sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22491: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (67): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Trata-se de um período em que já não é possível esconder a exaustão física, o ataque de paludismo foi violento, Paulo começa a achar completamente descabido aquele plano operacional de idas e vindas ao Poidom que não levam a ponto nenhum. Foi o que se verificou com a operação pomposamente intitulada Pavão Real, em que se andou ali aos papéis, sempre a dizer que não se juntavam os destacamentos mas acabando por pôr-se cerca de 200 homens em cordão quilométrico. Ele vai partir para Bissau, alguns dos seus amigos já desandaram, ainda baterá à porta do batalhão de engenharia, visitará dois médicos para afinação de olhos e ouvidos e da estrutura óssea, vai seguir-se uma tragicomédia na psiquiatria do Hospital Militar de Bissau, foi o episódio mais delirante de toda a comissão, como Paulo adoraria rever o capitão Oliveira e o furriel Alves, nunca mais esqueceu uma estrondosa disputa entre ambos, e em pleno zaragateio exibiam facas rombas.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (67): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette, mon étincelle en permanence, imagina tu que estava ontem a arrumar papéis de âmbito profissional, têm a ver com o meu trabalho de coordenador do Concurso Europeu do Jovem Consumidor, e não resisto a contar-te o que se passou no verão de 1998, escusado é dizer que ainda não nos conhecíamos. No início do ano letivo enviei para todos os estabelecimentos de ensino o anúncio do tema desenhado para esse ano, como publicitar um género alimentar saudável. Para meu desgosto, mesmo insistindo e voltando a insistir, sempre prontificando-me a dar qualquer esclarecimento ou a enviar documentação suplementar aos professores interessados, não ultrapassaram três dezenas as inscrições. Na hora da entrega dos projetos, verifiquei que uma escola do Alto Alentejo tinha feito um trabalho primoroso, imagina tu, a história do vinho e as qualidades do vinho da região, tema inequivocamente incompatível com o que se propunha, os jovens não podem beber álcool antes dos 16 anos. Em segundo lugar, apareceu um curiosíssimo trabalho sobre a Pera Rocha, uma fruta típica da região Oeste, rija e muito saborosa. Analisando o que enviaram, era tudo de altíssima qualidade exceto o vídeo inicial, uma daquelas paspalhices em que a senhora professora faz a preleção sobre a Pera Rocha e os meninos inclinam a cabeça, muito compostinhos. Convoquei a professora, reconheceu que era necessário dar uma volta às imagens do vídeo, sugeri as belezas locais, o Bombarral, acedeu e até se excedeu, tivemos que depurar, vinha extenso. E a prova dos miúdos era uma originalidade, ao som da música do Verão (das Quatro Estações de Vivaldi), soerguiam-se, e havia aquela metamorfose das peras se transformarem numa apoteose de dança. Tudo seguiu para Bruxelas como representante da prova portuguesa, a comitiva partiu para a prova final do concurso, fiz parte do júri, a convite do meu amigo Maurice Vlieghe, houve discussão acesa para os primeiros três lugares, o Bombarral ficou em segundo, tu não podes imaginar a alegria daqueles jovens quando perceberam que tinham sido premiados. Foi a única vez que um concorrente português esteve entre os três primeiros lugares.

