Queridos amigos,
Temos, pois, um intenso período de atividade operacional, para quem manda e comanda parece que se descobriu que há uma situação extremamente grave no regulado do Xime, o PAIGC não só está de pedra e cal no Baio-Burontoni como cultiva às claras a riquíssima bolanha do Poidom, uma fonte inigualável para o abastecimento da guerrilha e populações nestes pontos do Leste, em ambas as margens do Corubal. Não se mediram as consequências de ter retirado o aquartelamento da Ponta do Inglês, há também aqui um itinerário estratégico para o abastecimento de armamentos a partir de e para o Sul. As operações são um malogro, já é sabido que é praticamente inacessível procurar atingir-se o Burontoni a partir do Xime, o itinerário mais seguro é usar sempre Moricanhe, tem-se mais visibilidade e mais fator surpresa a nosso favor. Mas estes reparos não são atendidos, quem comanda julga-se depositário de uma ciência infusa, omnisciente e repetem-se as emboscadas, com os nossos feridos e mortos. Vai seguir-se uma operação bastante sangrenta, a Tigre Vadio, bem se insistiu em dois itinerários diferentes para objetivos distintos, foi um milagre ter cerca de 300 homens uns atrás dos outros a entrar no inferno de Belel e dali sair com feridos ligeiros depois de um ataque surpresa como nunca houvera antes com tropa de infantaria, nem haverá depois.
Um abraço do
Mário
Rua do Eclipse (64): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Mon inoubliable amour, passion sans mesure, que mais posso dizer sobre os dias vertiginosos que vivemos, seguindo de Bruxelas para Lille, daqui para Calais, depois Dunquerque, depois Ostende, Bruges, Ypres e regresso à Rua do Eclipse? Que mais provas podemos dar um ao outro da nossa felicidade? Como me diverti quando fizeste um ar muito sério, eu enlaçava-te louco de amor na Grand-Place de Bruges, passaram jovens que comentaram aquela doidice, senti o teu rubor, como tivesses sido apanhada em falta, coisa imprópria da idade… Já estou como diz o escritor Gabriel García Márquez, a idade não é a que temos, é a que sentimos, e eu sinto a plenitude deste amor que me inebria a existência, me dá impulso para a multiplicidade de tarefas e não abdico de pensar que é a via única da felicidade.
Regressei bem, já guardei no frigorífico e congelador as preciosidades que comprei com a tua ajuda, desembrulhei meticulosamente os meus queijos fedorentos, meti no micro-ondas uma lasanha, tiveste o cuidado de me pôr umas peças de fruta, jantei bem, mas sem ti, sem o teu encanto, ciente que em breve passarás as férias grandes comigo. Por isso mesmo te deixei aí um volumoso guia de Portugal, estou aberto a todas as tuas sugestões. Só te peço compreensão para a magreza de rendimentos dos meus filhos, a ver se passávamos uma semana todos juntos na costa alentejana, se nada tiveres a objetar. Com mais tempo falarei contigo sobre a conversa havida com o Jules, abri a porta para ele passar um tempo comigo, também os meus filhos darão apoio. Ainda esta semana acertaremos as datas do calendário.
Agradeço-te mais uma vez o desvelo com que estás a tratar o dossiê da minha comissão na Guiné. Revi tudo quanto aos meses de janeiro e fevereiro, nada mais tenho a acrescentar. Não pretendo deixar registado que tenho de novo o sistema nervoso abalado e muito ainda hoje medito sobre as causas daquela depressão camuflada, de uma ansiedade por vezes tão mal contida, isto quando naqueles 17 meses de Missirá e Finete o tempo corria veloz, com os constantes patrulhamentos a Mato de Cão, as obras de recuperação de Missirá e os arranjos de Finete, os abastecimentos obrigatórios para civis e militares, as aulas para crianças e adultos, as idas ao médico, era um quotidiano que me exigia uma disciplina férrea para ter tempo para mim, livros e música e correspondência para todos aqueles que estavam na minha constelação de afetos. Bambadinca representava o dia-a-dia as trouxe-mouxe, perdera-se a coesão da unidade militar, recebia ordens para mandar uma secção de nove homens levar munições ou doentes a um regulado próximo, outra ficava de serviço nos Nhabijões, eu e o restante pessoal devíamos ir a Madina Xaquili ou a Galomaro levar um abastecimento, documentação, o que quer que fosse. Era uma fragmentação de atividades que me dificultava a manutenção do espírito do grupo, que existia no Cuor. Agora limitava-me a fazer reuniões para verificar a limpeza do armamento, o armazenamento de morteiros e bazucas, fazer a contabilidade e tratar do expediente, para já não falar do serviço de justiça.
