quarta-feira, 28 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2892: A verdade e a ficção (2): Ilha do Como, Op Tridente: Queres vender a tua água ? Dou-te 100, dou-te 200 pesos (Anónimo)


Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como > 1964 > Op Tridente (de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964) . Croquis executado pelo Mário Dias.

"A designada Ilha do Como é, na realidade, constituída por 3 ilhas: Caiar, Como e Catunco mas que formam na prática um todo, já que a separação entre elas é feita por canais relativamente estreitos e apenas na maré-cheia essa separação é notória. Na ilha não existia qualquer autoridade administrativa nem força militar pelo que o PAIGC a ocupou (não conquistou) sem qualquer dificuldade em 1963. As tabancas existentes são relativamente pequenas e muito dispersas. Possui numerosos arrozais, o que convinha aos guerrilheiros pois aí tinham uma bela fonte de abastecimento, acrescido do factor estratégico da proximidade com a fronteira marítima Sul e o estabelecimento de uma base num local que facilitava a penetração na península de Tombali e daí poderia ir progredindo para Norte.

"Não tinha estradas. Apenas existia uma picada que ligava as instalações do comerciante de arroz, Manuel Pinho Brandão (na prática, o dono da ilha), a Cachil. A partir desta localidade o acesso ao continente (Catió) era feito de canoa ou por outra qualquer embarcação. A casa deste comerciante era, se não estou em erro, a única construída de cimento e coberta a telha.

"Portugal não exercia, de facto, qualquer espécie de soberania sobre a ilha. Tornava-se imperioso a recuperação do Como. Foi então planeada pelo Com-Chefe a Operação Tridente na qual foram envolvidos numerosos efectivos, divididos em 4 Agrupamentos (...), num total de cerca de 1200/1300 homens".

Fonte: Mário Dias >
Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias) (15 de Dezembro de 2005)


Guiné > Regiãod e Tombali > Ilha do Como > 1964 > Op Tridente (de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964) > LDM desembarcando as NT.

Fotos: © Mário Dias (2005). Direitos reservados


1. Queres vender a tua água ? Dou-te 1000$00, 2000$00... Alguém que esteve na Ilha do Como, pelo menos logo nos primeiros dias da Op Tridente, mais exactamente em 23 de Janeiro de 1964, deixou escrita esta frase, num comentário a um poste já antigo, publicado na 1ª série do nosso blogue (1).

Não sabemos quem é o autor, por que não deixou nem o nome nem o endereço de correio electrónico. Vamos considerá-lo como um combatente anónimo. Era, pela descrição que nos faz do seu 1º e 2º dia no Como, um soldado de transmissões, da CCAÇ 557, comandada pelo Cap Ares Colaço. A referência que faz à escalada do preço da água não deixa de ser altamente premonitória e simbólica: já o Mário Dias nos tinha aqui descrito, com detalhe e dramatismo, o suplício que foi, durante a Op Tridente, a falta de água potável...Recorde-se que estávamos em plena época seca, e que grande parte da Ilha do Como é salinizada... Recorde-se igualmente que na época 100 ou 200 pesos era já uma quantia muito razoável, era o equivalente ao valor pago pela alimentação de cada militar durante 4 ou 8 dias (24$50 por dia!)...

É um testemunho singelo, escrito num português esforçado (que teve de levar, naturalmente alguns retoques), de um homem que deve andar hoje pelos seus 66/67 anos. Até pela sua vontade em participar no nosso blogue e comunicar a sua experiência pessoal, ele merece maior visibilidade, além do nosso aplauso. Pode ser que, com ísso, ele queira dar a cara e prosseguir o seu depoimento. E sobretudo pode (e deve) abrir o caminho a outros depoimentos, de outros camaradas que participaram na mais longa (e mais dura) operação militar realizada no CTIG.

Recorde-se, por outro lado, que a Batalha do Como (sic) foi transformada num mito pela propaganda do PAIGC , falando-se em 650 baixas, entre a tropa portuguesa, cujos efectivos totais eram calculados em 3 mil homens, dos quais dois mil seriam tropas de elite, transferidas de Angola (sic) (Cabral, A. - A batalha do Como e o congresso de Cassaca. In: Obras escolhidas de Amílcar Cabral: Unidade e Luta II: A prática revolucionária. ed. lit. Mário de Andrade. Lisboa: Seara Nova, 1978. Volume II, pp. 41-44)


2. Depoimento de um combatente anónimo: Ilha do Como, Operação Tridente

No dia 23/01/1964 duas LDM, apoiadas por uma pequena corveta da marinha, desembarcaram na Ilha do Como, mata do Cachil, a Companhia de Caçadores 557. O comandante era o capitão Ares e não Aires. Desembarcou também o 7º Destacamento de Fuzileiros, do tenente Ribeiro Pacheco.

