Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 11 de agosto de 2021
Guiné 61/74 - P22449: Historiografia da presença portuguesa em África (275): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (12) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Novembro de 2020:
Queridos amigos,
Dando sequência à bibliografia complementar sobre o processo fundacional da Sociedade de Geografia, aqui se refere o estranho livro de António Ferrão, de que se desconhece a data de publicação e que foi publicado incompleto, em vez dos 50 anos ficámos entre 1875 e 1890. Seja como for, o autor faz um levantamento merecedor de leitura: contextualiza o que se passava na Europa nessa contemporaneidade após o Congresso de Viena e como surgiram as ambições imperiais, nomeadamente em África. Faz-se um registo das denúncias de atos infames praticados por outras potências coloniais, é digno de leitura.
E vamos continuar.
Um abraço do
Mário
O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (12)
Mário Beja Santos
O mínimo que se pode dizer da edição desta obra é que foi acidentada, tem alguns pontos de interrogação, não se sabe quando foi editada e quando foi editada todas as cópias apareceram incompletas. Seja como for, este membro da Academia das Ciências, António Ferrão, esforçou-se por nos dar uma narrativa consequente, só temos conhecimento até aos primórdios do Ultimatum. Tudo muito estranho, paciência, é sobre o que foi publicado que se pode escrever, e é manifestamente digno de atenção.
Começa por contextualizar a contemporaneidade depois do Congresso de Viena (1815), tempos pautados pela tensão entre a luta baseada no princípio do equilíbrio europeu (as conveniências das cinco grandes potências de então) e o princípio das nacionalidades emergentes (caso do estabelecimento da Checoslováquia e a unificação da Polónia). Irão arrancar os impérios continentais, como o alemão, consagram-se novas nacionalidades, como a Bélgica, a Itália, a Alemanha, a Hungria, a Grécia, a Roménia, a Sérvia e a Bulgária. Chegada a paz à Europa, enceta-se um período febril de explorações ditas científicas e a colonização de regiões extraeuropeias, África é o polo da cobiça. António Ferrão faz um curto historial das colónias existentes e remete-nos depois para a História de Portugal, pontuando momentos importantes como as invasões napoleónicas, a guerra civil e a chegada da Regeneração. Enuncia graves contenciosos com Inglaterra, a propósito da abolição da escravatura e da proteção dada pelo Estado português da Índia a insurretos da Índia inglesa. Regista os ideais da Regeneração (renovação económica, progresso material, etc.) e alude ao interesse em promover a vida no império, na pasta do Ultramar está o Visconde Sá da Bandeira, ele mostra como claramente houve projetos de investigação, entre outras iniciativas.
É no período em que Andrade Corvo é Ministro da Marinha e do Ultramar que se funda a Sociedade de Geografia. Houvera, em 1868, a ideia da criação de um museu colonial, não passou de um projeto. Faz-se uma resenha das expedições de caráter científico através de África, no século XIX, e o autor preocupa-se em expor o estado das ciências geográficas no terceiro quartel do século XIX, e dá-nos também um quadro referente aos progressos das ciências geográficas. Dentro desta moldura, estamos chegados às causas e origens da Sociedade de Geografia, parece que tudo condicionava, em 1875, ao aparecimento de uma instituição eminentemente científica e dedicadamente patriótica. Dá-nos também um quadro das ambições internacionais sobre as colónias portuguesas e seguidamente, de uma forma calendarizada, vai referindo a atividade da Sociedade desde o seu primeiro período (1876-1880). À semelhança da obra anteriormente recensionada, da autoria de Ângela Guimarães, ele também alude às tensões entre a recém-criada Comissão Central Permanente de Geografia, dentro dos quadros do Estado, e a Sociedade de Geografia. Curiosa é a definição que ele nos dá desta Comissão Central Permanente: “Composta de pessoas que, pelos seus variados conhecimentos científicos, possam cooperar para o progressivo desenvolvimento e aperfeiçoamento da Geografia, da História Etnológica, da Arqueologia e das Ciências Naturais em relação ao território português, mormente das possessões do Ultramar”. Esta comissão produziu trabalhos, e o autor enumera-os.
Mas continua por esclarecer o desprendimento do Governo com a Sociedade de Geografia, composta, como se viu, por figuras da elite, e sobre o patrono régio e a quase duplicação de atividades entre o Estado e a sociedade civil. A Sociedade de Geografia vivia com inúmeras dificuldades, era obrigada a alugar sedes modestas, pôde contar com generosidades como a de um filantropo que pagou à sua custa a composição e impressão do boletim da Sociedade. E o autor enumera os primeiros assuntos versados, caso do ensino da geografia do país, as propostas de Luciano Cordeiro para a realização de conferências sobre os diversos ramos da Geografia, a reação firme do protesto à falta de convite a Portugal para estar presente na Conferência de Bruxelas, organizada pelo Rei Leopoldo, tanto mais escandaloso que o tema principal era o de estudar os problemas da exploração científica do continente africano. É nesta fase que se vão iniciar as explorações africanas e os seus protagonistas serão tratados como heróis nacionais: Serpa Pinto, Capelo e Ivens. A proteção real saldou-se numa enorme credibilidade da Sociedade, a sua Comissão Africana emitia pareceres que em muitos casos chegavam ao Governo, insistia-se desde a primeira hora que era indispensável criar um ensino colonial a sério, formar uma administração colonial capaz, e o autor dá-nos os antecedentes da Escola Colonial de 1906, e relata o que era o curso colonial português.
