Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 30 de maio de 2018
Guiné 61/74 - P18695: Bibliografia de uma guerra (92): Um Barco Fardado, por Eduardo Brito Aranha; Roma Editora, 2005 (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Junho de 2016:
Queridos amigos,
Até quatro quintos, este livro devora-se com incontido prazer, pela irreverência, pelo uso com mestria das observações caricaturais e pelo uso bem doseado do sarcasmo nas descrições grotescas. A história de uma comissão minuciosamente pintada nos seus pequenos nadas em que todo o quotidiano daquele mundo ensimesmado possui nervo e se torna literatura de ponta e mole.
E subitamente o autor confessa que vai saltar uns meses atrás de outros, de repelão entramos na história de uma paixão falhada, num acontecimento revelado como pornochachada, e tudo arremata num banquete de críticas violentas ao quadro de oficiais da companhia.
Confesso que nunca lera uma coisa assim. No entanto o autor deixa esclarecido que esta CCAÇ tem almoços de confraternização desde 1998, diz que alguns nomes de pessoas foram alterados e que houve situações que devido a todo o tempo entretanto decorrido já puderam ser transcritas...
Será paródia ou realidade, o que ele diz?
Um abraço do
Mário
Um Barco Fardado, por Eduardo Brito Aranha (2)
Beja Santos
À partida, não há qualquer incompatibilidade em apresentar a guerra em cuecas, do lado caricatural, no avesso da disciplina e da ordem, expondo os participantes em traços grotescos, forçando, pela força do talento, o riso aberto. Quando se falha a operação, é um dó de alma, percebe-se à légua que o inventor da operação se espalhou estrepitosamente e daí o comentário mordaz de quem brinca com coisas sérias e não sabe brincar sai chamuscado.
Em “Um Barco Fardado”, Eduardo Brito Aranha, Roma Editora, 2005, conta a sua comissão em Angola com vários despautérios, por ali aparecem uns oficiais retratados como marionetas, militares que se vão desenrascando naqueles eremitérios, desvela-se o rocambolesco de operações mal ataviadas, com resultados praticamente inúteis e no mais alto grau do sofrimento humano. O que timbra este livro, o que agarra o leitor logo pela gola nos primeiros capítulos é a caricatura hábil, certeira, o tirar partido de múltiplas mediocridades, sem recurso ao excesso, porque o excesso mata o humor. Estamos em Angola, em N’Riquinha, a guerrilha não é muito forte mas está lá. Há um comandante zeloso, quer que todas as unidades construam hortas e jardins, que não descurem a higiene, que erradiquem o sarro agarrados aos sanitários com ácido muriático e que recomenda que se afixe por todos os lugares o poema “SE” de Kipling. Há conversas delirantes nas refeições da messe, o capitão e o médico contam anedotas ao desafio, à procura do libidinoso e da palhaçada alvar.
Tudo, ou quase, é parafraseado para poder fazer sorrir, as caçadas, os interrogatórios, as conversas dos pides, o Natal do Soldado. Até o capelão não escapa, sai dali enraivecido com as traquinices dos outros oficiais. São relatos atrás de relatos onde pontifica o isolamento, a escassez, a falta de sentido e os desencontros da guerra. O tempo escorre lentamente, o que permite ao autor pincelar as trivialidades, caso das noites de cinema:
“O ecrã, ao ar livre, era uma parede exterior da casa onde dormíamos. Uma noite escura e não de luar, como convinha para melhor visibilidade. A distância da máquina à parede teria que permitir ao mesmo tempo uma boa intensidade luminosa e uma plateia suficientemente ampla, onde também pudessem caber os miúdos do kimbo. A altura da mesa onde a máquina assentava tinha que ser bastante alta para que, durante a projeção, não aparecessem só cabeças. Arrastavam os bancos corridos do refeitório, os miúdos ficavam pelo chão na areia e o projetor era posto em cima de uma cadeira. Após o jantar, à volta das oito, a sessão começou, mas era um desassossego. Havia sempre alguém que tropeçava no fio estendido e lá ia a luz. A miudagem, que nunca parava quieta, levantava imenso pó e os soldados. Perante tal balbúrdia, o capitão admirava placidamente a cena. O filme arranca. Um documentário sobre a eleição de uma Miss Portugal. Só pernas de raparigas a desfilar. O pessoal assobiava imparável de excitação. Zás! Uma garrafa de cerveja contra o ecrã. Um líquido a escorrer entre as penas de uma das desfilantes. Galhofa generalizada. Um soldado salta para junto da luz do ecrã e finge apalpar o rabo a uma. Outro aproxima-se e finge copular com outra. O capitão manda apagar o projetor. Há urros e assobios”.
