Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 23 de maio de 2018
Guiné 61/74 - P18668: Bibliografia de uma guerra (90): Um Barco Fardado, por Eduardo Brito Aranha; Roma Editora, 2005 (1) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Junho de 2016:
Queridos amigos,
Ao princípio desconfia-se e estranha-se, depois entranha-se, porque o devaneio caricatural deste autor é de alta perícia. É um livro raro. Dir-se-á mais adiante que este médico começou a redigir com alma desabrida, talvez cheio de tempo para a minúcia e a argúcia. Depois cansou-se, acelerou a marcha, tentou até o erotismo sem graça nenhuma, despede-se com acusações grotescas a quem com ele diretamente conviveu.
Este livro, se acaso o autor tivesse um rebate de alma e se convencesse que começou por escrever um documento de valor incalculável, todo refeito poderia dar uma obra de estalo. Não é a primeira vez que leio livros que inicialmente fora redigidos pela porta do sublime e terminam nos esconsos perdidos. Voltas que a roda da fortuna dá...
Um abraço do
Mário
Um Barco Fardado, por Eduardo Brito Aranha (1)
Beja Santos
A razão especial por que aqui vou escrever sobre "Um Barco Fardado", por Eduardo Brito Aranha, Roma Editora, 2005, passado em Angola, é por considerar tratar-se de uma obra singularíssima, de uma arquitetura literária exemplar (há defeitos graúdos, mais adiante se explicará), empolgante, tão empolgante que a realidade se submerge perfeitamente na ficção.
Chegou-me o livro pela mão bondosa do nosso confrade Mário Vitorino Gaspar, a quem pedi que vasculhasse na Biblioteca da APOIAR os títulos que pudesse sobre literatura de guerra. Não gosto do título, sente-se que o autor andou às voltas à procura de inspiração, e serviu-se de uma imagem que está muito longe de ser feliz, classificativa para o conteúdo que nos oferece. Em barcos fardados andámos todos nós, quase um milhão, entre 1961 e 1975. Mas lançado na leitura, cedo me deixei surfar nesta esplêndida linguagem de alguém que sem imitar António Lobo Antunes ou José Martins Garcia esgrima com mestria a jocosidade, a manipulação da galhofa e as garrulices de um anti-herói.
Sabe-se que Eduardo Brito Aranha foi cumprir o serviço militar quando andava no segundo ano de Medicina e foi para a Angola onde permaneceu 26 meses. Temos a viagem sacramental depois de algumas recordações da infância e o desembarque do costume. Feitos os registos que cabem nas viagens de toda a gente, entramos na singularidade. Estamos a 6 de Novembro de 1971, alinham-se as viaturas na estrada de Catete, “Seiscentos quilómetros a engolir o asfalto preto da estrada, no chamado planalto, livre de atividades inimigas, apenas paisagem longa com rochedos de Adamastor onde todos os dias se via à mesma hora, pequenas povoações muito afastadas umas das outras, vendedeiras com cestos de bananas e abacaxis, macacos pretos a fugir dos rodados”. A viagem prossegue, desta feita de comboio: “Era uma gigantesca larva encimada de uma fantasmagórica cabeça de rebenta minas, testa de ferro com toneladas de sacos de areia, que penetraria ao longo do paralelo 12, de Nova Lisboa até ao Luso (hoje Huambo), 29 horas de vigilância dos esbugalhados olhinhos dos pequenos lusitas”. Assim se chega ao Luso, deste modo apresentado: “Essa cidade quadriculada, esse Campo de Ourique desterrado e já sem personalidade. Uma meia dúzia de cafés de militares, no intervalo entre dois tiros, a esticar as botas para as sucessivas engraxadelas dos meninos negros que reptilizavam entre as mesas, se quer graxa ou menina, e com o pano do brilho a fazer batuque as biqueiras para mais uma gorjeta”. A 11 de Novembro chegam a N’Riquinha, na planície do rio Cuando. Como se estivesse a escrever no seu diário, pode ler-se: “Não sei como hei-de pertencer a esta terra”. É aqui que começa uma das raridades deste livro, minúcias de um observador que sente a compulsividade de que as partes fazem um todo, do género: “Segue-se a pratada de batatas com ovo cozido esfarelado por cima, peles de bacalhau, espinhas, aqui e além a órbita luzidia de uma azeitona cansada. Cerveja de acompanhamento e para empurrar. Ao fim, tal como os aperitivos, de paga rotativa, o ritual do café solúvel, batido, batido, batido, até a mão doer e a colher ganir no pirex da chávena, o brandy Borges, o fumo às rodelas pelo ar, os arrotos, as anedotas repetidas, as histórias do tempo em que ainda éramos nós. Bom proveito, meus filhos, que daqui a uma hora está tudo com a mesa fome e não há segundo jantar”.
A companhia espalha-se pela quadrícula: um pelotão partiu para Rivungo, outro para Mavinga. Chegou a hora da primeira escolta, de se embrenharem pela mata, com a areia solta das picadas cheias de raízes, lá vão com os ossos a saltar. Desvela contrassensos da burocracia, enviesamentos de decisões que se sobrepõem à realidade: “O capitão fez notar ao comandante de batalhão, sediado no Cuito Cuanavale que, uma vez que o pelotão do Araújo no Rivungo e o do João em Mavinga, N’Riquinha ficaria reduzida ao meu pelotão e ao do Bernardo. Se um partisse para uma operação fora do aquartelamento, que normalmente demorava 3 a 5 dias, quem ficaria a guarnecer o aquartelamento quando se saísse para a água e para a lenha?”.