Começa a ficar claro o que faremos durante os três primeiros quinze dias, vou enviar-te um plano de viagem, para tua aprovação, felizmente que tens aí ao teu dispor um bom acervo de livros sobre Portugal, podes propor alterações. E seguidamente vou procurar dar resposta às questões que me pões sobre aquelas malfadadas primeiras semanas de abril, eu sentia-me muito mal por tudo o que tinha acontecido na operação Tigre Vadio, era um remorso sem sentido, dirás tu, se não ajudei a matar a sede foi porque não houve circunstância, as transmissões falharam de terra para o helicóptero, o piloto tinha sérias razões para não andar ali com um vidro estilhaçado, despejou-me no quartel do Xime, senti-me apalermado a explicar aos meus camaradas o que se estava a passar, lá procuraram confortar-me, passei a noite em desassossego, tudo melhorou quando eles começaram a chegar a partir das canoas do Enxalé, muito perto do Xime, na margem direita do Geba. Os meus soldados andavam eufóricos, nunca se tinha ido àquele remoto Belel, com tanto sucesso destruidora. Voltámos à rotina, ultrapassei o ataque de paludismo, felizmente o único que tive. Conversei com os oficiais do Comando, procurei detalhar como era muito difícil chegar a Belel, do ar avistam-se os caminhos, mas o coberto florestal é imenso, eles foram hábeis, puseram acampamento bem dissimulado pela vegetação, como sempre habitações em colmo e adobe, havia uma extensa horta de mandioca e fundo, mas não foi por aqui que eles fugiram, meteram-se noutra mata densa, no chamado Corredor do Oio. Dentro da rotina, voltámos à ponto do rio Undunduma, recordo perfeitamente um patrulhamento à região de Samba Silate, uma manhã com muito pouco calor em que descobrimos novos trilhos em direção ao Geba estreito, os meus soldados demoraram a encontrar duas pirogas escondidas no tarrafo envolvidas em folhas de palmeira. Foram postas a navegar e destruídas a tiro.

Passado cerca de uma semana, sou novamente convocado ao major de operações. Ele insiste em que se faça uma batida em grande escala à foz do Corubal, duas companhias, a de Bambadinca e a do Xime e o meu pelotão. O major pretende que se constituam dois destacamentos, um sairia do Xime para emboscar na região de Madina Colhido, um local onde o grupo do PAIGC procura surpreender as nossas forças, tanto à ida como à volta; outro iria progredir de Ponta Varela em direção à foz do Corubal, ele contava comigo para voltar ao território que eu conhecera na operação Rinoceronte Temível, e no regresso passaríamos pelo rio de Burontoni, encontrando-nos com outro destacamento em Madina Colhido ou Gundaguê Beafada, seguindo-se o regresso ao Xime. Eu que acertasse pormenores quanto ao apoio de artilharia, transporte de morteiros e ajuda de carregadores e piscou-me o olho, que não me esquecesse de levar um pouco mais de água.

Abandonámos o Xime à hora aprazada, da minha parte, beneficiando de uma noite enluarada lá fomos progredindo pela bolanha do Poidom, flanqueando trilhos que eram nitidamente usados pela população ou pela guerrilha. Alvorecia quando avistámos à distância dois cultivadores que caminhavam descuidadamente na nossa direção, quando deram por nós escapuliram-se. Perdido aquele fator surpresa, metemos dentro da mata, e então a surpresa foi outra, encontraram-se onze casas de construção recente, dois depósitos cheios de arroz, mais uns casebres à frente, não havia armamento nem munições, eram seguramente habitações de quem lavrava a bolanha. Destruiu-se o que era possível destruir em tempo recorde e perseguiu-se a batida sempre na orla da mata. Do ar, para minha completa surpresa, o major informava que a força de Madina Colhido avançava em nossa direção, podíamos estar juntos na batida na Ponta do Inglês. Não houve felizmente qualquer dificuldade no reencontro, confirmámos a existência de muitos vestígios da presença da população, visitei pela primeira vez o que restava do aquartelamento da Ponta do Inglês e a Companhia de Bambadinca foi-nos mostrar as tabancas que tinham sido destruídas numa outra operação de nome Safira Única. Nada mais havia a fazer, partimos lestos para a orla do rio Burontoni e chegámos ao anoitecer ao Xime, sem qualquer contato. Na manhã seguinte encontrei-me em Bambadinca com o major de operações, percebi perfeitamente que ele não gostou do meu comentário: o Poidom estava par dar e vender, parecia-me completamente inútil este tipo de operações, era óbvio que os grupos de combate se acoitavam mais longe, lá no fundo do Corubal, se o senhor major quisesse resultados havia de propor operações de paraquedistas ou facilitar o transporte de tropas até Moricanhe e então sim, por aqui se podia chegar ao Baio e a Burontoni em condições físicas decentes. Encolheu os ombros e mandou-me sair, sem o mínimo de agradecimento.

