segunda-feira, 1 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25705: Notas de leitura (1705): Recordações da guerra civil de Bissau, pelo então Vigário-Geral da Diocese, Padre João Dias Vicente (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Trata-se do testemunho de um responsável franciscano que viveu do princípio ao fim a guerra civil, acompanhou as conversações onde esteve envolvido Dom Settimio, assistiu às pilhagens e destruições, viveu debaixo de fogo, colaborou na ajuda humanitária, invoca com propriedade o acolhimento que as missões deram aos fugitivos de Bissau enquanto troavam os canhões, de um lado e do outro. Dir-se-á que não há neste apontamento de memória absolutamente nada de novo quanto aos factos militares, mas compreende-se que este religioso queria expor à nossa lembrança o esforço em prol da paz e da mitigação do sofrimento humano nesse período trágico, ainda não se sabe exatamente o número de mortos que provocou, só se conhece o balanço da perda de património que empobreceu ainda mais um país que continua à espera de ver a palavra desenvolvimento com expressão real no quotidiano.

Um abraço do
Mário



Recordações da guerra civil de Bissau, pelo então Vigário-Geral da Diocese

Mário Beja Santos

O Padre João Dias Vicente, que foi Vigário-Geral da Diocese de Bissau durante a guerra civil publicou as suas recordações na revista Itinerarium, publicação semestral de cultura publicada pelos franciscanos de Portugal, n.º 228, julho/dezembro de 2022, referentes à guerra civil.

Começa por nos dizer: “Marcou-me profundamente por vários motivos: nunca ter experimentado ao vivo a sensação inquietante de estar debaixo de fogo real, contudo o que isso significa de ansiedade, de revolta interior e de habituação ao máximo risco.”

Nem todos os dias houve guerra durante aquele período que foi de junho de 1998 a maio de 1999, quando Nino assinou a sua capitulação. Havia uma clara alternância de fogo violento e paragens promissoras de cessar-fogo, de acordo com os diferentes protocolos assinados por ambas as partes, e nunca respeitados. O palco central da guerra foi Bissau, troavam os canhões e a população habituou-se a fugir para fora da cidade e a regressar logo que as armas se calavam, temiam, justificadamente, ver as suas casas e pilhadas. Não esconde que reserva no seu testemunho o papel revelante da Igreja Católica (sobretudo do seu bispo, Dom Settimio Ferrazzetta) no esforço de fazer calar as armas e procurar uma solução dialogada para o conflito. Lembra-nos que houve três acordos de paz, mal eram assinados, pouco tempo depois desrespeitados: o da cidade da Praia, em 26 de agosto de 1998; o de Abuja, Nigéria, em 1 de novembro do mesmo ano; e o de Lomé, no Togo, em 17 de fevereiro do ano seguinte.

As hostilidades foram desencadeadas pela chamada Junta Militar em 7 de junho, nesse dia morreram em Brá o guarda-costas e o chefe do protocolo do Presidente Nino. A causa direta e próxima fora a destituição de Ansumane Mané do cargo de Chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas com o pretexto de estar implicado num negócio escuro de venda de armas aos separatistas do Casamansa. A Junta Militar revelou-se imediatamente eficaz, desencadeadas as hostilidades, Ansumane e as suas tropas garantiram o domínio dos postos militares mais decisivos: o quartel militar de Brá com os seus paióis de armamento; o aeroporto internacional de Bissau; e a estrada do aeroporto para Safim, única estrada para sair da capital até ao interior do país. Apercebendo-se da debilidade em que se encontrava, Nino apela à ajuda militar dos países limítrofes, virão tropas do Senegal e Guiné Conacri, aquele que foi a maior lenda da guerrilha não entendeu que estava a cometer o maior erro diplomático-militar de sempre.

O autor vai-nos dando conta de que se foi encontrar com Dom Settimio em Pirada e como se irão encaminhando até Bissau, o bispo começou logo diligências para a paz, conversando com os dois grupos em contenda, resultado nulo. Constituiu-se a Comissão de Cidadãos de Boa Vontade, era uma tentativa de ponte para o diálogo. O bispo conversa com a Junta Militar, esta exige a saída imediata das tropas estrangeiras. Regista-se fogo intenso das forças leais a Nino, alguns pontos de Bissau são bombardeados, a população foge, espavorida.

O bispo desdobra-se em reuniões, mas nesta fase o Governo manifestava-se ainda muito seguro de que tudo ia ser resolvido pelas armas. Nino é presidente numa capital semideserta, grande parte da população abandonou precipitadamente a cidade, uns foram para as missões próximas, os estrangeiros partiram para os seus países, iniciaram-se as pilhagens, parecia que se ia instalar o caos. Em 2 de agosto, o bispo manda abrir a Catedral ao público, outras igrejas seguiram-lhe o exemplo, queriam dar ânimo a quem sofria. Os ladrões não pouparam as instituições diocesanas, assaltaram os contentores com produtos variados de alimentação, materiais de construção destinados às missões, foi um saque quase total.

