quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19087: Bibliografia de uma guerra (93): “Tu não viste nada em Angola”, por Francisco Marcelo Curto; Centelha, 1983 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Agosto de 2016:

Queridos amigos,
Nunca me passou pela cabeça que o socialista autogestionário Marcelo Curto tivesse apanhado a guerra de Angola logo em meados de 1961, lançado no Norte, em locais quentes.
Não privilegio outras literaturas de guerra que a da Guiné mas de tempos a tempos gosto de ser surpreendido pelos termos de comparação. Neste caso, um território com alturas e funduras, uma guerra de capacete, com contingentes militares acompanhados de voluntários, com tiradas racistas impensáveis em território guineense, aqui o problema da cor era outro, bem como os problemas coloniais tinham outra feição.
É um documento raro, um alferes que leva sebentas para a comissão militar, devia imaginar que viria em breve fazer exames...
Uma surpresa da literatura de guerra que partilho com enorme satisfação convosco.

Um abraço do
Mário


Quando a guerra, toda ela, dava pelo nome de Angola (1)

Beja Santos

Francisco Marcelo Curto (1937-2001) foi fundador do Partido Socialista, membro do governo, conceituado especialista em Direito do Trabalho, e no meio político e sindical conheceu grande notoriedade devido às suas simpatias com o processo autogestionário e por ter criado a Esquerda Laboral.

Escreveu um só livro na sua vida abreviada: “Tu não viste nada em Angola”, Centelha, 1983. O seu livro é uma surpresa e uma revelação, é um registo de notas entrosado com memórias plasmadas sob a forma de água-fortes. Surpreende pela sinceridade, nada do que consta dessa obra pode ter sido decantado em laboratório, denota, toda a obra, o cunho da mesma personalidade e tem uma margem plausível da história temporal do combatente, há para ali a experiência de uma comissão em marcha.

Estamos em Julho de 1961, quando ele começa a registar páginas do seu diário: a descrição sumária da cidade de Luanda, as conversas sobre os batalhões a caminho de Nambuangongo, a adaptação à comida (muamba, um molho grosso de óleo de palma e muito gostoso, com galinha e arroz ou funge), anota que o funge se pega à boca e o jindungo, visitas aos cabarés, ficamos a conhecer os seus soldados, o Sorna, o Azinheira. O grande choque é dado quando visita os primos, as conversas não escondem os sentimentos racistas destes colonos, a queixa a que os pretos eram criminosos, os brancos tinham-se viso obrigados a unirem-se em milícias armadas. Em Agosto, já estava em Toto, demoraram dois dias de viagem, encontraram abatizes, fazendas abandonadas: “Toto vive de um tipo que tem palmeiras e negoceia em óleo de palma e café. As sanzalas à volta de Toto estão destruídas. Há um restaurante onde o bife é pago a preço de ouro. A mulher dele usa chicote e berra”. Não esconde a veneração pela mãe, a sua relação com Matilde, a mãe do filho, está profundamente abalada ou exausta. Aqui e ali, vai pontuando o texto de poesia, esta não passará à história.

E temos uma coluna para o Catete: “Rua ao centro, um grande casarão ao fundo, e à volta sanzalas e mais sanzalas. Na prisão da administração um preto leva porrada com uma moca. Foi caçado ontem – informa o cipaio – e não quer cantar. Mais vai cantar – assegura. Também está de amarelo como os soldados, com um bivaque pequeno, ridículo, e bate pouco de cada vez, uma, duas, três porradas, depois espeta a moca na barriga do preto”. Há profunda contestação entre a tropa àquela cena de porrada. Marcelo Curto maneja a dureza da cena: “Dava só uns urros torcidos como o raio. A cara não mexia. Ao cipaio é que parecia estar-lhe a doer qualquer coisa”.