Talvez por desatenção, não havia referência que na sessão de 1 de abril de 1878 se fizera uma proposta ao governo para subsidiar uma expedição geográfica e comercial à Guiné Portuguesa e outra ao rio Cunene, que não teve seguimento.
Há outros dados ainda a ter em conta neste trabalho de levantamento: o acolhimento triunfal de Serpa Pinto, Capelo e Ivens; o centenário de Camões; o estudo científico da Serra da Estrela. E no período que antecede o Ultimatum o autor repertoria os trabalhos feitos sobre os caminhos-de-ferro para Angola e Moçambique, o Centenário do Marquês de Pombal, o fim da questão do Zaire e a realização da Conferência Internacional de Berlim. E num dado momento entende desenvolver as denúncias das ameaças inglesas e outras, com o epíteto de que se trata de uma campanha de descrédito contra a nossa dominação, o que se pretendia era criarmos um ambiente internacional desfavorável e que lhes permitisse o golpe de mão sobre as nossas colónias, escreve a seguinte intervenção bombástica:
“Numa exposição elaborada por peritos portugueses em resposta às ineptas acusações feitas a Portugal por causa da mão-de-obra indígena em Angola, encontramos um curioso estudo comparativo entre a nossa maneira de cuidar os aborígenes das nossas colónias e a forma como são tratados os indígenas das outras nações. É estranho – diz-se nesse relatório – que esses fementidos homens de coração, esses hipócritas filantropos, nunca protestassem quando, há anos, por ocasião da grande revolta da Índia contra o domínio britânico, a Inglaterra cometeu as barbaridades que a imprensa da época noticiou, chegando a revista inglesa The Illustrated London News a reproduzir em gravuras algumas delas, como a de prender os rebeldes às bocas de peças para, descarregando estas, os fazerem voar aos pedaços, devendo notar-se que só num dia tiveram esta horrorosa morte quarenta sipaios, além de doze que foram enforcados. Pois essa mesma revista a justificar tais factos escreve: ‘Seja o que for que em Inglaterra se pense acerca deste género de castigo, é sabido, por aqueles que conhecem bem o caráter asiático, que é absolutamente necessário numa crise como a atual na Índia. Horrível é decerto este castigo, mas não esqueçamos o horror das circunstâncias que fizeram um dever da sua aplicação, e não esqueçamos também, o que é certamente verdade, que a aplicação deste castigo é fiscalizado por homens justos e que não são menos, recordemo-lo, porque o rigor tem agora de se aliar à justiça’. Eis, pois, o quilate dos tais homens justos e de sentimentos humanitários que de tempos a tempos erguem gritos de censura, de vitupério, contra nós.
Mas não é tudo. Naquela mesma revolta, em certa ocasião meteram tal número de rebeldes na prisão, sem ar bastante, que na manhã seguinte todos haviam morrido.
Mais tarde, na luta contra os bóeres, no Transval, os ingleses faziam saltar com dinamite, nas cavernas do Indomo, centenas de mulheres e de crianças, sem falar na famosa e humanitária diversão de o espetar porcos aplicado aos bóeres.
Coisa idêntica já haviam feito os franceses, em 1845, nas campanhas da Argélia, acendendo grandes fogueiras à entrada de grutas onde havia centenas de homens, mulheres e crianças.
Quanto à maneira dos alemães considerarem os pretos, lá diria certo viajante germânico: ‘Não vamos a África para fazer caretas filantrópicas. A raça branca deve suplantar a raça negra e o modo mais prático de conseguir este resultado consiste no extermínio do preto: os povos negros não têm direito algum a existir’. Outro alemão escrevia: ‘A caça aos negros é um desporto muito agradável’.
E é sabido que os franceses têm-se farto de fazer escravatura do Sudão e os belgas no seu Congo.
Quanto ao humanitarismo dos norte-americanos são conhecidos muitos atos contra os negros.
Acerca de moralização e morigeração de costumes dos indígenas tem-se criticado a deportação de criminosos para as nossas colónias, como se a França e a própria Inglaterra não fizessem o mesmo, devendo-se acrescentar que o nosso deportado se porta, geralmente, muito melhor que o condenado das colónias penais inglesas da Australásia. Já Livingston se admirava como em Luanda os 16 mil habitantes iam todas as noites sossegadamente, não obstante saberem que as cidadelas e as armas da cidade estavam nas mãos de deportados.
Quanto à moralização dos aborígenes, conta H. Johnston, em The Colonisation of Africa que certa companhia inglesa, a quem estava entregue determinado território da Serra Leoa, com o fim de aumentar ali a população, tomou uma medida muito simples: mandou ir 60 prostitutas de Londres ‘para casarem com os pretos e fazerem-se mulheres honestas’.”
Pena tratar-se de um livro truncado, seja como for é obra elementar no contexto do estudo sobre o pensamento imperial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 4 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22432: Historiografia da presença portuguesa em África (274): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (11) (Mário Beja Santos)
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