O 1º obstáculo foi a maré vazia, o lodo… Os primeiros 3 fuzileiros conseguiram alcançar a terra mas os seguintes ficaram atolados no lodo até ao tronco. Tiveram que ser puxados com uma corda para Botes de Borracha. A seguir, esses 3 fuzileiros em terra, com a ajuda de facas de mato, cortaram uns troncos e rama de tarrafo e lá se conseguiu fazer todo o desembarque. A sorte foi não sermos atacados naquela situação, mas isso veio logo a seguir.

Todos em terra, antes de nos embrenharmos na mata, ouvimos as seguintes palavras, vindas de um pequeno vaso de guerra através de um megafone:
-Camaradas, colegas e amigos, para a frente é que é o caminho, não perdoar!

Cerca de 150 metros, mais ou menos, à frente, uma ponte que era um autêntico baloiço. Um a um todos passaram mas aí, a uns 300 metros, apareceu uma bifurcação de dois caminhos e em cima de uma árvore um posto de sentinela mas sem ninguém. Aí nova pausa devido ao inimigo ter ateado lume ao capim. Este trajecto foi sempre apoiado por um avião TC e na maior parte do percurso por dois.

Houve durante o percurso alguns tiros vindos da mata mas isolados e também nos dava a ideia de serem um pouco distantes. Com estes contratempos todos a noite aproximava-se e o apoio aéreo terminava. Lá conseguimos chegar à zona onde o capim tinha ardido com a grande mata do Cachil à vista. Aí a uns 400 metros, mais ou menos, toca toda a malta a cavar abrigos, com a excepção do tenente Pacheco com a sua metralhadora MG 42 e o capitão Ares com a G3, e que nos iam dizendo:
- Trabalhem, trabalhem, que estão aqui 2 homens que vos guardam.

Na manhã seguinte, 24/01/1964, cerca de 80 homens, entre fuzileiros e malta da CCAÇ 557, fizeram batida à pequena mata do Cachil: nada a registar em termos de guerra. Mas havia um grande problema: ÁGUA?!... E então trata de cavar um buraco e aí com 1,5 a 2 metros a água apareceu. Opção correcta: filtrar e desinfectar. Mas, ao bebê-la, parecia autêntico petróleo, não lavava, não tirava o sabão, ficava tudo gordurento.

Passado isto, eram 12 horas,já se notava em alguns militares princípios de esgotamento devido à sede e ao calor que era intenso, mas eis que cerca das 15 horas chega o helicóptero com o precioso liquido. Fez-se a distribuição, calhou meio-litro a cada um tudo, igual para todos. Nesse dia á agua subiu a um preço inacreditável. Pergunta:
- Queres vender a tua água ? Dou-te 1000$00, 2000$00.

Ninguém vendeu, terminada a distribuição, todos os camaradas foram descansar excepto os que estavam de serviço à segurança e eu e o meu colega, que o nosso trabalho era transmitir nova mensagem a pedir mais água munições e rações de combate.

Quando acabei de transmitir a mensagem HILARIANTE MAS AGORA, diz-me o capitão Ares Colaço:
-Deita-me aqui uns pingos de petróleo nas costas, que sempre refresca.

Mal acabei de tirar o primeiro saquinho, surge da pequena mata do Cachil uma rajada de tiros a espicaçar a zona onde nós estávamos. Bem, foi tal a pressa a rastejar até ao abrigo que o capitão nem dos óculos se lembrou. Metidos nos abrigos aguentámos o tiroteio que terminou quase de noite. (...)

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Nota dos editores:

(1) Vd. post de 17 de Novembro de 2005 >
Guiné 63/74 - CCXXVI: Antologia (25): Depoimento sobre a batalha da Ilha do Como

Fonte: Extractos de Diário do Alentejo, de 23 de Abril de 2004 > Crónica do Soldado 328, por Alberto Franco.(Já não disponível na Net, na data de hoje, no antigo sítio do Diário do Alentejo). Reprodução com a devida vénia.