Sinto perturbações na visão e nos ouvidos, deve ser um rescaldo tardio da minha anticarro, cresce em mim um sentimento de frustração, uma melancolia, o sono é péssimo, o Vidal Saraiva é um médico atento e informa o comandante que eu devo ir à consulta externa, enviará mesmo uma carta ao David Payne, então na psiquiatria do Hospital Militar nº 241, para que me aplique uma terapêutica conveniente. Digo automaticamente que sim, é exaustão a mais, é uma mágoa incontida, tenho felizmente três auxiliares de mão cheia, cada um na sua área, o Cascalheira, o Ocante e o Pires, com quem converso e que me prometem por sua honra que tudo vai correr bem. Arrumo a traquitana e parto de mala aviada, ninguém sabe, mas a mala que me acompanha foi-me deixada pelo José Manuel Medeiros Ferreira antes de desertar. Nauseado por uma vida aperrada a ocupações a toda a hora e por uma vida operacional que me parece ter pouco sentido, é com alívio que em Bafatá parto para consultas médicas ainda não sabendo a tragicomédia que irei viver no serviço de psiquiatria do Hospital de Bissau.

Desculpa ser tão breve, é muito tarde e terei o dia de amanhã absorvido por reuniões e a conclusão de um importante documento. Parece que estou contagiado pelo abatimento daquele mês de abril, que agora rememoro. Bisous mils, comme toujours, toujours, Paulo.

(continua)

Vista geral do Palácio das Exposições no Heysel, Bruxelas
Pormenor da fachada principal, a alegoria aos transportes
O Atomium, criado para a Exposição Universal de 1958, sito no Parque do Heysel
Não podia ter havido recordação mais terna que aquela que vivi em Belel, em 2010, depois de um percurso árido dei com uma escola buliçosa, o senhor professor ocupa o lugar central, hirto na responsabilidade de ficar para a história daquela viagem, a pequenada manifesta-se feliz, apareceu por ali uma senhora que quis ficar na fotografia. De todas as imagens que marcaram aquele meu itinerário de reconciliação esta é a que ainda mais me inspira, passados tantos anos
Andando às voltas dentro do que fora o velho quartel de Bambadinca, duas surpresas me esperavam, aquele belo e imponente poilão e ao fundo a mãe de água, faltou-me coragem de avançar, temi ir encontrar uma caranguejola enferrujada, quando aquela mãe de água era fonte da nossa vida, nos tempos de guerra
A única fotografia que tenho de Bacari Soncó, imaculadamente vestido em tom pérola, à esquerda, acompanhado pelo seu filho Bacari Soncó, que às vezes me telefona, vindo de Saragoça, Darmstadt ou Nantes, trabalha para uma empresa internacional, avisa-me que no dia seguinte vai visitar a família a Missirá e se tenho alguma lembrança para eles. Na fotografia, estão ainda Maria Leal Monteiro, que me acompanhou na visita a Missirá em 1990, e a Cristina, falecida em abril deste ano. Imagem tirada em casa da Maria Leal Monteiro, no bairro da Calçada dos Mestres
O Geba estreito, como aparentemente todo este mundo é pacífico e em certos ângulos sinuosos, daquele tarrafo pode escapar fogo de morte. No entanto, e para todo o sempre, é o rio da minha vida
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22471: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (66): A funda que arremessa para o fundo da memória

2 comentários:

Anónimo disse...

Caro Beja,
Não sei o que diga , excepto que apesar do muito e dos muito variados assuntos que escreves, consegues sempre fazê-lo com tanto "jeito" e duma maneira que é quase adictivo ler os teus trabalhos. Não dá para ler tudo, mas razão e interesse para o fazer não falta.
João, Nova Iorque

ildeberto medeiros disse...

Bonita recordacao ex companheiro nao o conheco pessoalmento mas para mim todos nos que andamos por esta Africa GUINEsao todos ex companheiros recordar e viver porque para n os que andamos por la estamos e ficar reduzidos e bom que fique estas memorias para sempre para nossos filhos e netos um forte abraco a todos Mew bedeford Massachusta EUA 28 de AGOSTO de 2021 6.30 AM