As colunas convocam a inevitabilidade da guerra, há o permanente ambiente de perigo, o coração em ânsias, as hastes do capim roçam o rosto e as fardas, sente-se o bater seco das espingardas na armação de aço da viatura e a prosa torna-se lírica, pesarosa, naquela madrugada fosca, já se abandonaram as viaturas, a coluna é uma fila de lagarta à procura de um pequeno rio, passou-se uma sanzala destruída, há aquela tensão de silêncios retesados, e depois rebentam as rajadas na encosta, é fogo de pouca dura. E tudo termina bem: “Voltamos para trás e seguimos pela encosta por onde viemos, duas armas fazem fogo para os montes do Pete, baixos em direcção à maldita metralhadora que ergue poeira amarela no capim, depois a encosta, descansamos até à caminhada para a posição em frente, exaustos, salvos”.

Os nomes que ele invoca são os da Angola de 1961: Caipemba, Quipedro, Quindaca, Nova Caipemba. São longos os estirões pela mata, e a tensão parece aliviar quando aparecem sinais de vida: “Passávamos sanzalas de capim crescido mas ralo, é capim novo, as árvores vão rareando, encontramos leiras de feijões, feijões mesmo, uma pequena horta, um alto e um vale do outro lado, subindo o olhar das bananeiras para o negro no fundão do vale via-se terra desmatada há pouco, pontos-pessoas-negras-calmas a fazerem pequenas fogueiras, alheados dos guerreiros que aos poucos surgiam e já puxavam da espingarda. Onde estava eu? Deslumbrado”.

Acompanham o dispositivo militar voluntários, muitos deles irão morrer. Há conversas com fazendeiros, há bailundos que estão na debulha do café. Nosso alferes é transferido para Nova Caipemba, assim descrita:
“Doze ou catorze casas de um lado e outro de uma rua larga de terra batida. Em cada um dos extremos o posto e a igreja. Dois comerciantes brancos, dos cinco que havia antes das makas.
Muitas fazendas à volta. No vale do Loge três estão ocupadas pelos gerentes, empregados dos donos que estão em Luanda. Aqui mais perto, duas ocupadas pelos voluntários e outra por um representante do proprietário (…) Distribuímo-nos pelas casas abandonadas. Ir buscar água para o lado da fazenda dos voluntários, aqui é arriscado. Os postos de vigia (oito) em cima das torres feitas de troncos e as rondas à noite são a maior distração destas paragens, depois da cerveja, dos churrascos e do jogo das cartas. Vai-se ao Uíge buscar correio, escoltam-se viaturas civis, são descidas íngremes, com as viaturas a patinar na lama”.

Os patrulhamentos são sempre apresentados de uma forma tensional, é nos pormenores que o leitor descansa, nos comentários brejeiros. Escreve sobre a condição em que se encontram: “As faces lavradas pela expectativa, o suor por baixo do capacete, as armas apertadas, as folhas de verde negro, os passos enlameados, entram na sanzala. Depois, o carreiro sobe, o capitão enfia meio do terreiro da sanzala, há para ali cabras assustadas”. Seguir-se-ão tiros e a descrição de tudo quando aconteceu: “Espio-me, as balas zunem, estou exausto e o sangue corre, ensopa o lenço do Martinho, o analfabeto, aflito, a chorar, apertando a perna do Leal, tapando a fonte de sangue, ninguém deu por nada, os tiros lá partem sem mim, ouço-os nas costas, na cabeça, viro-me e os ramos das árvores parecem quietos, o combate – agora é um emaranhado de tiros e o sangue do Leal, morto logo que regressámos, era inevitável”. E Martinho soluçava. O furriel de minas e armadilhas não foi precavido, ficou num escombro, a mina que montara inutiliza-o: “O homem sem mãos parece-me que as tripas à mostra. Agita-se o corpo negro feito de farrapos queimados a balançar. Seguram-no pelos sovacos, pelas pernas que arrastaram por cima das tábuas (…) A voz gordurosa do nosso furriel sem mãos, negro e vermelho, com pedaços de metal cravados no corpo, pequenos rios pelo negro, pelos farrapos, pela paz”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18695: Bibliografia de uma guerra (92): Um Barco Fardado, por Eduardo Brito Aranha; Roma Editora, 2005 (2) (Mário Beja Santos)

6 comentários:

Antº Rosinha disse...