(...) O alentejano Joaquim Ganhão foi um dos milhares de portugueses que lutaram em África, nos anos da Guerra Colonial. Nas dificuldades e sustos que viveu em terras da Guiné – participou na célebre Operação Tridente, em 1964 – certamente muitos outros ex-militares se reconhecem. Quando passam 30 anos sobre o 25 de Abril, é oportuno recordar a longa guerra, unanimemente considerada uma das principais causas da revolução.

(...) Tridente da morte

Mas a emboscada no Oio-Morés foi uma brincadeira, comparada com o que veio a seguir. O Batalhão de Cavalaria 490, e com ele Joaquim Ganhão, foi um dos participantes na operação Tridente, uma das mais aparatosas ofensivas portuguesas na Guerra Colonial. Denominada Tridente porque envolvia a marinha, o exército e a força aérea, a operação visava ocupar as ilhas do Como, Caiar e Catunco, no Sul da Guiné, onde os combatentes do PAIGC dispunham de importantes bases. Ali se movimentava o astuto comandante Nino Vieira, formado nas técnicas da guerrilha pela Academia Militar de Pequim, que teria no Como cerca de 300 homens, incluindo militares da Guiné-Conacri. Um dos objectivos da missão consistia em conquistar o apoio da população das ilhas, que os guerrilheiros controlavam:
- Em todas as tabancas (aldeias tradicionais) do Como, se viam retratos de Amílcar Cabral-, observa Joaquim Ganhão.

A operação Tridente iniciou-se em 15 de Janeiro de 1964. O 1º cabo Ganhão só soube o que o esperava quando se viu a bordo de uma lancha LDM, dos fuzileiros. Através das bolanhas, ladeadas por uma vegetação densa e asfixiante, o tarrafo, a Companhia 489, comandada pelo capitão Pato Anselmo, avançou até à ilha de Catunco. Ganhão permaneceu ali mais de dois meses, "entrincheirado num buraco, juntamente com dois companheiros, agarrados às G3, com as balas do inimigo a passarem-nos rente". Quem disparava?
- Nenhum de nós sabia. Os tiros vinham da mata, onde os guerrilheiros estavam bem escondidos -. Por isso, sair do buraco só em último caso:
- Tínhamos o exemplo de um companheiro que se levantou para beber uma pinga de água e foi atingido por um tiro no queixo.

Quando se iniciou a segunda fase da operação, foi necessário deixar os abrigos e patrulhar as ilhas:
- Saíamos aos ziguezagues, em grupos de três. Depois deitávamo-nos ao chão e saíam outros três. E isto sempre aos tiros. Foi numa destas acções que Joaquim Ganhão perdeu o seu amigo Henrique Pinto, o primeiro militar de Moura a tombar na guerra:
- O Henrique, que pertencia à Companhia 487, seguia numa patrulha, formada em leque. Ele, que estava numa das pontas, avançou demais e foi capturado, às três da tarde do dia 24 de Janeiro -. Ganhão e outros tinham ido buscar mantimentos à base logística da operação, instalada numa praia. Aí viu chegar um helicóptero com o cadáver de Henrique, resgatado pelos fuzileiros. O choque foi terrível. Quarenta anos passados, ainda hoje a voz de Ganhão se embarga quando fala do caso:
- Podia ter sido eu. Tive sorte, não calhou.

Os aviões F-86 e T-6 flagelavam as matas do Como com napalm, as granadas explodiam a toda a hora, mas os resultados práticos da operação tardavam em ver-se. A única evidência era o sofrimento dos militares portugueses:
- Bebia-se qualquer água e a alimentação resumia-se a rações de combate-, conta o 1º cabo Ganhão - Comemos carne fresca uma única vez, quando os fuzileiros abateram algumas vacas. Não admira que durante a operação Tridente 193 militares tenham sido retirados do teatro de guerra, por motivo de doença.
Setenta e um dias depois, a missão é considerada finda. As estatísticas apontavam 76 guerrilheiros mortos, 15 feridos e nove detidos. Do lado português contaram-se nove mortes e ferimentos em 47 soldados. Foram disparadas 124 mil balas, 1200 granadas de artilharia e 550 granadas de morteiro. Os militares aliviaram a tensão consumindo 15 500 garrafas de cerveja e fumando 10 100 maços de tabaco. Números que não maquilham o insucesso da operação. A última palavra pertenceu à guerrilha, que continuou a servir-se do Como, só abandonando a região quando os seus interesses se transferiram para outros locais. (...)

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