E subitamente sou convocado para um conjunto de operações, a região do Xime tornara-se prioritária para o coronel de Bafatá. Nasceu assim a Rinoceronte Temível, o comando de Bambadinca percebeu que fora da povoação do Xime os grupos do PAIGC deslocavam-se com bastante à vontade. Andava eu em obras na ponte de Undunduma, com novos recenseamentos de armas nas tabancas em autodefesa e sou chamado ao comando, vamos regressar ao Xime. O que se pretende, afinal de contas? Se há culturas na bolanha do Poidom, a intenção é que se faça uma batida constituída por dois destacamentos, um vai do Xime até à Ponta do Inglês, talvez fosse útil eu ir à frente e retomasse os caminhos recentemente percorridos, o comando deu nome a esta operação de Colete Encarnado; um outro destacamento leva rumo diverso, vai também do Xime, passará perto de Burontoni até atingir o outro extremo da bolanha do Poidom, ambos os destacamentos terão apoio aéreo. Tem perguntas, nosso alferes? Claro que tinha. Não se podia garantir qualquer sincronização face ao encontro dos dois destacamentos na Ponta do Inglês, a manter-se tais efetivos, sugeria que um dos destacamentos, e eu seguiria nele, caminha-se por Ponta Varela, atravessasse a estrada até à Ponta do Inglês e confirmasse se as populações tinham abandonado ou não a Mata do Poidom; se era certa a informação de que havia grupos diferentes no Baio-Burontoni e na região da Ponta do Inglês, este destacamento se dirigisse nessa direção, há um conjunto de operações que só se conhecem malogros, o ideal era atingir um desses acampamentos enquanto o outro destacamento seria posto à prova na Ponta do Inglês. O comando insistia na convergência, competia-me acatar a ordem. Só repliquei para recordar que os efetivos militares um estava exausto e o outro bastante desmotivado. Houve uma punhada na mesa, as operações seriam exatamente como estavam delineadas.
Annette, ma chérie, tens aí os papéis que dão conta de tudo quanto se passou. Os que saíam do Xime pelo flanco esquerdo tiveram que regressar horas depois devido a uma situação de doença grave, alguém que ficou completamente desfalecido e o maqueiro encheu-se de pânico, era noite escura. Já uma vez te observei e só quem não fez uma guerra como aquelas é que não sabe como estes regressos e retomas acentua o cansaço, desconcentra, desmobiliza. E os imprevistos entraram em cena, de parte incerta, naquele mato onde algures havia bases do PAIGC fazia-se fogo de reconhecimento, ao amanhecer sentiu-se o fumo das queimadas, ficaram à espera do apoio aéreo para ver como e onde se podia progredir. Eu lá fui para Ponta Varela, ia comigo um guia conhecedor do terreno que correspondeu inteiramente ao que lhe pedia, queria flanquear dentro da lala sempre à volta da foz do Corubal, ao amanhecer lá encontrámos as lavras, encaminhámo-nos para a Ponta do Inglês, sempre com aquela estranheza de ouvirmos o fogo troar lá para os lados do Baio e Burontoni. E com o nascer do dia percorremos a pente fino a mata, havia alfaias agrícolas, pegadas, mas nem vivalma. Então chegou a nossa vez de termos uma receção de fogo, tomei esta chuva de morteiradas como prova de que estávamos referenciados. Antes de sair do Xime, voltara a falar com o furriel das armas pesadas com quem me entendera na Operação Rinoceronte Temível, pedi fogo e não mais houve morteiradas. Nisto chegou o apoio aéreo, pedi instruções para ir encontrar-me com outro destacamento, estupefacto, lá de cima mandaram-nos regressar a Ponta Varela. Ao princípio da tarde, novo contato com o apoio aéreo, ordens para regressar ao Xime. Infelizmente, eu tivera razão, este insucesso não trazia nada de bom para quem já estava desmotivado ou exausto.
Almoçados e com o astral muito em baixo, regressámos a Bambadinca. Com tudo arrumado, dirigi-me ao comando, numa tentativa de perceber aquelas ordens e contraordens, também os que tinham andado não longe do Burontoni não entendiam aquela ordem súbita de retirada. A resposta veio seca: se estávamos referenciados, não valia a pena uma maior exposição, em breve se repetiria a operação. Quando me preparo para sair, o major faz-me sinal, quer que eu fique. E naquela sala de operações onde numa parede se estendem as cartas geográficas do setor, pontuados os diferentes destacamentos e assinaladas as áreas onde o PAIGC interfere, sou informado, e exigem-me o mais completo silêncio, dentro de escassos dias partirei para o Cuor, a operação chama-se Tigre Vadio e o objetivo é grandioso, por isso irão 300 homens em dois destacamentos. Intenta-se bater a região ocidental do Cuor e procurar destruir os acampamentos de Madina e Belel. Eu ainda não sei que será a mais sangrenta de todas as operações em que participei.
(continua)
Cais do Xime, já em vias de destruição, fins no século XX, fotografia de Humberto Reis
A caminho do Xime, estamos num período de várias operações na região
Ruínas do porto de Bambadinca, novembro de 2010
Bolanha de Finete, 2010
Ponta do rio Undunduma, vital para o trânsito entre o Xime e Bambadinca, até à conclusão da estrada alcatroada, 1970Ponta do Inglês, uma relíquia da guerra, como um belo tronco guarda sinais de noites de fogo
____________Nota do editor
Último poste da série de 30 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22416: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (63): A funda que arremessa para o fundo da memória
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