disse saí de lá em 26Fev68, e tivemos grande ronco no dia anterior, a despedida da população.
Em 1984, quando voltei à Guiné, na primeira possibilidade que tive, fui logo directo ao Gabu, na longa estrada desde Bissau, serão uns 200 e tal quilómetros. Mas foi uma desilusão, embora algumas ruas estivessem asfaltadas, faltava lá muita coisa, a nossa tropa principalmente. Vi que estava num sitio já estranho, eu era um estrangeiro, embora sempre benvindos, depois fui a Cabuca, e voltei desolado.
Nada era como antes!
Apenas me lembro de um Mamadu Jaló, era da CCAÇ5. Deve ter sido também devorado pelos massacres e fuzilamentos dos novos senhores da guerra, mas a culpa não foi deles, foi dos nossos governantes que não cuidaram de os proteger. Enfim, cala-te boca...

Virgilio Teixeira

Valdemar Silva disse...

Virgílio
Foi a minha CART11 'Os Lacraus' que fez a segurança na construção das várias pequenas pontes da estrada para Cabuca. Anteriormente, principalmente no tempo das chuvas, era muito difícil fazer o trajecto de Nova Lamego para Cabuca.
Como te deves lembrar o difícil que era e o tempo que era preciso para chegar a Cabuca.
Quem de nós não gostaria de ter vinte e poucos anos mesmo que fosse naqueles tempos e naqueles lugares, mas melhor fora noutras circunstâncias mais construtivas e alegres.
Quanto ao resto, é a puta da guerra.

Ab.
Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Valdemar, realmente tenho ideia dessas pontes e a dificuldade de ir até Cabuca!
Politica à parte, eu não me importava nada de lá estar agora, com 25 anos, em vez de 75, mesmo que as condições fossem na mesma adversas. Na guerra, a maioria de nós 'safou-se' com mais ou menos problemas e sacrifícios, mas agora, não temos outro destino senão a 'morte' mais tarde ou mais cedo, e já ninguém vai durar outros 50 anos, estamos mesmo fodidos, o PDI não perdoa, e já não fazemos mais aquilo que fazíamos.
Quando voltei a Cabuca, em 1984, fomos, eu e outra pessoa que nada tinha a ver com aquilo, num JEEP do Governo da Guiné, e respectivo condutor e ajudante. O caminho até Cabuca e depois até à fronteira da Republica da Guiné, os 'BURACOS' eram do tamanho do Jeep, foi uma viagem tormentosa e demorada até lá chegar, e depois de ver a tabuleta pendurada a dizer que era zona perigosa, mosca Tze-tze, foi uma correria e os buracos, quando voltamos pareciam ainda maiores. Posso dizer que a aldeia tinha meia dúzia de habitantes, grosso modo, mas estava lá. Naquela altura ainda tinha 41 anos, aguentava bem, mas hoje só de Heli lá voltava. E não tenho a certeza!
Eu já mandei ao Luís Graça, um mail com esta viagem, aliás, foram 3, é um assunto que não diz respeito à nossa guerra, é muito pesado o conteúdo, diz respeito às dificuldades que tive com este negócio, quer a descrição que é chata, quer a quantidade de fotos que são muitas, por isso está há uns meses à espera de melhores dias.
Boa noite,
Virgilio Teixeira






Hélder Valério disse...

Pois é, amigo José Saúde, as recordações umas vezes estão esbatidas, outras vezes estão bem presentes.
E estas "aproximações mentais" ajudam a viver.
Obrigado.
Hélder Sousa