quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5252: Histórias de José Marques Ferreira (10): Funeral de 'homem grande', refeição melhorada... da tropa


1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, que foi Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré - 1963/65 -, enviou-nos com data de 7 de Novembro de 2009, a seguinte mensagem:

Funeral na Guiné – Refeição melhorada

É um bocado tétrico, arrepiante até, fazer disto um poste e logo com tal título. Mas a verdade é que vivi os momentos de um funeral na Guiné, de cuja participação tivemos «direito» a… bifes.

Não estou a brincar com coisas sérias. Eu explico melhor, embora com deficiências memoriais provocadas pelos quarenta e tal anos que passaram.

Então vamos aos pormenores.

Já estava há bastante tempo na Guiné, na localidade de Ingoré. Como se sabe, lá como noutros territórios limítrofes, são abundantes as etnias. Cada uma tem os seus princípios, os seus costumes, as suas lendas e crenças, a sua vida…

Na única estrada que atravessava a localidade, na direcção nascente - poente, para os lados de Sedengal, onde estava um pelotão da minha companhia, logo a seguir ao pontão da bolanha que ficava à saída de Ingoré, havia uma tabanca. Já não recordo como se chama, ou chamava.

O que eu sei é que tivemos conhecimento que havia falecido, ali, um «homem grande» daquela tabanca. Penso que foi a um domingo.

Como naquela guerra o domingo era respeitado, como dizia o saudoso Raul Solnado paravam-se as hostilidades, um grupo de camaradas nos quais eu me incluía, resolvemos ir ao funeral… do morto (que raio de redacção esta!).

Não fomos munidos de G3, porque era muito perto e, como eu já disse, a guerra estava fechada, levávamos apenas algumas facas de mato. Mais tarde concluímos que foi o que fizemos de melhor.

Chegados à tabanca, havia muita algazarra, como era próprio nestas alturas e nestes acontecimentos (e não só), quando fomos confrontados com a oferta de enormes e bem apetecíveis peças de carne.

Não houve meias hesitações. Facas metidas na tenra carne, já não me lembro bem, se de bovino, se de vitela (que raio de confusão) e toca de carregar com elas até ao aquartelamento. Um surpreendente pitéu que iria fazer as delícias de um bom almoço, ou jantar, de bifinhos.

Recordo-me que uma das peças era a pá, parte das pernas (de vitela ou de vaca, bolas, seria de boi? Isto hoje está muito mau… era carne e pronto!)




Estava a brincar, para vos explicar que realmente fomos ao funeral e que não viemos de mãos a abanar, fazendo-me recordar alguns hábitos ainda correntes nalgumas regiões do nosso país, onde as famílias dos falecidos oferecem comida e bebida aos acompanhantes dos actos fúnebres.


Naquela etnia, que já não sei qual é, mas se houver alguém que saiba, pedia-lhe o favor de intervir, todos os bens do falecido devem ser distribuídos, sejam galinhas, porcos (algumas etnias não comiam carne de porco, por exemplo, os Mandingas), gado bovino e tudo o resto, segundo creio.


Porque a riqueza daquela gente é medida, não pela quantidade de dinheiro que detém, mas pelo número de cabeças de gado que possui!


Penso que será de frisar, por que nem sequer o sabíamos, que não fomos visitar a família do falecido por causa de obtermos a carne. Mas que ela veio mesmo a calhar, porque a abundância não reinava para aquelas bandas, disso jamais me esqueci.


Pena foi que ninguém tenha tirado uma fotografia da oferenda, para agora confirmar, por imagem, o que acabo de vos contar. Bolas…


Para todos um abraço,
J.M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes


Foto: José M. Ferreira (2009). Direitos reservados.
____________
Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

10 de Novembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P5249: Estórias avulsas (56): Um tiro que tapou o sol na Ponte Marechal Carmona (Joaquim Mexia Alves)

3 comentários:

Juvenal Amado disse...

Meu caro Marques Ferreira

Na zona onde estive também havia enterros, que mais pareciam festas.
Não sei se Fulas se Mandingas se Manjacos, pois havia um pouco de tudo.
O cortejo fúnebre era um enorme batuque.
São formas que cada raça e religião têm de encaminhar os seus ente queridos.
Uma coisa que estranhei sempre são os enterros nos filmes americanos. Grande comezainas e bebida com força sempre me pareceram festa a mais, para uma ocasião tão triste.
Vim agora a saber que na Ucrania também a família do falecido (a), para além de ter que alimentar os participantes no funeral, ainda tem que dar-lhes prendas.
Cada povo com seu uso cada roca com seu fuso.( Ou vice versa)

Um abraço
Juvenal Amado

Anónimo disse...

Camarada José Ferreira, aqui tem um apontamento breve da distribuição étnica na Guiné
http://www.triplov.com/miguel_garcia/guine/cap3_sociedades.htm

S.Nogueira

j_m_ferreira@sapo.pt disse...

Ao Juvenal:
Agradeço as achegas e são mais uns pormenores que fico a saber.

Ao Nogueira:
Grato pelo endereço que vou já visitar. Mas o texto que fiz está mal postado. O MR, se verificar o original, digo a certa altura «fazendo-me recordar alguns hábitos ainda correntes nalgumas regiões do país», do nosso país. O MR colocou um termo diferente que dá a entender, que era na Guiné.
Vou contactá-lo.

A ambos, um abraço do camarada
J.M.Ferreira