1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
Camaradas que se separaram na Guiné
Camaradas,
Nesta fase da vida, que já vai longa, há momentos que nos enchem de saudade e, sobretudo, de uma amizade que persiste, não obstante o tempo passado.
No pretérito dia 18 de março, 2023, celebrámos o 50º Aniversário do 1º Curso de 1973 de Operações Especiais/Ranger, em Lamego, tal como havia antes anunciado, sendo que por lá revivemos instantes que jamais esqueceremos. Foi, no fundo, um “folclore” de emoções, tendo em linha de conta os laços que nos unem de uma especialidade que nos terá dado um outro traquejo para enfrentar a guerra Colonial, ou do Ultramar.
Neste encontro, marcado pela excelência entre camaradas e alguns dos seus familiares, revi o camarada Pedro Neves, almoçámos lado a lado, tal como demonstra a fotografia, sendo que o “peso da idade” mui dignamente transformou os nossos corpos.
Aqui vos deixo um texto do meu livro “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL – GUINÉ-BISSAU 1973/1974 MEMÓRIAS DE GABU”, Editora Colibri, Lisboa, editor Fernando Mão de Ferro
Camaradas que se separaram na Guiné
Pedro Neves foi para Binta, eu para Gabu
No QG, em Bissau, com o Pedro Neves no dia em que chegámos à Guiné – 2 agosto de 1973
Atesta a lonjura do tempo que o rótulo de uma amizade que teima em permanecer imutável entre dois velhos camaradas de armas, atravessam géneses de uma eternizada amizade e predispõem-se de forma clara a tecer comentários vantajosos entre sexagenários que se conheceram nos verdes de uma juventude irreverente, onde a sua condição militar ditou uma estima que se mantém, e manterá, indestrutível.
Reconheço que durante a minha vida militar travei inúmeros conhecimentos com camaradas e desse rol de personagens com os quais mantive contactos pessoais, nesses velhos tempos, alguns deles existem que permanecem patentes na montra das nossas excêntricas recordações.
Agora, o meu memorial para um justo debate, recai num velho camarada de nome José Pedro Neves. Um amigo com o qual partilhei momentos inolvidáveis por terras de Lamego. Fomos instruendos do 1º curso de 1973 de Operações Especiais/Ranger e instrutores do 2º curso, sendo que ambos demos instrução ao 1º grupo de cadetes, onde tivemos como aspirante Daniel Pereira, um rapaz de Cabo Verde que, tal como eu, fizemos a recruta no CISME, em Tavira.
Ditou a bolinha mágica da fortuna, ou azar, que fossemos contemplados com uma comissão na Guiné. Uma mobilização que, como era suposto, se apresentava como cruel. Tratava-se do princípio de uma nova rota militar e que usurpava maquiavélicas coincidências para dois jovens que não conseguiram ludibriar a malvadez do futuro.
Aconteceu que a ida para terras de além-mar fosse plena de coincidências. Comparecemos ao embarque no aeroporto de Figo Maduro, só que o voo foi suspenso, sendo que a viagem se protelou por vários dias. “Desarmado” e boquiaberto com a situação deparada, o Pedro, um homem de coração enorme, prontificou-se a solucionar a condição de um camarada ranger, entretanto desapossado de um lar para pausadamente aguardar pela ordem de partida.
“É pá, não tenhas problemas, ficas na minha casa”. Uf, que alívio, pensei. E lá fomos a caminho do seu lar. Os pais do Pedro receberam-me com pompa e circunstância, dormi, comi e bebi, passeámos pela capital e nada me faltou nos dias antes do embarque. Obrigado pela hospitalidade e sobretudo sensibilidade!
Partimos então para a ex-província ultramarina no dia 2 de agosto de 1973, no mesmo avião que descolou de Figo Maduro, Lisboa, e partilhámos o mesmo banco da nave, saboreámos a refeição servida a bordo, bebemos o fresco líquido (whisky) de um copo e trocámos ideias sobre a sorte que nos esperava na guerra.
Chegados ao aeroporto de Bissalanca fomos depois conduzidos para as instalações militares do QG, em Bissau. A receção foi cordial. Faltaram as passadeiras vermelhas para receber em apoteose os ilustres mancebos acabadinhos de aterrar em solo africano. Os barracões, como recordam aqueles que por lá passaram, estavam entolhados de camaradas, alguns já velhinhos na guerra e os recentes “piriquitos”. Notava-se, a olhos vistos, que os brilhos das divisas dos novos guerrilheiros impunham ordem numa hierarquia que a plebe muito bem conhecia.
As camaratas, com camas sobrepostas, sugeriam o sentimento de uma desolação profunda sobretudo para os recém-chegados. Procurámos o poiso, acomodámos a nossa bagagem e envidámos esforços no sentido de uma visita ao centro de Bissau. O objetivo era conhecer novas paragens, aliás, tal como sucedeu.
Entretanto fomos informados do horário das refeições que eram servidas no refeitório da messe de sargentos, defronte às nossas esplendidas “residências”, sendo que pelo meio das amenas cavaqueiras lá surgiam as brincadeiras do “piu-piu”. Sons jocosos emitidos pela velhada que parecia estar de partida para a metrópole depois de uma comissão que não lhes terá dado tréguas.