Esta também foi a minha guerra, em que ninguém (as tropas) sabiamos o que fazer e como fazer, desde o soldado ao general.

Foi-se aprendendo aos poucos, por fim a malta cansou, ficou farto.

Penso que aquele esforço, no Congo contra a UPA, serviu pelo menos para os americanos (Kennedy) fizessem o que estava na moda...vietnam do norte/sul, coreia do norte/sul, e Angola do Norte e Angola do Sul.

Estava tudo preparadinho, todos sabem isso mas ninguém fala em tal.

Mesmo depois do Savimbi/Agostimh Neto...Bié/Luanda.

Valdemar Silva disse...

Rosinha
O meu compadre (já falecido) também tinha essa opinião e outra. Dizia que a ONU
ia resolver o assunto da guerra civil com três Angolas: a do Norte (UPA), a do Centro (MPLA) e a do Sul (UNITA) e estava convencido que assim aconteceria.
Ele era alfacinha de gema e tinha sido comerciante no norte/fronteira com o Congo e era 'todo' da UPA. Tinha-mos grandes discussões e nunca soube a razão dessa sua simpatia.

Valdemar Queiroz

Fernando de Sousa Ribeiro disse...

Muito gostaria eu de ler este livro, quanto mais não fosse para comparar a experiência vivida por Francisco Marcelo Curto, no início da guerra em Angola, com a minha, quase no fim da mesma guerra e quase nas mesmas paragens. As diferenças deveriam ser muitas.

Para se ter uma ideia do respeito que nos devem merecer aqueles que em 1961 partiram para a guerra no norte de Angola, pode-se chamar a atenção para o facto de que eles fizeram uma guerra para a qual não estavam minimamente preparados. Eles tinham sido preparados para uma guerra convencional, com grandes batalhas envolvendo exércitos de milhares de homens de um lado e do outro, e não para a situação caótica que foram encontrar em Angola. Tiveram que improvisar, tiveram que se desenrascar o melhor de que foram capazes. Muitos erros devem ter cometido e muitas baixas devem ter sofrido por causa desses erros. Vidas que se foram e não voltam mais. Famílias e famílias enlutadas.

O Mário Beja Santos chama a atenção para o facto de eles usarem capacetes. «Capacetes debaixo do sol tropical?! Só se fosse para assar os miolos!», dir-se-á. Pois eles usaram mesmo capacetes! É verdade! A minha companhia em Angola também tinha capacetes de ferro para serem usados nas operações, mas eles ficaram sempre dependurados na parede do fundo do depósito de material de guerra, pois nós fazíamos as operações de quico na cabeça.

Eles também não empunhavam espingardas automáticas G3, mas sim espingardas de repetição Mauser, que eram muito mais pesadas e só disparavam tiro a tiro, ainda que fossem mais precisas e tivessem maior alcance do que as G3.

É preciso lembrar também que a máquina logística das Forças Armadas na guerra de Angola não existia ainda, o que implicava falhas graves no abastecimento das unidades que avançavam a caminho do desconhecido.

Não existia igualmente o dispositivo militar que acabou por ser implantado, baseado em batalhões e companhias espalhados pelo território, em sistema dito de quadrícula, o qual foi depois reproduzido em Moçambique e na Guiné. O dispositivo de quadrícula foram eles que inauguraram.

Um pormenor que nunca vi referido em lado nenhum e que eu acho importante é a má qualidade de muitas das armas e munições que foram usadas nesse tempo. Muitos mortos e feridos foram provocados, nos primeiros anos da guerra, por granadas de morteiro que explodiam logo no interior do tubo, por pistolas-metralhadoras FBP que desatavam a disparar sozinhas ao mais pequeno abanão, por granadas de mão que rebentavam logo no momento em que saltava a alavanca, etc. Os relatórios de algumas operações dos primeiros anos da guerra que eu li em Angola estavam cheios de incidentes deste tipo, com um longo e arrepiante cortejo de baixas.

Enfim, estas são as minhas primeiras impressões a respeito do livro de Francisco Marcelo Curto. Fico a aguardar a continuação.