O autor conta detalhadamente como a Igreja procurou instituir uma ajuda humanitária eficaz. E dá-nos conta da evolução da guerra desde o cessar-fogo assinado em Cabo Verde até ao acordo de paz assinado em Abuja. No decurso das conversações, era argumento dominante da Junta Militar exigir a saída das tropas estrangeiras como condição para um acordo de paz definitivo, a parte fundamental recusava. E a guerra recomeçou em 9 de outubro, novas fugas da população com os sacos às costas. A 10, houve uma marcha pacífica de jovens e adultos desde Bissau até ao aeroporto. A 19, voltaram a vomitar fogo as armas pesadas. A 31, Nino decretou o cessar-fogo unilateral. Por essa altura, já quase todas as forças guineenses do Governo e uma parte significativa dos antigos combatentes se tinha passado para o lado da Junta Militar. Ansumane Mané concordou em respeitar uma trégua de 48 horas para que Nino verificasse a sua proposta de paz. As conversações prosseguiram em Banjul (Gâmbia), onde se deu o primeiro frente-a-frente entre Nino e Ansumane. Segue-se o acordo de paz de Abuja que estipulava a retirada total das tropas estrangeiras da Guiné-Bissau com o envio simultâneo de uma brigada de supervisão de cessar-fogo, a ECOMOG, o braço-armado da CEDEAO. A população começou timidamente a regressar às suas casas.

Segue-se a exposição sobre a evolução da guerra entre o acordo de Abuja até ao acordo de Lomé. Formou-se um Governo de Unidade Nacional e Francisco Fadul foi nomeado Primeiro-Ministro desse Governo. A guerra voltou a 31 de janeiro, pelas 19h30 caiu uma bomba sobre a varanda do refeitório da Cúria Diocesana, por milagre ninguém morreu ou se feriu. Seguem-se meses turbulentos, inesperadamente morre Dom Settimio. E assim se chegou aos acordos de Lomé, em 17 de fevereiro. Ansumane e Nino abraçam-se, há acordo sobre a saída das tropas estrangeiras. E temos agora a evolução da guerra desde este acordo em Lomé até à derrota final do Presidente Nino (período que vai de 17 de fevereiro a 10 de maio).

Com atraso significativo, tomou posse o Governo de Unidade Nacional, saíram as tropas estrangeiras, é publicado o relatório sobre a venda de armas que ilibou Ansumane e responsabilizou, sem margem para equívoco, a clique do Presidente Nino. Em março, começaram a ser desarmadas as tropas dos dois lados. O Conselho de Segurança da ONU aprovou a criação da Missão das Nações Unidas para o Apoio à Reconstrução da Paz na Guiné-Bissau (UNIOGBIS).

Inopinadamente, considerando a Junta Militar que o depósito de armas encontrado no aeroporto era a prova material de que Nino se recusava a aceitar que a sua Guarda Presidencial fosse desarmada recomeçou os bombardeamentos, à tarde as tropas da Junta Militar atacaram e venceram rapidamente os jovens militares (chamados os Aguentas) que defendiam o Palácio Presidencial. Depois de algumas peripécias, Nino pediu asilo político a Portugal, apresentou-se na embaixada portuguesa e assinou a sua rendição incondicional. Terminava a guerra civil e foi escolhido para Presidente da República interino o Presidente da Assembleia Nacional Popular Malam Bacai Sanhá. Tempos depois entrava-se numa nova onda delirante, era eleito como presidente um populista Kumba Yalá. A Guiné voltava a recuar.

Um relatório idóneo, foram acontecimentos que merecessem ser lembrados, compreende-se que um direto protagonista nas conversações, alguém que viveu ao lado de um bispo profundamente estimado pelos diferentes credos religiosos, quisesse deixar o testemunho do que viveu e sentiu.

Imagem icónica, mil vezes repetida, mostra o desaire das forças estrangeiras que vieram apoiar o Presidente Nino
Malam Bacai Sanhá, Presidente da Assembleia Nacional Popular, nomeado Presidente da República interino
Ansumane Mané e João Bernardo Vieira (Nino)
Cena da guerra civil, soldado leva um ferido às costas
Funeral durante a guerra civil
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Nota do editor

Último post da série de 28 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25696: Notas de leitura (1704): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1864 e 1865) (9) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Valdemar Silva disse...

O Francisco Fadul, julgo que em 1980, foi estagiário na Secção de Contencioso-Laboral na empresa onde trabalhei, mas não cheguei a conhecer.

Valdemar Queiroz