Lembrando essas famosas camaratas no QG, alcunhadas como o Biafra, recordo que eram uma espécie de tudo ao monte e fé em Deus. Algumas das camas eram pomposamente ornamentadas com redes mosquiteiras. A malta de passagem pelas instalações colocava as artimanhas e por lá ficavam. Serviam depois de abrigos para os novos hóspedes. O zumbido agudo noturno dos mosquitos era ensurdecedor. Ali deparamo-nos de pronto com o clamor da primeira batalha.
Chegou a hora da despedida. O Pedro lá partiu rumo a Binta e eu a Nova Lamego, Gabu. Nas minhas novas instalações reencontrei outros dois camaradas que tiraram o curso de Operações Especiais/Ranger comigo em Penude: o Rui Álvares e o Cardoso. Acontece que o Cardoso acabou por demandar para uma outra zona da Guiné, enquanto eu e o Rui permanecemos em Gabu.
Do Cardoso nunca mais tive informações. Perdi-lhe o rasto. Sei que era natural de Moimenta da Beira. Desejo que esta ausência poderá ter um fim em vista se porventura algum camarada que leia este pequeno texto nesta obra me dê alvíssaras desse meu velho amigo. O Cardoso tinha uma estatura baixa. Gostava de reencontrá-lo tal como aconteceu há uns anos com o Rui. Com cabelos brancos, ou com falta deles, como é o meu caso, reconhecer-nos-emos de imediato e lá acontecerá aquele fraterno e apertado abraço.
Interiorizando os contextos de as minhas memórias Gabu, realço a passagem pelas instalações do QG, em Bissau, afirmando convictamente que esse espaço foi visitado, e revisitado, por muitos camaradas que fizeram escala na capital guineense ao longo da sua comissão militar na guerrilha da Guiné.
Curioso era a arquitetura dessas instalações. Mas como a sua utilidade era simplesmente casual, a malta acomodava-se como podia e não refilava com o que lhe era colocado à disposição. Lembram-se, camaradas? Toca a desafiar essas recordações e sacar cá para fora essas velhas lembranças.
Dessas passagens breves pelo QG, recordo que numa das idas para o faustoso resort, encontrei dois amigos de Beja, um o furriel comando de nome Chico Dias, que me levou a provar um prato a que chamavam “ninho de andorinha”; outro o furriel Zé Felício, um rapaz com o qual mantenho uma indestrutível amizade.
Recordo o desafio proposto pelo Chico Dias na prova do ninho de andorinha, uma refeição cujo tempero era feito na base do muito piripiri africano. Escusado será dizer que o sacana do ninho de andorinha levou-nos a refrescar as gargantas com uma boa dose de cervejas. Não me lembro do fim, mas aquilo fez efeito, isso fez.
Experiências comestíveis guineenses que, à época, fazia mover montanhas de prazeres africanos!
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
2 comentários:
Zé Saúde, sempre a brindar-nos com belos textos.
Agora, em Bissau o petisco "ninhos de andorinha", das várias vezes que por lá andei: quando cheguei; quatro vezes nas férias; juramento de bandeira dos recrutas de Contuboel; entrega do material usado na recruta; uma ida para o hospital e quando regressei. Foram várias vezes em Bissau a deitar abaixo do bem bom e nunca ouvi falar em "ninhos de andorinha".
Até então, a única vez que soube sobre "ninhos de andorinha" foi no Secundário sobre um das actividades económicas de Macau.
Imagino como seria o sabor do "ninho" ao avaliar o molho que acompanhava ostras e o camarão grelhado.
Aproveito para transcrever o que Wikipédia diz sobre "ninhos de andorinha".
"A sopa de ninhos de andorinha é uma especialidade da culinária da China e uma das mais caras do mundo, uma vez que é feita com os ninhos das aves de várias espécies do género Aerodramus, que são feitos quase exclusivamente com a saliva dos pássaros ( 燕窩 em língua chinesa). Os pássaros (que não são verdadeiras andorinhas) reproduzem-se em cavernas, em grandes bandos, e podem também utilizar edifícios mais ou menos fechados, pelo que a sua coleta é difícil e perigosa. O preço de um quilo de ninhos pode atingir USD $10 mil e uma tijelinha de sopa custa USD $30-60 em Hong Kong. Um dos aspetos que pode aumentar o preço desta iguaria é ser considerada uma espécie da medicina tradicional chinesa e um afrodisíaco. Cada ninho tem a forma e o tamanho aproximados duma orelha humana.
A sopa é basicamente um caldo de galinha, a que se podem adicionar pedaços de frango e cogumelos, onde se cozem os ninhos; supostamente, à medida que os ninhos dissolvem vão engrossando o caldo, mas em algumas receitas, adiciona-se maizena e ovo mexido. Os ninhos podem também ser usados para preparar um doce, cozendo-os em água e açúcar-em-pedra."
Bom, nem quero imaginar o picante e pensar a que cavernas rochosas, na Guiné, iriam arranjar os "ninhos de andorinha"?
Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz
Bonita cumpliidade e camaradagem... LG
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