sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22471: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (66): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Ao que consta, nada de mais sangrento ocorreu na comissão militar de Paulo Guilherme que aquela operação denominada Tigre Vadio. Coisa curiosa, ele veio a descobrir mais tarde, o criador do mais conceituado blogue da guerra da Guiné, intitulado Luís Graça e Camaradas da Guiné, nela participou e amiudadas vezes escreveu sobre o sofrimento vivido por aquelas centenas de homens. No momento em que tudo isto se passa, Paulo Guilherme está completamente exausto e vai quebrar, está com um ataque de paludismo, ainda não retemperado volta à atividade operacional e depois quebra. Como fora punido com dois dias de prisão simples, nunca teve direito a férias, o comandante, comiserado, pretexta um tratamento psiquiátrico, voltará ao repouso, desta vez não em casa de um amigo mas em pleno hospital militar. Virá recomposto, mas afazeres não faltarão até ao início de agosto.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (66): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette adorée, preparava-me para dar pronto seguimento aos aspetos mais truculentos da Operação que levou à destruição da base de Belel e ao aniquilamento expressivo de guerrilheiros, narrando o que foi a pronta retirada a corta-mato por florestas inóspitas, debaixo da frigideira do sol, apoiando militares cada vez mais insolados, os próprios carregadores a marchar com cada vez mais dificuldade, nunca na vida vira tanta gente a mascar cola, certamente que para enganar a sede, e tu introduzes uma nova questão, que eu não me esqueça de ir tomando nota de casos bizarros ou excêntricos que tenha vivido e que possam tornar mais entusiasmante a leitura do romance. Sintetizo duas situações, prometo ir aos escaninhos da memória à procura de mais.

A primeira tem a ver com um daqueles oficiais em trânsito, era muito frequente aparecer alferes ou capitães que tinham apanhado um voo até Bambadinca ou mesmo aqui arribado numa embarcação, e com destino para o Xime ou Mansambo ou Xitole e mesmo para Bafatá e daqui para Geba, Nova Lamego, Pitche, que sei eu. Um dia regresso dos Nhabijões, e encontro à hora de jantar um capitão desconhecido, aproveitara uma boleia até Bambadinca, seguia para a Colina do Norte, ia formar em Dunane uma unidade militar. Homem seco de carnes, de fala económica, sem prejuízo de responder ao que lhe ia perguntando. Viera à Guiné numa primeira comissão, entre 1963 e 1965, coubera-lhe uma experiência inédita, acabou em comandante interino de uma companhia de corrécios, fora o que lhe coubera na rifa, alguém na hierarquia militar tinha entendido que competia ao Exército tentar redimir pessoas com crimes mais civis que militares e que se oferecessem para ir à guerra.

Formou-se uma companhia de instrução em Chaves, apareceram entre 180 a 200 corrécios, coube ao então alferes Amílcar Vespeira, apoiado por um primeiro sargento de craveira excecional selecionar 120 homens, só para a soldadesca, apareceu depois mais um alferes punido, um médico e 12 cabos milicianos. O capitão Vespeira tudo me contou depois do jantar, num canto da messe, enquanto bebericávamos um uísque, e acabou toda esta descrição completamente inédita para mim do nosso quarto-camarata, eu, o Abel Rodrigues e o Magalhães Moreira tínhamos uma cama disponível onde o Vespeira ficou e acabou a sua narrativa que parecia um conto fantástico. Contou como esta gente vinda de Penamacor ou Trafaria chegava a Chaves pelo comboio da linha do Tua, como lhes foi dando a recruta básica e especializada, como se gerou uma comunicação digna entre todos, como eles se sentiram aprumados por terem feito o Juramento de Bandeira vestidos de camuflado. E partiu para a Guiné como comandante interino, o comandante nomeado nunca apareceu. Descobriu-se mais tarde que destas unidades de ensaio de corrécios só a do Vespeira vingou. Fizeram uma comissão duríssima, começaram em Buba, seguiu-se Bissorã, Olossato, não faltaram idas ao Morés, curiosamente a última etapa foi em Fá, ali tão perto de nós. Tinha muito orgulho em dizer que esta companhia operacional fora condecorada com 12 Cruzes de Guerra, a soldadesca, tanto quanto ele sabia estava a integrar-se perfeitamente na vida civil. E recebera agora a incumbência, ditada pelo próprio Spínola, de formar uma nova companhia que arrebanhava antigos agentes da polícia administrativa, milícias e caçadores nativos que por esta ou aquela razão tinham tido problemas disciplinares passados à disponibilidade e que agora manifestavam interesse em regressar ao ativo. O capitão Vespeira sorriu quando comentou que já que se estava a formar uma companhia de comandos africana cabia-lhe agora formar uma companhia de gente corrécia ou aparentada. De olho arregalado, desejei-lhe a melhor sorte.

