segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22425: Notas de leitura (1368): “Repórter de Guerra”, por Luís Castro; Oficina do Livro, 2007 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Começo com uma declaração de interesses quanto a Luís de Castro. Conheci-o pessoalmente em setembro de 2018, fora convidado a participar no programa intitulado "Sociedade Civil". Enquanto conversava com um antigo aluno da Escola Superior de Comunicação Social, Castro rodopiava pelo estúdio e apanhou o tema da conversa que eu travava com o antigo aluno, falava-se da Guiné. E mal iniciado o programa, num aparente desconcerto com a conversa prevista, Castro dispara-me perguntas sobre a Guiné, a guerra, a experiência da cooperação, a despedida dos antigos camaradas, em 2010, os livros, a omnipresença da Guiné. Tudo espontâneo, sem rede, conversa mais improvável não podia haver. E não escondemos como aquele território cava fundo no nosso coração. Li depois este trabalho, do melhor que há ao nível da reportagem. Impossível não partilhar convosco textos tão luminosos, aceita-se que é clara certidão da verdade que o repórter experimentou e passou a escrito.

Um abraço do
Mário


Repórter de guerra: Luís Castro três vezes nas convulsões da Guiné (2)

Beja Santos

Luís Castro é um jornalista de quem os outros profissionais não regateiam elogios: que é inspirador, sabe enfrentar os cenários mais difíceis, assumindo riscos, que tem a fibra dos grandes repórteres, que tem o salto de tigre sobre tudo quanto seja matéria de notícia ou de reportagem, por exemplo. Neste livro “Repórter de Guerra”, Oficina do Livro, 2007, onde o autor colige trabalhos que efetuou em Angola, Cabinda, Guiné-Bissau, Timor-Leste, Afeganistão e Iraque, escolheu-se, como é óbvio, o seu trabalho na Guiné, já ocorreu o período mais dramático da guerra civil, estamos agora no termo dessa guerra, em 1999. Aterra no Senegal onde tem a cabeça a prémio, passa ignorado pelos serviços de fiscalização e daqui parte para Bissau num bimotor. Chegou mesmo a tempo de apanhar o tiroteio do último ato do conflito político-militar: “Fiquei parado mesmo atrás de uma antiaérea que é rebocada por um camião e que vai ser usada para disparar sobre as linhas inimigas. Os dois canos estão voltados para mim, a não mais de dois palmos do outro lado do vidro. Há soldados que correm de um lado para o outro, tiros que não se sabe de onde vêm e rajadas disparadas sem nexo. É a confusão total.”. Nino Vieira já está na Embaixada Portuguesa. Luís Castro considera que a peça ficou fantástica, dá a visão dos dois lados. “Nas ruas, o povo festeja aquilo que chama a terceira independência e o pessoal da Junta Militar leva-nos a visitar os prisioneiros de guerra que estão dentro do aeroporto, na base aérea. Há desde ministros, membros do Governo, colaboradores de Nino, comandantes militares, oficiais superiores e cinco soldados. Amontoam-se vinte e tal em pouco mais de dez metros quadrados. Os que não têm espaço cá em baixo penduram-se nas grades das janelas. O cheiro é nauseabundo e os prisioneiros escondem a cara quando se abrem as portas das celas e nos vêm. Seguimos à procura do líder da Junta Militar, que, quando me vê, apressa o passo na minha direção, eu estendo-lhe a mão mas ele puxa-me e abraça-me durante vários segundos. Mais parece o abraço de um pai ao filho. ‘Você foi o primeiro jornalista a vir ter connosco quando começou a guerra e voltou a ser o primeiro agora que a guerra acabou’. É um homem feliz. Venceu. Nino Vieira acabara de assinar a rendição incondicional.”

Nos dias seguintes, o repórter dá conta do drama dos hospitais e da gravidade das minas. “No Hospital Simão Mendes vou encontrar pessoas com queimaduras gravíssimas, crianças mutiladas, mulheres baleadas ou perfuradas por estilhaços de bombas, homens com os membros gangrenados e gemidos de quem já não tem forças para gritar. Falta tudo. Visito a seguir um local de reabilitação para crianças amputadas e dedico uma das reportagens ao Nilton, um menino de sete anos. Há três meses, um estilhaço arrancou-lhe a perna abaixo do joelho. Hoje, o pai levou-o pela primeira vez ao centro. A prótese custar-lhe-á o equivalente a 190 euros. Não sabe como vai pagar. Ajudo-o com 35 euros. Quando a reportagem foi para o ar choveram dezenas de telefonemas na RTP de pessoas de Portugal a oferecer-se para lhe pagar a prótese. Aconselho os interessados a fazê-lo através da Embaixada em Bissau para que os donativos não se percam à chegada”. E lembra o terror que é a herança das minas deixadas pela guerra, quer sejam antipessoal ou anticarro: “Deixadas pelas duas partes envolvidas no conflito, há que desativá-las antes que causem mais mortos entre os civis. Decidimos acompanhar uma dessas equipas de desminagem dos homens da junta militar. Ao todo, garantem, já encontraram e recolheram mais de duas mil minas anteriormente colocadas no meio das tabancas”.

Em 2003, Luís Castro regressa à Guiné para presenciar em direto algo como uma trágica comédia, a destituição de Kumba Ialá, será mesmo convidado a assistir às reuniões que antecedem o golpe de Estado que retirou os plenos poderes ao homem do barrete vermelho. Ao aterrar em Bissalanca, o repórter apercebe-se que o golpe é praticamente conhecido por todos. “Só mesmo na Guiné é que isto podia acontecer. Até no Governo sabem. E a nossa chegada trouxe ainda mais as suspeitas quanto à proximidade do levantamento militar”. Luís Castro entrevista o general de quatro estrelas, Veríssimo Correia Seabra, o autor do golpe de Estado, o general, que foi o número dois de Ansumane Mané, entretanto assassinado, é acusado de desrespeito pela Constituição, abuso de poder, prisões arbitrárias e muito mais. Kumba iria ser destituído, podia ficar a viver tranquilamente no país ou sair. Kumba irá num táxi para o Quartel-general, será filmado em conversa amena com os autores do golpe, à noite perguntaram-lhe se queria ficar ali ou ir para casa, preferiu a segunda hipótese, e é nesse entretanto que ele conversa com um oficial, sabe que já não é Presidente, que houve um golpe de Estado, lança impropério, foi preciso metê-lo à força dentro de casa. Alguém comenta para o repórter: “Da próxima vez que cá vieres, tu chegas e os guineenses fogem de Bissau. Já se habituaram que quando apareces cá é porque vai haver caldeirada! Não te livras da fama.”

E assim termina a reportagem: “A 6 de outubro de 2004, militares com patentes inferiores a major cumpriram a ameaça e assassinaram o líder do golpe de 14 de setembro, o general Veríssimo Correia Seabra. Só não conseguiram eliminar todo o Estado-Maior porque os restantes se esconderam na Embaixada Portuguesa. Pelo meio ficaram acusações de desvio de dinheiro e corrupção generalizada. Ansumane e Veríssimo lideraram golpes de Estado e acabaram da mesma forma: com vários tiros na cabeça. Desta vez não fui avisado”.
Luís Castro (à direita) no Afeganistão
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22406: Notas de leitura (1367): “Repórter de Guerra”, por Luís Castro; Oficina do Livro, 2007 (1) (Mário Beja Santos)

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