sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19095: O nosso livro de visitas (196): Comentário de Fernando Sousa Ribeiro, antigo combatente em Angola, deixado no nosso Blogue

Mapa de Angola
Com a devida vénia a uniaonet.com

O nosso camarada Fernando de Sousa Ribeiro, antigo combatente em Angola, deixou este comentário no Poste Guiné 61/74 - P19087: Bibliografia de uma guerra (93): “Tu não viste nada em Angola”, por Francisco Marcelo Curto; Centelha, 1983 (1) (Mário Beja Santos):

Muito gostaria eu de ler este livro, quanto mais não fosse para comparar a experiência vivida por Francisco Marcelo Curto, no início da guerra em Angola, com a minha, quase no fim da mesma guerra e quase nas mesmas paragens. As diferenças deveriam ser muitas.

Para se ter uma ideia do respeito que nos devem merecer aqueles que em 1961 partiram para a guerra no norte de Angola, pode-se chamar a atenção para o facto de que eles fizeram uma guerra para a qual não estavam minimamente preparados. Eles tinham sido preparados para uma guerra convencional, com grandes batalhas envolvendo exércitos de milhares de homens de um lado e do outro, e não para a situação caótica que foram encontrar em Angola. Tiveram que improvisar, tiveram que se desenrascar o melhor de que foram capazes. Muitos erros devem ter cometido e muitas baixas devem ter sofrido por causa desses erros. Vidas que se foram e não voltam mais. Famílias e famílias enlutadas.

O Mário Beja Santos chama a atenção para o facto de eles usarem capacetes. Capacetes debaixo do sol tropical?! Só se fosse para assar os miolos!, dir-se-á. Pois eles usaram mesmo capacetes! É verdade! A minha companhia em Angola também tinha capacetes de ferro para serem usados nas operações, mas eles ficaram sempre dependurados na parede do fundo do depósito de material de guerra, pois nós fazíamos as operações de quico na cabeça.

Eles também não empunhavam espingardas automáticas G3, mas sim espingardas de repetição Mauser, que eram muito mais pesadas e só disparavam tiro a tiro, ainda que fossem mais precisas e tivessem maior alcance do que as G3.

É preciso lembrar também que a máquina logística das Forças Armadas na guerra de Angola não existia ainda, o que implicava falhas graves no abastecimento das unidades que avançavam a caminho do desconhecido.

Não existia igualmente o dispositivo militar que acabou por ser implantado, baseado em batalhões e companhias espalhados pelo território, em sistema dito de quadrícula, o qual foi depois reproduzido em Moçambique e na Guiné. O dispositivo de quadrícula foram eles que inauguraram.

Um pormenor que nunca vi referido em lado nenhum e que eu acho importante é a má qualidade de muitas das armas e munições que foram usadas nesse tempo. Muitos mortos e feridos foram provocados, nos primeiros anos da guerra, por granadas de morteiro que explodiam logo no interior do tubo, por pistolas-metralhadoras FBP que desatavam a disparar sozinhas ao mais pequeno abanão, por granadas de mão que rebentavam logo no momento em que saltava a alavanca, etc. Os relatórios de algumas operações dos primeiros anos da guerra que eu li em Angola estavam cheios de incidentes deste tipo, com um longo e arrepiante cortejo de baixas.

Enfim, estas são as minhas primeiras impressões a respeito do livro de Francisco Marcelo Curto.
Fico a aguardar a continuação.

Fernando de Sousa Ribeiro

P.S. - Estive no norte de Angola, mas não conheci pessoalmente os locais referidos no livro.
Embora me encontrasse perto, eu estive um pouco mais a sul. Mesmo assim, posso dizer que no decurso de uma operação estive pertíssimo (cerca de 10 km) de Quipedro, onde se encontrava uma companhia de angolanos (a CCaç 104/72, se não me engano) que (dizia-se) foram transferidos para lá de castigo por terem feito um levantamento de rancho.
Se assim foi, custou muitas vidas o levantamento de rancho. Por exemplo, eles sofreram 6 mortos e um número de feridos de que não me recordo, só no "rescaldo" da operação referida.
Numa outra operação, muito mais calma, também não andei longe de Nova Caipemba, em cujas proximidades a FNLA tinha uma das suas bases mais importantes em Angola, a chamada "central do Dange".
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17868: O nosso livro de visitas (195): José Claudino da Silva, ex-1º cabo condutor auto, 3ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74, autor do livro de ficção "Desertor 6520" (Lisboa, Chiado Editora, 2016, 418 pp.)

1 comentário:

Fernando de Sousa Ribeiro disse...

Fiquei pasmado ao ver um meu comentário "promovido" a post. Não esperava nem merecia tal. Aproveito para tecer algumas considerações a respeito do mapa de Angola que o encabeça e que é bastante recente. Os nomes de muitas cidades e vilas constantes do mapa já não são os nomes que eram usados no tempo colonial. Aproveito, pois, para fazer a correspondência de alguns desses nomes aos nomes antigos, a que muitos de nós se habituaram.

SOYO - Santo António do Zaire
M'BANZA CONGO - São Salvador
N'ZETO - Ambrizete
UÍGE - Carmona
N'DALATANDO - Salazar
SAURIMO - Henrique de Carvalho
SUMBE - Novo Redondo
LUAU - Teixeira de Sousa
LUENA - Luso
KUITO - Silva Porto
HUAMBO - Nova Lisboa
LUMBALA N'GUIMBO - Gago Coutinho (onde foi médico militar o escritor António Lobo Antunes)
MENONGUE - Serpa Pinto
LUBANGO - Sá da Bandeira
NAMIBE - Moçâmedes (esta cidade voltou recentemente a chamar-se Moçâmedes, nome pelo qual a população local continuou sempre a chamá-la; agora o nome Namibe aplica-se apenas à província de que Moçâmedes é capital)
TÔMBUA - Porto Alexandre
XANGONGO - General Roçadas
ONDJIVA - Pereira d'Eça

Muitos dos nomes em maiúscula já eram usados no tempo colonial para designar os concelhos correspondentes às vilas e cidades com os nomes em minúscula. Quero dizer com isto que muitos concelhos em Angola tinham um nome (africano), enquanto a vila ou cidade que era sede desse concelho tinha outro nome (português). Por exemplo, a cidade de Sá da Bandeira era sede do concelho do Lubango, a cidade de Serpa Pinto era sede do concelho de Menongue, a cidade de Henrique de Carvalho era sede do concelho de Saurimo, a Vila General Freire era sede do concelho de Nambuangongo, etc. Com a independência, as sedes de município receberam o nome africano que os respetivos municípios já tinham. É claro que as sedes de município que já tinham nomes africanos conservaram-nos.

A divisão administrativa de Angola mudou de nomenclatura com a independência. Os distritos passaram a ser chamados províncias, os concelhos passaram a ser chamados municípios e os postos administrativos passaram a ser chamados comunas. Entretanto, o antigo distrito da Lunda foi dividido em duas províncias: Lunda Norte e Lunda Sul. O antigo distrito de Luanda também foi dividido em duas províncias: Luanda e Bengo. O governo angolano está também a pensar dividir em três o antigo distrito e atual província do Moxico, que por si só é maior do que Portugal inteiro!

Ah, é verdade. No mapa, Cabinda está fora do sítio.