segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22479: Notas de leitura (1373): “Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura", por Ângela Benoliel Coutinho; edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, Novembro de 2017 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo à apreciação da tese de doutoramento de Ângela Benoliel Coutinho. Que investigou afincadamente, é dado irrefutável. Põe-se em dúvida quanto à utilidade do levantamento a que procedeu quanto a trajetórias pessoais e profissionais, tanto dos fundadores como dos líderes e combatentes da segunda geração. Dos eventuais seis fundadores, só dois prevaleceram, Amílcar Cabral e Aristides Pereira, nunca se fala daquele que efetivamente deu o corpo ao manifesto na mobilização de todos aqueles jovens que foram encaminhados para Conacri, Rafael Barbosa. A questão iconográfica, como foram encarados os heróis e o líder por ambos os países, parece-me uma visão acertada. E tudo descamba na análise do golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, a historiadora veste-se de juíza e encontra razões de sobra para culpar os guineenses de tudo quanto se passou até à consumação da rutura. Vale pelo que vale, mas deu direito a doutoramento.

Um abraço do
Mário



Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura,
por Ângela Benoliel Coutinho (3)


Beja Santos

Este livro resulta da tese de doutoramento em História da África Negra Contemporânea, defendida em 2005 na Universidade de Paris I – Panthéon – Sorbonne: “Os Dirigentes do PAIGC” é uma edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, novembro de 2017.

A que se afoitou Ângela Benoliel Coutinho? Ela responde: “O presente estudo debruça-se sobre as trajetórias dos fundadores do PAIGC e dos membros do seu Comité Executivo de Luta. Interrogar-nos-emos acerca do recrutamento destes dirigentes, mais precisamente o recrutamento geracional, geográfico, de género, social, procurando também saber que formação tiveram, tendo em vista as suas atividades de direção política”.

O estudo a que a autora se acomete sobre as trajetórias destas figuras gradas do PAIGC inclui uma verificação de quem é quem entre os fundadores do partido, traços comuns das trajetórias familiares, quem é quem entre os combatentes, o seu recrutamento e história familiar, valores e princípios proclamados e tratamento da figura dos heróis, tanto na Guiné como em Cabo Verde, como, nos dois países, se procurou implementar políticas de democracia revolucionária e como caraterizar o fim abrupto do PAIGC. É este o último ponto que aqui se analisa, sugerindo sempre aos leitores a leitura integral desta tese de doutoramento defendida em 2005 e agora publicada pela Imprensa da Universidade de Coimbra.

É estranho como a autora formula as suas premissas sem, em nenhuma circunstância, nos oferecer o contraditório. O golpe de Estado de 14 de novembro de 1980 é sumariamente descrito, lembra-se que o golpe de Estado era moeda-corrente da época, dá-se conta das medidas tomadas: aprovação da primeira lei do Conselho da Revolução, destituição de Luís Cabral, dissolução da Assembleia Nacional Popular, do Conselho de Estado e do Conselho dos Comissários de Estado, o Conselho da Revolução passa a ter o poder que tinham estes órgãos políticos. Ficamos a saber a composição do Conselho da Revolução e a sua proveniência. A 24 de novembro é nomeado um Governo Provisório, e desencadeia-se um rol de acusações quanto ao falhanço da unidade Guiné-Cabo Verde. Os golpistas acusavam a ala cabo-verdiana do partido por diferentes razões, era acusado o Governo anterior de corrupção, de irresponsabilidade, de laxismo face aos erros, de nepotismo, de ostentação e de ambição pessoal dos seus membros. Tivesse Ângela Benoliel Coutinho consultado o acervo documental do CIDAC, em Lisboa, e não teria escrito “não se deram exemplos destas práticas e não se nomearam os indivíduos que as teriam praticado”. Atenda-se que o próprio Luís Cabral em discursos proferidos, nomeadamente em 1978 e 1979, já referia casos de corrupção, de irresponsabilidade e de laxismo, vem nos documentos. A autora encontra muitas semelhanças entre a composição do Governo anterior e o Governo de transição sob a responsabilidade do Conselho da Revolução, o que sendo verdade só abona como os golpistas eram dirigentes de extração guineense e aderiram à rutura, não sabemos com que alma e coração. Ângela Coutinho não esconde o tratamento parcial na análise a que procede a este golpe: fala nas contradições de Nino, nas acusações graves, retoma o evento do assassinato de Amílcar Cabral em que já era patente o profundo sentimento anti-cabo-verdiano, em que mesmo os golpistas de 20 de janeiro de 1973 falavam em eliminar os cabo-verdianos e os mestiços.

Nino Vieira e Aristides Pereira travam-se de razões, trocam mensagens acusatórias, consumava-se na prática a rutura. A imprensa cabo-verdiana publicou os protestos e as críticas profundas ao golpe, o fantasma do assassinato de Cabral paira permanente no ar, em janeiro de 1991 cria-se o PAICV em Cabo-Verde, mantém-se o PAIGC na Guiné-Bissau. A autora procura afincadamente demonstrar que não havia nenhuma hegemonia cabo-verdiana, uma vez mais é esquecido o espírito do Congresso de Cassacá e em nenhuma circunstância a autora aponta para as razões próximas do golpe, nomeadamente as discriminações entre as novas Constituições de Cabo-Verde e Guiné-Bissau. A autora também critica o palavrório usado pelo PAIGC quanto a fuzilamentos perpetrados pelo Governo de Luís Cabral, Luís Cabral, no exílio iria sempre evocar a existência de inimigos do PAIGC, supostos agentes da ex-PIDE e Comandos guineenses que teriam tentado dar um golpe de Estado a 11 de março de 1975. Só que Luís Cabral nunca apresentou documentação nem mesmo provas de julgamento que pudessem justificar os fuzilamentos contínuos que se praticaram durante o seu mandato. Quem lê esta tese de doutoramento pode ficar com a sensação de que houve um grupo de maus da fita, os golpistas, e os mártires da unidade Guiné-Cabo Verde, que foram escorraçados pelos primeiros. Se isto é ciência histórica, o mundo anda às avessas.

E assim chegamos às conclusões. Dá-se como provado que houve uma renovação da direção política do PAIGC muito antes da declaração da independência da Guiné-Bissau, em 1973, não é rigorosamente verdade, houve mexidas, entrou muita gente na segunda geração mas o poder ficou nas mãos da dupla Aristides Pereira – Luís Cabral, ao longo do Governo deste último grassou o descontentamento e surgiram problemas políticos de grande melindre, suficientes para os militares guineenses terem encerrado fileiras. Há pontos suscitados que merecem estudos posteriores, é o caso da questão das mulheres, ausentes da fundação do partido, Carmen Pereira foi a única militante cabo-verdiana eleita para a direção do partido. Igualmente acertado aparece o tratamento da imagem de Cabral nos dois países. A direção do processo revolucionário, a que a autora faz alusão, tem vindo a ser estudado por variados autores, é incontestável que o PAIGC rapidamente perdeu a dinâmica revolucionária na prática, usou-a nos seus planos de desenvolvimento, enquanto se afastava das massas, completamente intimidadas pelas provas de terror de execuções, prisões e banimentos, afastamento de régulos, a par de nomeações sem qualquer relevância de comissários de nulo poder de decisão, o poder estava concentrado em Bissau. Comparando Guiné com Cabo Verde, obviamente que este último país vai ficar melhor na fotografia.

Enfim, uma investigação a que se pode reconhecer muito trabalho, mas um exercício que se deplora de tratamento faccioso da história de uma rutura. Aliás, não é só Ângela Benoliel Coutinho que foge ao estudo da verdade quanto à essência da rutura, o fantasma e a iconografia de uma unidade que foi extremamente proveitosa para a independência dos dois países nunca passou de um sonho arquitetado por Amílcar Cabral num cenário idílico que nunca existiu. E os dois países continuam a pagar caro a fantasmagoria de todas essa ficções.
Amílcar Cabral com Carmen Pereira, imagem do jornal Público, 5 de junho de 2016, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22459: Notas de leitura (1372): “Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura", por Ângela Benoliel Coutinho; edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, Novembro de 2017 (2) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Em conclusão, Mário Beja Santos, segundo as tuas palavras :" a independência dos dois países nunca passou de um sonho arquitectado por Amílcar Cabral num cenário idílico que nunca existiu. E os dois países continuam a pagar caro a fantasmagoria de todas essas ficções."
Pois é. Totalmente de acordo contigo. Como unir politicamente a humanidade, povos e gentes,quando, no amor a tantas pátrias difusas, Guiné-Bissau ou afganistões, quando todos somos egoístas e diferentes?

Abraço,

António Graça de Abreu

Antº Rosinha disse...

"Carmen Pereira foi a única militante cabo-verdiana eleita para a direção do partido".

E permaneceu sempre em Bissau após a revolução do 14 de Novembro de 1980.

Ela e mais outro caboverdeano Manecas, Manuel dos Santos, os dois sempre em posição de relevo nos governos de Bissau.

Penso que caboverdeanos (vivos)poucos mais políticos teriam ficado em Bissau após o 14 de novembro.

E eram tantos ao lado de Luís Cabral.

Quem não estranhou muito a rutura da UNIDADE GUINÉ/CABOVERDE, no 14 de novembro, e continuaram impávidos e serenos em Bissau, foram os principais colaboradores do PAIGC, durante a luta contra o nosso Spínola, nosso, e dos comandos fulas:

Foram eles, os imensos soviéticos presentes em Bissau, os muitos suecos e alguns cubanos.

Viram o golpe e pareceu que acharam tão natural, (vi eu)como teriam achado natural o desaparecimento de Cabral com 5 tiros em Conakry, com teriam achado natural o fusilamento dos comandos africanos, (que eu não vi, mas adivinho).

Nunca vi tanto cinismo na minha vida, como a política destes "benfeitores"

África foi vítima destas descolonizações, mas a europa vai pagar, já está a pagar por isso.

Mas a luta continua.

Amigo Beja Santos, não leves a mal ao esforço desta doutora puxar para um lado.

Ermons são ermons!

Anónimo disse...

Para pensar...

Em outubro de 2019 estive hospedado num hotel de capital espanhol com capacidade para 900 hospedes na ilha da Boavista.
Todos os funcionários eram cabo-verdianos e com formação própria desde a gerência aos seguranças, aliás parece que é obrigatório empregarem os nacionais.
Organização impecável, julgo que até superior à nossa.

Adivinhem qual era a nacionalidade dos jardineiros e da limpeza exterior...gui--guiiiinienses.

Cabo-Verde é considerado o segundo País menos corrupto de África.

Quem organizou as manifestações contra os cabo-verdianos em julho de 74 em Bissau ?

Não posso dizer aquilo que penso e sei porque estaria fora das regras deste blogue.



Sobre doutoramentos ..sei de alguns cuja a tese foi a "orientação das escamas na sardinha" e a "impregnação de iodo no trevo".

AB
C.Martins