O capitão é algarvio e apresenta ao seus alferes as tarefas que te por diante: “Estamos entalados num território de área igual à do Algarve. Só que é ao alto. À direita, a Leste, fica a Zâmbia, por onde os gajos entram. A Norte fica a zona de acção de Ninda, a Oeste a de Mavinga e a Sul da nossa zona, depois do destacamento do Rivungo, começa a zona de Luiana. A partir daí já é o Sudoeste Africano que pertence à África do Sul. A nossa missão aqui é simples. Temos de policiar as entradas dos grupos de guerrilheiros, atacar-lhes alguns pontos onde estão sediados”.
São raras as obras em que se enredam perfeitamente o sarcasmo e as atividades militares, diga-se em abono da verdade que muitas vezes se caminha no fio da lâmina para não ser chocarreiro, venial ou estupidamente agressivo. E nesta trama, o autor desembaraça-se para proveito do leitor. Temos aqui o dia-a-dia de um destacamento, a apresentação dos diferentes protagonistas, o colorido do ambiente cola-se-nos, aquela África existe mesmo: “A natureza durante o dia parece esmorecida de calor para, durante a noite, acordar numa pujança de pássaros que piam como que aflitos, voos invisíveis de adejos de um lado a outro do negro do céu, roncos e uivos de animais noctívagos, restolhadas nos arbustos à nossa volta, zumbidos de mosquitos em agressivas investidas e, sempre, sempre trovoadas longínquas no horizonte para os lados da Zâmbia no seu incessante relampejo estroboscópico”.
Aqui e acolá chegam colunas, apresentam-se tropas. Há pormenores burlescos, a obsessão do comandante em que ajardina o destacamento, e daí a risota farta na descrição: “A criação de um jardim naquele deserto fez o capitão nomear um furriel das bandas de Felgueiras e com bom passado hortícola que por sua vez escolheu uns tantos miúdos negros daqueles já com experiência de ir à água de ser pagos a sopa. A essa mesma equipa também se associou um cargo, encarregando-se todos de manter uma horta em constante produção, a qual já existia e era regada por um poço com picota que, nos intervalos das chuvas, fornecia uma caldibana leitosa de argila impossível de beber mas suficientemente boa para nutrir as raízes de tudo quanto fosse legume”. É um arranque de livro em que como muito raramente somos envolvidos pela lufa-lufa centenas de homens fotografados por um autor cheio de verve de observador. A tal ponto que quando o comandante de batalhão vai visitar o destacamento dá de frente com o médico que recebe uma áspera repreensão para se ir imediatamente vestir, aparecera de cabeça descoberta, meias brancas e de calções sem cinto. A obsessão do comandante por um jardim em N’Riquinha volta a manifestar-se, quer gerânios, catos, pneus pintados e admoesta o capitão: “Nunca ouviu dizer que os olhos comem mais que a boca? Uns pretitos a quem se pague com uma sopa e um pão, que para eles já vale muito, servem para estrumar com os dejectos das fossas e estes canteiros aqui. Depois, umas sementes de umas flores mandadas comprar a um dos sargentos que vá ao Luso, enfim… Olhe, no Cuito, o nosso major Tamerlão até goiabeiras lá pôs”.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 11 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18513: Bibliografia de uma guerra (89): Entender o pan-africanismo para melhor conhecer a guerra em África (2) (Mário Beja Santos)
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4 comentários:
“Seiscentos quilómetros a engolir o asfalto preto da estrada, no chamado planalto, livre de atividades inimigas,..."
Algum desse asfalto, espalhei-o eu, como quem diz, sem actividades inimigas.
Que maravilha! Com todo o respeito por quem lá ficou.
Estas eram as chamadas "terras do fim do mundo" riquíssimas em caça, antes das armas da nossa tropa, de uma ou outra arma dos nossos GE's, pouca água, mas os poucos rios tinham uma água límpida filtrada pelo solo arenoso, (semi-deserto).
Até 25 de Abril, "fazer hortas e jardins", seria um bom passatempo, segundo o tal comandante, um bom passatempo para vencer uma pasmaceira infernal.
O 25 de Abril apanhou-me nessa região, de Land Rover e teodolito e uma tenda de campanha, durante os últimos 3 anos.
Foi nessa região que se deu a celebérrima "batalha do Cuito" que se diz como a maior guerra moderna em África entre a Unita e MPLA.
Não havia necessidade, como diz o outro.
Uma guerra esquecida, brutal,a do Cuito Cuanavale que mudou, para sempre, a história da África Austral... Sei de um médico, angolano, meu amigo, que lá esteve, e que amputou pernas e braºos, a sangue frio, cono se fazia na idade média...
https://pt.wikipedia.org/wiki/Batalha_de_Cuito_Cuanavale
Esta guerra foi esquecida, mas não para os angolanos..
Já há um grande monumento no Cuito Canavale a comemorar uma victória do exército angolano (FAPLA) contra os Sul-Africanos.
Só que anda a ser contada de uma maneira pelo MPLA (governo) e de outra maneira pela oposição UNITA que tinha as FALA, que também são angolanos, e que se fartaram de dar tareia em cubanos que nem se conhecem estatísticas de quantos lá ficaram.
Esta Guerra com a intervenção da Rússia coincidiu com a guerra da Rússia no Afeganistão, e o final das duas foi quase simultâneo (1987/88) e coincidente com a perestroica.
Foi o fim do apartheid e o fim da guerra fria.
Tanta luta e tanta coincidência, foi esgotamento total.
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