Fernando de Sousa Ribeiro


P.S. - Estive no norte de Angola, mas não conheci pessoalmente os locais referidos no livro. Embora me encontrasse perto, eu estive um pouco mais a sul. Mesmo assim, posso dizer que no decurso de uma operação estive pertíssimo (cerca de 10 km) de Quipedro, onde se encontrava uma companhia de angolanos (a C. Caç. 104/72, se não me engano) que (dizia-se) foram transferidos para lá de castigo por terem feito um levantamento de rancho. Se assim foi, custou muitas vidas o levantamento de rancho. Por exemplo, eles sofreram 6 mortos e um número de feridos de que não me recordo, só no "rescaldo" da operação referida. Numa outra operação, muito mais calma, também não andei longe de Nova Caipemba, em cujas proximidades a FNLA tinha uma das suas bases mais importantes em Angola, a chamada "central do Dange".

Valdemar Silva disse...

Rectifico de UPA para FNLA.

Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

Valdemar, em Angola há tribos tão grandes geograficamente e tão populosas, que podiam ser um grande país com lingua própria e riquezas próprias e educação própria.

Que foi o caso da revolta do Congo «os bacongos»e dos massacres de 1961 que atacavam os brancos invasores, e os bailundos, pretos do sul que eram contratados para trabalhar no café do norte de Angola.

Era a UPA apoiada pelos americanos cujo chefe era cunhado de Mobutu presidente do ex-Congo Belga que o Kennedy tinha uma certa predilecção por ele.

Aquela guerra de terrorismo que foi imposta e ensaiada por igrejas evangelistas, era mesmo só para o norte de Angola, exclusivamente, não tinha nada a ver a grande Angola de Cabinda ao Cunene.

O MPLA e na Guiné o Amílcar só avançam para o interior do mato, e não ficaram por uma guerra urbana, como fazia Mandela e outros, porque ficaram com medo a este tipo de terroristas.

Angola, etnicamente não tem nada a ver com a Guiné, em Angola algumas tribos podiam ser países maiores que a Guiné.

Não fosse a «nossa» teimosia do Salazar, não sei se existiria alguma coisa de pé.

Ninguém queria saber das colónias portuguesas nem de Portugal.

Eram os vizinhos todos, a ONU, os russos e os americanos, todos umas joias!

Deixaram a Africa com países tão dependentes da Europa que recorrem sempre à Europa que os outros já mal olham para eles, a não ser os chineses, que veem os africanos com os olhos em bico, não distinguem ninguém.

Manuel Bernardo - Oficial reformado disse...

Não concordo com estas linhas de António Rosinha: "(...) Que foi o caso da revolta do Congo «os bacongos»e dos massacres de 1961 que atacavam os brancos invasores, e os bailundos, pretos do sul que eram contratados para trabalhar no café do norte de Angola. (...)"
O "normal" são os "historiadores" omitirem os grandes massacres, de que terão resultado morte 1.200 brancos e 6.000 negros (segundo Aniceto Afonso e Matos Gomes terão sido "apenas" 800 brancos e 6.000 negros). Os invasores do N de Angola foram os bacongos vindos do Congo, drogados e dizendo que as balas dos brancos não matavam. Num texto editado pela CM Portimão (2005) em homenagem ao TCor Maçanita, eu acrescentava: "Na altura, um jornalista inglês afirmava que, nesses 3 dias (15/18MAR1961) 800 civis portugueses tinham sido mortos da maneira mais atroz: feitos assassínios em massa, após as violações de mulheres e crianças. Hoje já se encontra confirmado o apoio dado pelos EUA à UPA de Holden Roberto, que desencadeou a referida onda de grande violência (...). O agente da CIA em Lisboa teria avisado o MDN (que informou Salazar) da ofensiva armada da UPA, dez dias antes. Depois da consulta aos alemães foi enviado um telegrama, de Lisboa para Luanda que, segundo José Freire Antunes, "aparentemente perdeu-se num rodopio de informações conflituais". (...)