A outra história, adorada Annette, tem a ver com o nosso excêntrico alferes sapador, quando visitava Missirá tudo queria armadilhar, até mesmo entre as fiadas de arame-farpado, nunca me entregou um documento com a localização fidedigna dos engenhos que ele colocava nas proximidades, era um zaragateiro de primeira, descobri em Bambadinca que fugia à convivência com toda a gente. Encontrei-o mais tarde em Lisboa, trabalhava então no Ministério da Educação, quando o convidei para almoçar rejeitou perentoriamente, ainda não sabia se eu tinha qualquer ligação à CIA ou ao KGB, temia estes serviços secretos, deu o pretexto de que um dia seria raptado e obrigado a voltar à missão de sapador em operações terroristas. Tens aqui, meu adorado amor, duas bizarrias que tu apalavrarás ao teu jeito de escrita.

Voltemos ao Tigre Vadio, que tanto nos fez sofrer. Fizemos uma progressão cautelosa e a escassos dez metros da nossa entrada no espaço onde se espalhavam, bem dissimuladas, as toscas moranças de guerrilheiros ou população civil, o sentinela disparou o seu RPG2, felizmente que foi atingido um pouco antes do disparo e todos os estilhaços se espalharam na vegetação, descobri depois que Sadjo Seidi fora atingido, felizmente com pouca gravidade. Desencadeou-se um ataque fulminante, guardo os sons atordoadores, os estoiros das bazucas e das diligramas, o morteiro 81 manuseado pelo cabo Queirós contribuía para gerar o pânico entre aqueles que se punham em fuga. Pôs-se Belel a arder, grito desalmadamente para que haja mais fogo sobre quem foi apanhado de surpresa e que pode querer reagir perto, é preciso afugentá-los. Vejo as armas carbonizadas, não quero que ninguém entre nas barracas a arder, sabe-se lá se não há lá granadas. O chão está juncado de cadáveres, bicicletas destruídas, pilões, peças de roupa, ainda se faz uma pequena perseguição, o melhor é retirar e a corta-mato, é o que proponho aos dois capitães, prontamente aquiesceram. Há também um ferido da companhia de caçadores de Bambadinca, um pouco mais adiante na retirada instala o pânico com um ataque de abelhas, procura-se desesperadamente uma clareira para ligar o rádio e pedir a evacuação dos feridos.

A sorte está do nosso lado, respondem com a promessa de uma evacuação em breve. É nessa espera que anda às voltas a ver o estado e que se encontra um contingente de centenas de homens, clamam por água, ninguém ignora que há muitos quilómetros a percorrer, ainda por cima é aquele emaranhado agreste de vegetação, aquele solo espalha uma poeira vermelha que entra constantemente dentro da farda, não se avista um charco, um curso de água. É então que me lembro de pedir aos capitães para aproveitando a evacuação dos feridos ir buscar garrafões de água a Bambadinca e o Teixeira informa a sede do batalhão que ponha rapidamente na pista o maior número possível de garrafões e jerricãs. Chega o helicóptero, traz um médico de Bambadinca, subo com os dois feridos e enquanto aquele pássaro metálico ganha balanço vejo um vidro partir-se, alguém disparou e acertou, um ar quente esguicha por todo o lado, vou inclinado e vejo na oblíqua a extensíssima floresta que une o Cuor ao Enxalé, sempre a baloiçar com aquela ventania quente, e assim aterramos em Bambadinca, onde os garrafões estão a chegar à pista. Aparece o comandante, dirige-se-me uma gritaria desbragada, o que me levou a interromper a operação, ela está bem, graças a Deus, precisa menos de mim e muito mais da água, se tem dúvidas embarque comigo, o comandante parece aturdido pela minha resposta, deseja-me felicidades, não as vou ter. Regressamos com os jerricãs e garrafões a dançar de um lado para o outro, num ponto estranhíssimo, e desconhecendo o piloto e eu por onde para o contingente militar com Cibo Indjai à frente com ordens para ziguezaguear os terrenos mais ásperos e sempre visando a estrada do Enxalé, o piloto manda-me descer, olhei-o de tal maneira e ele percebeu perfeitamente que eu não estava disposto a deixar-me aprisionar ou andar sozinho na mata, como herói incerto. Lá reconsiderou e deixou-me no Xime com toda aquela água que não serviu para dessedentar aqueles 300 homens com quem não houvera possibilidade de comunicar.