Brito Aranha é exímio a descrever o desenrolar das operações, o desacerto entre o que se pensa que está no mapa e o que se pisa no solo, e os detalhes: a falta de água, os terrenos enlameados, a confusão nos tiros das nossas tropas sobre as nossas tropas, o flagelo da chuva imensa, o sonho em regressar a qualquer preço ao local execrável de onde se partiu. Rotina atrás de rotina. Chegou a sua vez de partir de N’Riquinha para Mavinga:
“Era uma rua larga de cem metros de comprimento. Nas minhas costas a pista, a rua em frente. Ao fundo desta, no lado oposto, um pequeno vale com o rio Cubia. As casas que a ladeavam eram tipo vivenda, umas e abarracamentos de madeira, as militares”.
O administrador deposto é descrito como um Kirk Douglas embalsamado. E depois o regresso a Rivungo, onde existe uma das mais espantosas figuras da literatura da guerra:
“Será tempo de apresentar o tenente da marinha. Como o Cuando escorria por ali abaixo fazendo fronteira com a Zâmbia até entrar na África do Sul, essa fronteira ter-se-ia de patrulhar com uma lancha cuja tripulação andaria à volta de dez marinheiros. Por isso havia um destacamento da marinha. O tenente cavalgava de noite no seu Land Rover entre as cubatas, emitindo gritos de índio a atacar, disparava o revólver para o ar e, em derrapagem poeirentas, tentava atropelar os cães. A figura abaixo dele, numa desgraçada hierarquia de manicómio, era um sargento de 135 quilos. Queimava os dias a beber grades de cerveja, sentado numa cadeira de encosto junto ao rio e de pés mergulhados na água para não incharem, guardando as noites mais animadas para a roleta russa com os outros marinheiros”.
O tenente é rezingão e admoestador, voltando-se para a lancha dizia: “Um dia monto-me em ti e vou à Zâmbia foder aquilo tudo a tiro”.
E um dia aconteceu isso mesmo, meteu-se no sapo flutuante, e houve uma desgraça.
Temos novo regresso a N’Riquinha. Aquela comissão que se iniciara em Novembro/Dezembro de 1971 é registada com rigor até Agosto de 1972. Aqui temos de novo uma operação espantosa. Um texto digno da mais exigente literatura da guerra. É nesse preciso instante que ao autor, estamos na página 170, se apressou a caminhar para o termo de uma obra que se previa sumarenta. Escreve assim: “Estávamos em Agosto de 1972. Permanecemos em N’Riquinha até Maio de 1973. E tantas coisas semelhantes se repetiram nestes nove meses”. Este salto brusco, sabe-se lá, foi produto do manifesto cansaço. Mais nos informa que esteve ainda oito meses no Rivungo, e começou então o caminho do regresso a casa, que passou pelas Mabubas. Talvez por não haver guerra, por se ir regularmente a Luanda, vão começar descrições de espalhafatoso bródio: as orgias do capitão e do médico, uma menina filha de administradora com quem ele teve vontade de se envolver, mas a menina era virgem e não queria deixar de o ser. Estamos praticamente no fim do livro, chegou a hora da desbunda, das supremas acusações: os dois oficiais com mais responsabilidade dentro da companhia utilizavam as viaturas para introduzir prostitutas, dando-lhes albergue nas instalações militares. Mas há mais: “Esses mesmos oficiais já anteriormente tinham dado provas de menoridade, ou mesmo de escassez de valores morais, envolvendo-se, ainda no Cuando Cubango, numa obscura aquisição de peles de lontra a um desgraçado que, a troco de bebida alcoólica por um deles falsificada, era compelido a sacrificar os peludos mamíferos nadadores”. Todos os oficiais são passados ao crivo e bem chibatados: gente sem honra, falsificadores de assinaturas, ineptos, indecorosos, fraudulentos. E termina: “Durante cinco anos não tive coragem de reler o que escrevera. Estou no ano de 2003. E tudo se passou hoje”.
O mais curioso disto tudo é que o autor nos informa que a companhia a que pertenceu faz almoços de confraternização. Resta saber quem lá vai ou se quem lá vai acha graça aos termos que o autor utilizou para os retratar.
____________:
Nota do editor
Poste anterior de 23 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18668: Bibliografia de uma guerra (90): Um Barco Fardado, por Eduardo Brito Aranha; Roma Editora, 2005 (1) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 28 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18689: Bibliografia de uma guerra (91): "A GUERRA VISTA DE BAFATÁ – 1968-1970", livro da autoria de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec Inf); edição de autor, 2018
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário