segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23870: Manuscrito(s) (Luís Graça) (215): Verão de 68


O célebre cartaz  do Tio Sam, a recrutar a rapaziada para a guerra, c. 1917, 
da autoria de James Montgomery Flagg (1877–1960). 
Imagem do domínio público. 
Cortesia de Wikipedia

Verão de 68


Não havia moscas em agosto,
Apenas a angústia difusa da folha de papel 
Em branco,
A barra azul 
Rente ao muro branco dos moinhos 
De vento,
O frágil cordão dunar a separar-te 
Do Novo Mundo,
Quando há 150 milhões de anos se  ia a Nova Iorque,
A pé,
Ou montado num pachorrento dinossauro do Jurássico Superior...
E não conhecias o terror
Do T-Rex nem do instrutor do quartel.

E mais à frente a esplanada da praia,
A mesa, a chávena de café, o copo de água,
A bandeira verde ao rubro
Sob o sol de bronze.

O dia perfeito de verão,
Num qualquer fim de semana de agosto de 68,
Se não fora a inútil viagem
Pelo labirinto dos dias
Que faltavam para o juramento de bandeira.

Para quê escrever, enfim!,
Se tudo já estava inscrito
Na ordem natural das coisas ?!

Passava um veleiro 
Branco 
Em direção ao sul, ao sol, ao sal,
Indiferente à tua angústia
Que era branca, sem ser mortal,
Indiferente ao batom
Vermelho
Que manchava a chávena de café.
Ou era vermelho de sangue ?!...

Um homem acabava de ser fuzilado
Contra o muro branco, ou à queima-roupa,
Pormenor de somenos importância, dizia o repórter,
Na televisão a preto e branco.
Tinhas pedido um café
Expressamente expresso, escaldado, por favor.

O vermelho estava fora da tua paleta de cores,
Mesmo a distante bandiera rossa
De todas as utopias.
A liberdade, sim, mas por favor
Sem os canhões, nem as barricadas.
La libertà... ma senza guerra,
Sem o parto distócico da História.

Só o café escaldado se pedia, nesse tempo, por favor,
O maio de 68 já estava distante,
Paris era uma miragem, 
Para lá dos Pirinéus da tua prisão,
O preto era a tua cor pré-definida,
De existencialista diletante,
A camisola de lã preta,
As luvas pretas,
A boina basca preta,
A esferográfica de tinta preta,
Mas no fim da viagem
A angústia era branca como a cal 
Da parede,
Como a folha de papel em branco.

Et le néant était noire,
Por uma simples razão estética,
Que nada tinha haver com o lado errado ou certo
Do absurdo.

O cabelo rapado como mandava o regulamento,
A tropa chamava os mancebos de 47:
I wanto you to the U.S. Army,
Que a Pátria precisava de ti, meu rapaz.
Como precisou do teu pai e do teu avô.
O Vietname, ali tão longe e tão perto.

Ao menos, hoje, que bom!,  
Já há o soldado-robô.

Praia da Areia Branca, Lourinhã, agosto de 2022
__________

Nota do editor;

Último poste da série > 7 de novembro de  2022 > Guiné 61/74 - P23768: Manuscrito(s) (Luís Graça) (214): a (ha)ver navios

2 comentários:

Eduardo Estrela disse...

Palavras que marcam o quotidiano intemporal.
Belo poema Luís!
A Pátria precisa sempre de nós, mesmo que seja para defender princípios obscuros saídos dos crânios de quem dirige as sociedades.
Espero que a tua recuperação continue e que te vejas livre da fisioterapia com brevidade.
Um santo Natal para ti e para quem te é querido, extensivo a todos os camaradas do blogue e suas famílias.
Abraço fraterno
Eduardo Estrela

Anónimo disse...

Palavras de ontem e de hoje, de sempre, afinal.
Quando nos desentendemos com o vizinho, convocamos a nossa energia ou o nosso bem senso, a nossa impetuosidade ou, de preferência, a nossa serenidade, mas quando os que governam os povos e os seus séquitos se dilatam nos seus egos e adotam estratégias confrontacionais, convocam os cidadãos para a fogueira que espoletaram.

Um abraço e boa recuperação, amigo e camarada Luís.

Carvalho de Mampatá