Meu adorado amor, podes imaginar como passei o resto da tarde e a noite, ao amanhecer assisto à chegada de toda a tropa em esgotamento físico e psicológico. A todos peço desculpa por não lhes ter feito chegado a água prometida. E regressamos a Bambadinca. Quando mais tarde recebemos a mensagem do comandante-chefe a congratular-se com os resultados da operação, ninguém se sentiu ufano, era melhor ter chegado a água a tempo e horas. Convoquei os meus soldados na manhã seguinte, abracei todos aqueles bravos com o maior apreço, tinham sido eles que destruíram Belel, pela primeira vez tropa apeada entrara e saíra do corredor do Oio, em Belel, como vencedores. Estou fisicamente mal, e sinto que regressaram os problemas psicológicos. Os pés estão inchados, interrogo-me se não cheguei ao esgotamento. Somos mandados para a ponte do rio Undunduma, adoeci, o major de operações diz que espera o meu restabelecimento para breve, está na forja uma nova operação. Pela primeira e única vez vou sofrer de paludismo, não me dá tremores nem vómitos, é a pele a gotejar, dias a fio com arrepios, continuo a beber litradas de água para não desidratar, tapo-me com dois cobertores nestes dias quentíssimos.

Annette adorée, continuo a fazer um esboço das nossas férias, tenho a promessa dos meus filhos, eles acompanharão Jules na sua estada em Lisboa. Não sei se decorrente da rememoração da operação Tigre Vadio e dos suplícios que nos provocou, me interrogo agora se é justo (não falo na prudência de procurarmos ter uma velhice financeiramente equilibrada e onde possamos apoiar os nossos filhos) viver o nosso amor a conta-gotas, resigno-me a saber que me privilegias com o teu amor tão intacto, que reverencio. Mils bisous plus a million de bisous, Paulo.

(continua)

Um dos meus mais queridos amigos, Mamadu Djao, bazuqueiro de elite, coube-lhe a ingrata missão de aguentar o caos em Canturé, em 15 de outubro de 1969, depois de uma mina anticarro, regressei com crianças a Finete, daqui partiu auxílio, e segui para Bambadinca onde os meus camaradas se multiplicaram em solidariedade. Em 1990, quando o visitei pela primeira vez, apareceu-me vestido à europeia e estava plenamente convencido de que eu o vinha buscar e viria trabalhar para Lisboa, comovi-me profundamente com a confiança que ele depositava em mim
Fodé Dahaba, imagens tiradas a primeira em Lisboa, quando estava a tratar as suas amputações decorrentes do sinistro de 22 de fevereiro de 1969, a segunda tirada em Santa Helena, onde dormi enquanto me fui despedir dos meus soldados, em 2010, é o olhar de um cego que continua a recordar a bela amizade que se cruzou nas nossas vidas
Uma tentativa de mostrar ao leitor o itinerário da Operação Tigre Vadio, a travessia do Geba em vários pontos, concentração em Missirá, percurso até perto do rio Salá, inflexão para Quebá Jilá, notícia da existência de uma grande queimada entre Quebá Jilã e Madina, contraordem do major de operações para seguir para Belel o conjunto dos dois destacamentos, entrada em Belel passava das duas horas da tarde, foi destruída a base, capturado algum equipamento e pronta a retirada a corta-mato descendo em direção à estrada do Enxalé, começava o inferno das insolações e da sede
Quartel de Bambadinca, o edifício em frente mostra as instalações do Comando e alguns serviços, os quartos dos oficiais e a messe, trata-se de um edifício em U, a outra extensão eram as instalações dos sargentos e na continuação, do lado direito, a manutenção de viaturas, a delegação da engenharia e outros serviços; em frente ao grande U, a capela
Cartaz do filme Doze Indomáveis Patifes, realizado por Robert Aldrich, inspirado no romance The Dirty Dozen de E. M. Nathanson
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22453: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (65): A funda que arremessa para o fundo da memória

2 comentários:

Fernando Ribeiro disse...

Eu não me chamo Vespeira, mas também dei a recruta a um pelotão de corrécios, no BC 8, em Elvas. Havia-os para todos os gostos: carteiristas, proxenetas (eram os piores), traficantes de droga (poucos, porque a droga naquele tempo ainda não era o problema em que veio a tornar-se mais tarde), etc. Eram de Lisboa, mais propriamente dos bairros mais problemáticos da capital, entretanto desaparecidos, como a Musgueira.

Os "meus" recrutas eram uns meninos tão bem comportados, tão bem comportados, que durante a semana de campo um deles abriu a barriga a outro com uma faca de ponta e mola. O que valeu foi que a semana de campo estava a fazer-se a poucos quilómetros da cidade. Na Praça de Elvas (agora extinta) havia um Hospital Militar e lá foi ele levado para o hospital com as tripas de fora. O agressor nunca mais voltou ao pelotão. Julgo poder concluir que ele deve ter ido parar à Companhia Disciplinar de Penamacor, e a seguir ao Ultramar, depois de cumprir pena.

Para dizer a verdade, eu consegui lidar relativamente bem com aquele pelotão de rufias, embora eles me tivessem dado sobejas dores de cabeça. Não tive casos de indisciplina, o que ainda agora me espanta. Eles resmungavam, protestavam, fingiam-se lesionados ou doentes, mas no fim cumpriam as ordens que eu lhes dava. Sempre cumpriram.

Muito mais poderia eu contar sobre os "meus" recrutas de Elvas, mas acho que já chega. Quando muito, poderei acrescentar que no fim da recruta quase todos eles se ofereceram como voluntários para os Comandos. Só dois ou três é que não se ofereceram. Naquele tempo, não havia valentão que não quisesse ir para os Comandos. O que diriam os "colegas" deles, lá no bairro, se não fossem para os Comandos? E ofereceram-se.

Fernando de Sousa Ribeiro

P.S. - Eu tive uma tropa bastante sui generis. Em parte por minha culpa, em parte em consequência dos acasos da sorte e do azar, mas houve situações para as quais só encontro explicação pelo facto de ter ficha na PIDE. Eu tinha passado uma estadia breve na Penitenciária de Coimbra, mesmo ao lado dos Arcos do Jardim, por ocasião da Crise Académica de 1969. Para os meus superiores hierárquicos no Exército, eu devia ser também uma espécie de corrécio...

Valdemar Silva disse...

'...seguia para a Colina do Norte, ia formar em Dunane uma unidade militar.'
Colina do Norte, formar em Dunane uma unidade militar?
Em Bambadinca seguia-se para leste e Dunane, pequena tabanca a meio caminho entre Piche e Canquelifá, tinha tropa a nível de Pelotão que funcionava como Destacamento de Piche ou Canquelifá, não sei precisar.
Em Out/1969, na estrada entre Dunane e Canquelifá devido ao acionamento de duas minas A/C a minha CART.11 sofreu a primeira baixa e feridos: morreu o soldado Santone Colubali e ficaram gravemente feridos sendo evacuados para Bissau o 1º.Cabo Trans. Oliveira Marques e os soldados Braima Seidei, Amaduri Camará e Guilage Baldé, vindo também a morrer um djubi que acompanhava sempre o Marques em deslocações.
O Marques, com mazelas da guerra, está de boa saúde e organizou em 2014 o nosso encontro anual em Canas de Senhorim.

Valdemar Queiroz